“Novos” problemas gerados pela gestão algorítmica de pessoal: um olhar mais atento para os impactos no tempo de trabalho

Por Cássio da Silva Calvete[1]
Resumo
A gestão algorítmica e a inteligência artificial têm diversas técnicas de gestão para interferir no tempo de trabalho dos trabalhadores. Esse estudo tem como objetivos listar esses expedientes e desvelar como cadaum deles impacta no tempo de trabalho em suas três dimensões: extensão, distribuição e intensidade. As técnicas de gestão analisadas são: 1) a falta de transparência, 2) a assimetria de informações, 3) a discriminação, 4) a vigilância implacável e falta de privacidade, 5) a gameficação e gambleficação, 6) a instrumentalização, 7) a completa conexão do trabalhador, 8) a manipulação e, 9) ser tratado como um robô. Constatou-se que invariavelmente essas técnicas atuaram em favor dos interesses do capital, interferindo em uma, ou mais, das dimensões do tempo do trabalho.
Palavras-chave: Inteligência artificial; tempo de trabalho; plataformas digitais; gestão algorítmica
Introdução
A Inteligência Artificial (IA) está há tempos entre nós e seus efeitos positivos e negativos também estão em evidência. No entanto, com o surgimento do ChatGPT, que é uma ferramenta associada a IA, essa tecnologia ganhou maior espaço no debate público porque o potencial de suas consequências, novamente para o bem e para o mal, se mostrou extraordinário. Nunca é demais lembrar que nenhuma tecnologia determina as suas conseqüências, mas sim o uso que a sociedade faz dela e a forma como ela é implantada. Por isso, urge a discussão sobre a forma de utilização da IA e como ela deve ser controlada pela sociedade. Não podemos deixar que prevaleçam de forma acrítica nem a visão dos tecnofóbicos e nem a visão dos tecnófilos. Isso porque seguindo os primeiros iríamos tentar frear os avanços tecnológicos e por conseqüência também seus ganhos sociais e econômicos, e seguindo os segundos, não criaremos mecanismos para mitigar os efeitos perversos que inexoravelmente acompanham a implantação das novas tecnologias quando implantadas visando unicamente os interesses das empresas. Assim entendemos que o melhor caminho é absorvermos o melhor das duas visões para avançarmos no desenvolvimento tecnológico, mas mitigando os seus aspectos perversos.
O termo Inteligência Artificial, que é a produção de dados para automatização de processos (o computador recebe dados/inputs, inseridos por humanos ou mesmo por sensores, processa-os e gera uma resposta/outputs), é um termo “guarda-chuva” que abriga uma série de ferramentas como oChatGPT que ficou tão em voga a partir da sua disponibilização para o público em geral em novembro de 2022. A IA se enquadra na categoria de Tecnologia de Propósito Geral que quando partícipe do processo produtivo pode integrar-se em uma infinidade de processos de trabalho diferentes e, também de formas diferentes. Podemos caracterizar a IA como uma Inovação Revolucionária assim como foi a energia elétrica, a máquina a vapor e mais recentemente os computadores. Olhando dessa perspectiva histórica, a humanidade já sabe que junto com os benefícios da tecnologia vêm também os seus efeitos negativos como a poluição, a queima de postos de trabalho e outras mudanças, que em si não podem ser classificadas como boas ou más, mas dada a velocidade em que acontecem trazem problemas, estranhamentos e desconfortos. Portanto,o tamanho dos ganhos e das perdas e a forma como eles são distribuídos são determinados pela sociedade e não pela tecnologia.
Os impactos da IA já são sentidos em todos os aspectos da vida humana e da sociedade. Muitos dos problemas que ocorrem nas relações de trabalho são comuns aos mais diversos tipos de relacionamento (comercial, social, etc). Também é preciso destacar que mesmo no âmbito das relações de trabalho os problemas aqui apontados têm impactos diversos e, em muitos casos, até mais importantes que os impactos que tem sobre o tempo de trabalho.A título de ilustração cito o aumento da invasão da privacidade e da discriminação que em si mesmo são problemas de enorme envergadura para a sociedade. Por isso mesmo, colocamos como título do artigo “Novos” problemas gerados pela gestão algorítmica de pessoal, justamente para destacar que os problemas vão muito além dos impactos que essas técnicas de gestão têm sobre o tempo do trabalho. Um dos objetivos do estudo é justamente fornecer umalistagem das novas técnicas de gestão de pessoal para que estudiosos de diferentes áreas, com olhares e preocupações diferentes, tenham uma listagem dos “novos” problemas trazidos pela gestão algorítmica como um roteiro para seus estudos críticos.No entanto, nesse estudo iremos nos dedicar a desvelar como a gestão algorítmica e aIA exercemimpacto sobre o tempo de trabalho e, invariavelmente, de forma prejudicial aos interesses dos trabalhadores.
Sabemos que as ferramentas que utilizam a IA são diversas e em expansão constante bem como os tipos de ocupação que impactam e a forma como o fazem.No entanto, procuraremos nos ater aos aspectos mais gerais que aparecem como problemas em muitas relações de trabalho e que pela velocidade com que surgem, bem como pelo desconhecimento da sociedade, são negligenciados pelos estudiosos, juízes e legisladores. Os problemas muitas vezes são similares nas novas ocupações, ou ocupações renovadas, e ocorrem, em parte pelo intenso uso das novas tecnologias utilizadas no gerenciamento como inteligência artificial, softwares algoritmos e vigilância;em parte, pela hegemonia de uma visão gerencial reconhecida como sendo originada no Vale do Silício e,em outra parte, não menos importante, pela busca de maior lucratividade das empresas.
Dada a multiplicidade de casos, de formas de gerenciamento e de impactos, podemos citar vários direitos básicos dos trabalhadores que estão sendo desrespeitados e já foram exaustivamente discutidos na sociedade e vigoraram por muito tempo como sendo quase consensuais. Refiro as normas civilizatórias das relações de trabalho que garantem um Salário Mínimo para todo trabalhador, direito a férias, direito a uma jornada de trabalho não muito extensa, direito a aposentadoria, seguro saúde e acidente do trabalho. Direitos esses que são reconhecidos na Constituição brasileira e nas Resoluções da OIT.
Contudo, nesse estudo vamos nos dedicar aos “novos” problemas que a gestão por algoritmo e a inteligência artificial vêm inserindo nas relações trabalhistas e que de uma ou outra forma impactam as três dimensões do tempo de trabalho: intensidade, distribuição e extensão.Dessa forma, buscou-se identificar problemas que são comuns, em seu todo ou em parte, a todos trabalhadores gerenciados por algoritmos e inteligência artificial sejam eles plataformizados, micro-empreendedores, pejotizados ou mesmo trabalhadores formais.
A utilização de técnicas de gestão e mesmo o monitoramento da força de trabalho é uma prerrogativa legítima e mesmo inerente ao processo de gestão e, portanto, direito do empregador. Logo, a questão que se coloca da necessidade de regulamentação do processamento e utilização de dados dos trabalhadores não é se esse monitoramento é justificável, mas até que ponto ele pode ir e se manter justificável, legal e ético. Definir esses limites é cada vez mais difícil e necessáriotendo em vista que o desenvolvimento tecnológico avança rapidamente e aprofunda o monitoramento e a vigilância dos trabalhadores a níveis antes inimagináveis. Essas tecnologias e a forma de suas utilizaçõescriam novas questões jurídicas ou, pelo menos, questões que não têm uma resposta explícita e de entendimento consensualdos regimes regulatórios existentes (ABRAHA, 2023).
Abraha (2023) está se referindo de forma geral ao caso da União Europeia e o seu Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) que tenta suprir essa lacuna, mas que apesar do seu avanço na proteção dos cidadãos não consegue ser definitivo em todos os contextos. E, é, particularmente insuficiente na regulamentação do uso e monitoramento dos dados nas relações de trabalho como o próprio GDPR reconhece no seu artigo 88 que aponta para a necessidade de seus Estados-Membros elaborarem normas mais específicas para tratar das questões de relações de trabalho.Abraha (2022; 2023) aponta que muitos países já estão se debruçando sobre o problema,mas que ainda estão longes das melhores soluções e retrata particularmente o caso da Alemanha e suas contradições e paradoxos. Segundo Neri (2023, p. 5) no Brasil a situação é ainda pior, pois na formulação da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) “foram ignoradas praticamente todas as necessidades trabalhistas associadas a proteção de dados”.
Relativamente a questão do tempo de trabalho, a gestão algorítmica e a IA tem diversos expedientes para interferir no tempo de trabalho dos trabalhadores. Cada estratégia impacta mais diretamente em uma das três dimensões, no entanto invariavelmente ela também impacta nas outras. Os novos problemas se potencializam e muitas vezes também são similares, se confundem ou se sobrepõem.No entanto, em razão das suas nuances, optamos por destacá-los e descreve-los pormenorizadamente para melhor desvelar seu funcionamento, são eles: 1) a falta de transparência, 2) a assimetria de informações, 3) a discriminação, 4) a vigilância implacável efalta de privacidade, 5) a gameficação e gambleficação, 6) a instrumentalização, 7) a completa conexão do trabalhador, 8) a manipulação e, 9) ser tratado como um robô.
1) A falta de transparência
O gerenciamento algoritmo e a IA podem ser utilizados na contratação, promoção, disciplinamento (suspensão), demissão (desligamento), acompanhamento das metas, definição de salário, determinação da intensidade, extensão e distribuição do tempo de trabalho (KATSABIAN, 2023; DUBAL, 2023; ADAMS-PRASSL et al., 2023), ou seja, em todos os aspectos das relações de trabalho. Portanto, é crucial que sejam desvelados os mecanismos, expedientes e técnicas utilizadas por esse gerenciamento que impacta as condições de trabalho e, particularmente, o tempo de trabalho em todas suas dimensões e nas mais diferentes formas (PRASSL et al., 2023: BARNARD, 2023; PARREIRA, 2020). Assim, a utilização desse gerenciamento tão potente deve ocorrer de forma transparente já na construção dos algoritmos, no acompanhamento da execução e na possibilidade de questionamento dos resultados(EUROPEAN COMMISSION, 2021; ICO, 2022; IRANI, 2023; ADAMS-PRASSL et al., 2023; KATSABIAN, 2023)
A transparênciaé um dos requisitos que aparecem em um inúmeras publicações e legislações como algo fundamental no desenvolvimento das plataformas e da Inteligência Artificial(BARNARD, 2023). Ela é imprescindível para a democracia, equidade entre as partes e justiça na sociedade e também no local de trabalho. O mundo do trabalho vem sofrendo profundas transformações rapidamente e grande parte delas atreladas a interação dos trabalhadores com o mundo digital e particularmente com as ferramentas de IA. Para os trabalhadores que trabalham gerenciados poralgorítmicos e Inteligência Artificialé necessário que se estabeleçam os princípios TAR (Transparency/transparência, Accountability/responsabilidade e Remedies/soluções) citados por Barnard (2023) que, segundo a autora, seria o coração da Platform Work Directive da União Européia.
Barnard (2023) dedica seu trabalho para estudar os problemas dos influencers e criadores de conteúdo no mundo digital. Independentemente de eles serem classificados como trabalhadores subordinados ou autônomos, para muitos, essas são as suas ocupaçõesprincipais, e muitas vezes única, e a forma de obterem os seus rendimentos. Caso o seu acesso a plataforma seja retirado, é tão prejudicial para eles como uma demissão é para o trabalhador formal. Para Barnard (2023), o impacto sobre o tempo de trabalho dado pela falta de transparência das empresas plataformas ocorre pela possibilidade de ostrabalhadores serem bloqueados por determinado tempo, impedidos de divulgar determinado conteúdo ou até mesmo serem banidos da plataforma. Isso tudo podendo ocorrer sem o trabalhador saber exatamente o por quê.
Durbal (2023) coloca que só obter a transparência dos dados extraídos e de como eles são utilizados não é suficiente para acabar com a exploração e a discriminação algorítmica. Ter transparência é fundamental para entender como o sistema controla os ganhos e distribui as tarefas, mas isoladamente não é suficiente.
A falta de transparência impede os trabalhadores de saberem as “regras do jogo”: quais as metas para aumentar remuneração, para ganhar promoção, para receber tarefas, para não ser suspenso, para não ser desligado, entre outras. Esse desconhecimento das “regras do jogo” induz o trabalhador a ser mais “Realista que o Rei”, ele trabalha sempre no seu limite, sempre superestimando o que é esperado dele e evitando o que imagina que possa gerar uma suspensão ou desligamento. Assim ele trabalha de forma mais intensa, extensa e flexível sempre supondo que irá se beneficiar ou, ao menos, não ser punido. A falta de transparência se apresenta de duas formas: os trabalhadores não conhecem os critérios que definem as condições de trabalho e eles não conhecem as informações individuais e coletivas que são coletadas.
2) Aassimetria de informações
Intrínseco a falta de transparência está a assimetria de informações. Todas as programações de IA, dos algoritmos e softwares de gestão são feitas pelas empresas ou contratadas por elas.Portanto, a forma como são elaboradas, adefinição de critérios, de métricas, de avaliação e decisões são de conhecimento da empresa empregadora, mas não são de conhecimento do trabalhador. Abílio (2020, p. 119) afirma que “o trabalhador não tem clareza sobre as regras que operam na definição de metas e bonificações (…) o trabalhador vive disponível para o trabalho, sem saber como opera seu próprio recrutamento”. Para Adams-Prassl et al. (2023)a gestão algorítmica utiliza as informações recolhidas dos trabalhadores para dar suporte ou mesmo determinar vários aspectos das relações de trabalho como contratação, remuneração, promoções e a extensão e a intensidade do tempo de trabalho.Dada sua importância na gestão de pessoal, apontam como sendo um dos grandes problemas da gestão algorítmica, a assimetria de informações e também a falha na regulamentação para acabar ou ao menos minimizar essa assimetria. As empresas decidem e determinam vários aspectos das relações de trabalho com dados detalhados dos indivíduos: suas preferências, performance e comportamento.
Katsabian (2023) destaca que com a gestão algorítmica a balança do poder pende ainda mais para o empregador. O empregador tem acesso a quase todas as informações sobre todos os trabalhadores de forma individual e coletiva e com tempo e facilidade para manipulá-las (calcular média, desvio padrão, variância, moda etc.) e analisá-las. Enquanto os trabalhadores não sabem nem mesmo quais as informações geradas por eles são recolhidas e muito menos como são utilizadas. Portanto, se estabelece claramente uma assimetria de informações,com o agravante que os algorítmicos e a IA cumprem também o papel de organizar, monitorar, supervisionar e avaliar a performance e o comportamento dos trabalhadores (KATSABIAN, 2023; ADAMS-PRASSL et al., 2023).
Dubal (2023) em sua análise vai além, a autora coloca que dada a capacidade das empresas processarem grande volumes de dados e a assimetria de informações,as empresas sabem calcular exatamente a remuneração mínima necessária para obter a mão de obra necessária em cada hora do dia e local para execução da tarefa enquanto, os trabalhadores, na maior parte das vezes não tem idéia como ela é definida.Dubal (2023, p.7) coloca que o salário de trabalhadores em plataformas digitais, que estão sobre gestão algorítmica, é personalizado e que é“determinado através de um sistema obscuro e complexo que torna quase impossível aos trabalhadores preverem ou compreenderem a sua remuneração em constante mudança e, frequentemente, em declínio”.
Teachout (2023), que também faz referência ao salário individualizado, usa a expressão “caixa preta” para se referir aos algoritmos que definem a remuneração a ser paga por tarefa executada para trabalhadores na gig economia, e acrescenta que essa forma de remuneração está prestes a se expandir para todos os setores da economia. Enquanto anteriormente os motoristas de aplicativos conseguiam saber o quanto receberiam com base na distância percorrida e no tempo que levariam, hoje não conseguem saber, tendo em vista que as remunerações são definidas por um algoritmo complicado e que eles não têm acesso.Segundo a autora, os trabalhadores não têm como ter ideia de como será formada sua remuneração tendo em vista que essa definição é dada pela combinação de vários fatores diferentes: perfil dos motoristas, tarifa dinâmica orientada pela procura, gameficação, experimentação e o próprio pagamento que acompanha a tarefa.
Com base na literatura utilizada, fica evidente que os dados recolhidos pela gestão algorítmica, são utilizados para determinar, entre muitas coisas, os salários, a distribuição, a extensão e a intensidade do tempo de trabalho. E também que, esse recolhimento bem como a utilização das informações, não são transparentes epor consequência as informações são assimétricas, impondo enorme desvantagem no poder de barganha individual e coletivo dos trabalhadores. Katsabian (2023), Adams-Prassl et al. (2023), Dubal (2023) e Teachout (2023) defendem a necessidade de acabar com a assimetria de informações para melhor equilibrar o conflito entre capital e trabalho. Segundo os autores, os trabalhadores e/ou seus representantes devem ter conhecimento da existência e de como funcionam os algoritmos e devem ter acesso a todos os dados recolhidos ou criados pelo sistema, a forma de tratamento que recebem e como são utilizados.
3) Discriminação algorítmica
A discriminação algorítmica é mais um fruto da falta de transparência dos algoritmos que orientam a IA. Como a IA é alimentada por decisões passadas que orientam decisões futuras, evidentemente, ela (até por não se humana) não cria discriminações, ela apenas as reproduz. Discriminações passadas são transferidas para o futuro. Assim sendo, dois novos problemas se apresentam nessa seara: a manutenção e reprodução da discriminação e sua ampliação (WACHTER, S.MITTELSTADT, B. RUSSEL, C. 2021; FOGAROLLI FILHO, 2022).
A manutenção e reprodução da discriminação realizada pelas novas tecnologias, particularmente pela IA, ocorrem revestidas de tecnicidade falsamente neutra encoberta pela falta de transparência do ordenamento algoritmo e da forma de utilização dos dados. O grande e novo problema que se apresenta não é propriamente a discriminação, que sempre existiu, mas sim a forma como ela é perpetuada e o momento em que isso é realizado. Essa manutenção da discriminação encoberta pela opacidade dos algoritmos está ocorrendo justamente em um momento em que as lutas pela igualdade de direitos e pela não discriminação estão ganhando espaço na sociedade e obtendo conquistas importantes.Sendo bastante claro, me refiro aos avanços obtidos contra discriminação das mulheres, negros, LGBTQIA +, imigrantes e pessoas com deficiências.
Outro aspecto referente ao problema da discriminação trazido pelas novas tecnologias é a escala que ela ganha. Enquanto no passado (mesmo passado bem recente) a discriminação, apesar de ser estrutural e geral, ela se manifestava de forma pontual, pessoal e presencial, no presente ela se manifestam de forma geral, impessoal e on-line ganhando escalas impressionantes. Isso se deve ao fato de agora ela ser incorporada em softwares que são produzidos e vendidos de forma escalar: softwares para seleção de candidatos, softwares para avaliação de desempenho e, em outro campo que não o campo das relações de trabalho, para ilustrar melhor, softwares de leitura facial.(WACHTER, S.MITTELSTADT, B. RUSSEL, C. 2021; FOGAROLLI FILHO, 2022).
Essa manutenção, reprodução e ampliação da discriminação se manifesta também impactando as condições de trabalho e o tempo de trabalho dos trabalhadores que são discriminados. Esses impactos podem vir principalmente na forma de não contratação, não promoção e de demissão gerados por um software que valora mais positivamente características próprias de pessoas brancas, do sexo masculino, heterossexual e nativas. A não contratação e demissão por si só impactam de forma absoluta o tempo de trabalho das pessoas discriminadas e, para obter promoção diante de um software que discrimina, a pessoa com o perfil “desfavorável” tem que compensar a sua “desvantagem”com trabalhos mais intensos, extensos e flexíveis.
4) A vigilância implacável ea falta de privacidade
Zuboff (2019), em sua obra magistral, busca uma nova denominação para o novo modus operandi do capitalismo e propõe Capitalismo de Vigilância. A autora tem como foco principal destacar a forma de funcionamento dos negócios; a nova fonte de matérias-primas, as informações; e o funcionamento do marketing. No entanto, ela não se furta de expandir sua análise para as relações de trabalho e as alterações no gerenciamento dos trabalhadores.A conclusão de que o capitalismo de vigilância e seu modus operandi é um ataque ao direito à privacidade e às liberdades individuais é válida tanto para o cidadão no seu dia a dia quanto para o trabalhador em seu local de trabalho.
As tecnologias atuais permitem o controle e o registro do tempo de trabalho com a mais absoluta precisão. As empresas podem comprar softwares adaptados para suas necessidades ou comprar os serviços de empresas especializadas para essa vigilância constante, comoInterGuard, Crossover e FAMA (ADAMS-PRASSL, 2019, DE STEFANO, 2019).Existem softwares que registram todos os movimentos dos trabalhadores,quando ele foi contratado, ou cadastrado;quais os dias e horas quetrabalhou; quais tarefas foram executadas; quanto tempo levou em cada tarefa; o valor recebido; o tempo de pausa entre tarefas (ALOISI e GRAMANO, 2019). Muitas empresas de crowdworking utilizam também a captura de imagens do computador pessoal dos seus trabalhadores “autônomos” para monitorar sua dedicação e produtividade.
Os locais de trabalho geridos por algoritmos, IA e softwares aprimoraram os mecanismos de vigilância e se tornaram espaços completamente vigiados.Para Adams-Prassl (2019) existem três fontes de informações dos dados dos trabalhadores que são utilizadas pelos empregadores: informação digital, sensores e o auto-rastreamento. As informações digitais são obtidas na captura da interação dos trabalhadores com o computador e da mesma forma em chamadas telefônicas.Os sensores, cada vez mais sofisticados, colocados algumas vezes em crachás, fazem a captura de informações físicas: se o trabalhador está em movimento ou parado, a sua proximidade de outros trabalhadores, se estão falando ou não, e a frequência e a duração que interage com os colegas. O auto-rastreamento é a utilização dos dados colocados pelos trabalhadores nas mídias sociais, que é cada vez mais utilizado para contratar, demitir e analisar o desempenho na segunda-feira.
Segundo Abílio (2020), em seu estudo sobre as plataformas digitais, a gestão algorítmica que elas praticam, são uma forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. As plataformas realizam a extração e manipulação de uma dimensão gigantesca de dados que permitem o mapeamento e o controle completo dos tempos de trabalho. Dubal(2023) menciona que o monitoramento e a vigilância do local de trabalho atingiram níveis extremos na atualidade. Sistemas automatizados registram e mensuram movimentos, pausas, os hábitos e também informações biométricas de saúde e nível de estresse do trabalhador.
ParaKatsabian(2023)enquanto no passado a gerência monitorava o trabalho, hoje ela monitora o trabalhador. A autora aponta que em muitos casos de trabalhadores manuais como os em Centros de Distribuição, caixas e motoristas, eles são obrigados a usar pulseiras ou programas de rastreio por GPS para terem seus movimentos monitorados constantemente. Essa vigilância constante leva o trabalhador muitas vezes a evitar realizar necessidades básicas como ir ao banheiro, pausa para relaxar ou simplesmente respirar descansadamente, podendo até interferir e “manipular as expressões faciais e a linguagem corporal – como se mover, como falar e até com que frequência sorrir” (KATSABIAN, 2023, P.9).
A falta de privacidade do trabalhador, ocasionada pela vigilância constante e mensuração de todos os seus movimentos, afeta a dignidade humana, leva a humilhação, a insegurança e a desumanização (KATSABIAN, 2023; AIZENBERG, HOVEN, 2020;ADAMS-PRASSL et al., 2023).Apesar da relevância dessas consequências por si mesmas, não podemos perder a perspectiva de que elas também são importantes fatores para o aumento da intensidade do trabalho.Para Katsabian (2023) o recolhimento e mensuração das informações dos trabalhadores no local de trabalho permitem que a empresa manipule a rotina de trabalho dos mesmos. De posse dessas informações a gestão busca o aumento da produtividade do trabalhador interferindo na rotina de trabalho, acelerando o ritmo e diminuindo pausas, em consequência tem-se a diminuição da autonomia do trabalhador para decidir como realizar o seu trabalho, em que ritmo e quando pode fazer uma pausa. Segundo a autora essa interferência nas ações rotineiras do trabalhador, tirando-lhe o poder de escolha de movimentos ordinários, o desumaniza e o trata como um robô.
Ao saber-se vigiado constantemente o trabalhador perde a naturalidade dos movimentos, mesmo os mais ordinários. Procura atender as exigências de ritmo impostas, evita pausas, descansos e mesmo ritmos mais lentos. A vigilância constante e a falta de privacidade, leva à desumanização do trabalhador, ao aumento da intensidade do trabalho, sua instrumentalização e manipulação(KATSABIAN, 2023).
5) Gameficação e gamblificação
Gameficação é o termo que majoritariamentevem sendo usando para se referir a estratégia da gestão algorítmica que utiliza a psicologia dos jogos para fazer com que os trabalhadores trabalhem de forma mais intensa, mais extensa e mais flexível.O sistema algoritmo captura a subjetividade do trabalhador simulando um jogo, tal qual um videogame, que utiliza metas e prêmios para induzir os trabalhadores a intensificarem seu ritmo de trabalho, prolongar sua jornada e trabalharem em dias e horários que a princípio eles não teriam interesse. O paradoxo da programação algorítmica é que apesar de exercer um poder elevado de controle sobre o trabalhador o mesmo não tem a percepção de estar sendo controlado (LEME, 2020).Dessa forma a gestão do tempo de trabalho através da gameficação interfere nas três dimensões do tempo de trabalho: extensão, intensidade e distribuição.
No entanto, no “Game” da vida real as regras são definidas unicamente pelas plataformas, e são frequentemente alteradas de forma discricionária para o seu máximo favorecimento.As estratégias para que os trabalhadores realizem jornadas extensas são as que mais utilizam a psicologia dos jogos. Estimular uma meta de tarefas para que o trabalhador ganhe um prêmio (um adicional de valor), exigir que os trabalhadores executem inicialmente as tarefas com menor remuneração para que gradualmente eles passem a receber a tarefas que remuneram melhor, ou ainda,a oferta de nova tarefa quando a que está sendo executada se aproxima do fim, e muitas vezes justamentenos momentos em que o trabalhador estaria deixando de trabalhar, induzindo o trabalhador a estender a sua jornada.
Apesar da referência a jogos (games–gameficação) ser bastante difundida, Dubal (2023) após entrevistas com trabalhadores da AmazonMechanicalTurk indica que areferência mais adequada seria a jogos de azar (gambling –gamblificação).Como é sabido nos jogos de azar a banca sempre ganha porque tem algumavantagem prevista nas regras do jogo, pelo expertise e porque se vale da “lei dos grandes números”. Dessa forma apesar dos algoritmos e da inteligência artificial utilizarem psicologia dos jogos para induzirem os trabalhadores a trabalharem de forma mais intensa, extensa e flexível a empresa ainda se vale de outros expedientes para aumentar sua lucratividade como a instrumentalização, a manipulação dos trabalhadores, a falta de transparência e a assimetria de informações.
6) A instrumentalização
A instrumentalização do trabalhador é uma das características mais marcantes do atual sistema de gestão,mas que, contraditoriamente, é pouco estudada e falada.AizenbergeHoven (2020, p.5) a definem como “Tratar um indivíduocomo substituível, sendo apenas um meio para um fim”. Em seu estudo sobre a necessidade de um desing da Inteligência Artificial que respeite os direitos humanos eles descrevem três categorias comuns de violações dos direitos humanos: humilhação, instrumentalização e rejeição do dom de alguém. Essas três categorias estão intrinsecamente ligadas e se reforçam mutuamente. Destacamos a principal característica citada da humilhação que reforça a instrumentalização do trabalhador que é o trabalhador ser colocado numa condição de insignificância e, da mesma forma, quando da rejeição de um dom do trabalhador tornando-o supérfluo, não reconhecendo a contribuição do mesmo. Segundo os autores, a gestão automatizada e opaca pode transformar comunidades de trabalhadores inteiras em supérfluas e permutáveis por inteligência artificial(AIZENBERG& HOVEN, 2020).
Braz (2020) aponta para a invisibilidade e para a baixa remuneração dos trabalhadores em microtarefas, e ao fato de que suas inteligências e criatividades serem ocultadas. Ele destaca a tendência de ter cada vez mais humanos trabalhando para máquinas, para torná-las mais eficientes e inteligentes. Tecnologias ditas autônomas e inteligentes necessitam de muito trabalho humano vivo para operarem e serem aperfeiçoadas constantemente. Gray e Suri (2019) se referem aos trabalhos taskificados como ghostwork (trabalho fantasma), que é feito por uma multidão de trabalhadores de forma anônima, na informalidade e em condições precárias e com baixa remuneração.
Essa superdivisão das tarefas, realizadas nas plataformas digitais, de forma anônima, em condições precárias, mal remunerada, espalhada pelo globo, chamadas de microtarefas, torna os trabalhadores facilmente substituíveis. Essas tarefas podem exigir maior ou menor conhecimento e especialização desde tarefas nas fazendas de clicks, criação de logotipos e folders, moderador de conteúdo, entre outros.No entanto, essa prática não se restringe somente aos trabalhadores plataformizados ela se expande para outros profissionais como as enfermeiras em hospitais, comerciários, professores e trabalhadores em Centros de Distribuição.
A possibilidade de substituição do trabalhador ser feita facilmente pode ocorrer por diferentes circunstâncias ou por uma combinação de circunstâncias tais como: a tarefa ser fragmentada e ter pouco conteúdo; o conteúdo ser absorvido pelo software e ao trabalhador caber o trabalho braçal; e a possibilidade de amplo recrutamento de novos trabalhadores, seja a nível mundial nos casos de trabalhos digitais, ou seja, mesmo localmente nos casos de trabalho on-demand.Essa ampla possibilidade de recrutamento e “contratação” feita por contrato de adesão dos trabalhadores plataformizados sem custo para as empresas, que as permitem terem um número ilimitado de trabalhadores a disposição, e a prática de rotatividade realizada nos trabalhos presenciais de tarefas rotinizadas como dos trabalhadores em Centros de Distribuição caracteriza a instrumentalização do trabalhador.
A instrumentalização do trabalhador o reifica, tornando mais fácil discricionariamente aumentar a extensão, a intensidade e a flexibilidade da jornada de trabalho tendo em vista que diminui sobremaneira o seu poder de barganha individual e mesmo coletivo.
7) A completa conexão
O direito a desconexão dos trabalhadores já vem sendo objeto de estudo há bastante tempoem função das possibilidades abertas pelas novas tecnologias de alcançar o trabalhador em qualquer lugar e em qualquer tempo (SOUTO MAIOR, 2003; ALMEIDA, SEVERO, 2016) e se intensificou com o aumento do teletrabalho e, particularmente do Home Office. O excesso de conexão, ou a conexão ilimitada, aparecem em diferentes ocupações e é estimulada de diferentes formas. Na raiz do atual problema estãoas tecnologias de comunicação como e-mail, messenger, whatsapp e o gerenciamento algorítmico e a estratégia de gameficação e de manipulação do trabalhador. Dependendo do local de trabalho o excesso de conexão traz diferentes problemas aos trabalhadores. Para aqueles que trabalham em casaa situação assume ares trágicos. Situação que foi vendida como positiva pelo fato dos trabalhadores não precisarem perder tempo de deslocamento, poder ficar no conforto do seu lar e, muitas vezes, flexibilidade para poderem realizar o trabalho quando melhor lhe aprouver. No entanto, vários problemas começaram a aparecer para os trabalhadores, como a falta de um espaço físico adequado, custos com o mobiliário adequado, aumento de custo da luz, internet, água e, principalmente, a perda da privacidade do seu lar e o embaralhamento de tempo de trabalho e de não trabalho e de local de trabalho e de não trabalho. Esse apagamento das fronteiras de tempo e espaço leva a completa conexão ao trabalho o que acarreta problemas familiares, de estresse, depressão entre outros problemas psicológicos (BELKIN, BECKER, CONROY, 2020; KAPPEL, MERLO, 2020).
O trabalho em Home Office, que é uma modalidade do teletrabalho, seja para trabalhadores plataformizados ou para trabalhadores formais apresenta problemas que se assemelham. A grande distinção é que no caso dos trabalhadores formais, alguns países já apresentam regulamentação para garantir o direito à desconexão (LEROUGE, PONS, 2022; BERGEN, BRESSLER, PROCTOR, 2019) enquanto para os trabalhadores plataformizados essa discussão ainda está no seu estágio inicial.
Oteletrabalho, tendo em vista que o trabalho pode ser executado não só de casa, mas também de locais como a rua, parques, cafeterias e coworkingspaces, adquiriu várias formas e se expandiu para os mais variados setores da economia.Para as empresas as vantagens são as mais variadas, pode se citar o ganho do espaço físico, a diminuição de custos como luz e material de escritório e a possibilidade de contratação independentemente da localização territorial do trabalhador. Muitos estudos já foram realizados,principalmente sobre o trabalho remoto em empresas plataformas como os de motoristas e entregadores, e eles apontam para estratégias para manterem os trabalhadores conectados o maior tempo possível. Essas estratégias variam de setor para setor e de tipo de vínculo do trabalhador, mas muitas delas se aplicam a todos, da mesma forma ou com alguma variação. As estratégias para que os trabalhadores fiquem conectados ininterruptamente muitas vezes seutilizam da psicologia dos jogos. Estimular uma meta de tarefas para que o trabalhador ganhe um prêmio (um adicional de valor), oferecer inicialmente as tarefas com menor remuneração para que gradualmente eles passem a receber a tarefas que remuneram melhor ea oferta de nova tarefa quando a que está sendo executada se aproxima do fim e justamente em momentos que o trabalhador estaria deixando de trabalhar.
Concomitantemente a esses expedientes mais sofisticados, muito utilizados pelas empresas plataformas, mas não só por elas, sobrevivem os antigos métodos de intimidaçãocom a demissão ou desligamento, a suspensão e a não promoção se o trabalhador não está disponível quando o seu superior ou cliente o solicita(BERGEN, BRESSLER, PROCTOR, 2019; SECUNDA, 2019). As novas tecnologias facilitam o acesso ao subordinado em qualquer lugar e em qualquer tempo, seja via e-mail ou whatsapp. Bergen, Bressler eProctor (2019) utilizam a expressão “onthe Grid 24/7/365” e apontam que o que aparentava ser uma novidade positiva para os trabalhadores, a possibilidade de trabalhar em qualquer lugar e em qualquer tempo, na realidade se apresenta como uma condenação de ter que trabalhar em todos os lugares o tempo todo. Challenger, Gray eChristmas, Inc. (2017) em sua pesquisa com 150 gestores de empresas nos EUA apontam que 82,9% estariam dispostos a entrar em contato com seus funcionários após o expediente e que 87,5% relataram que sua empresa não tem política específica para comunicação fora do horário de trabalho. Essa é uma boa pista para entendermos porque a maioria dos trabalhadores dos EUA se sente sobrecarregado (SECUNDA, 2019).
O direito a desconexão trata do direito do trabalhador de se desligar, de não se envolver em comunicações eletrônicas relacionadas ao trabalho, fora do horário de trabalho, seja depois da jornada diária estabelecida, finais de semana ou férias (EUROFOND, 2021). Esse problema cresceu na última década em função dos desenvolvimentos tecnológicos e se tornou visível pelo aumento de licenças médicas por problemas psicológicos. Vários países já tomaram medidas para a mitigação do problema, no entanto a França é reconhecida como pioneira nessa iniciativa com a Lei de 08/08/2016 (EUROFOND, 2021). A regulamentação do direito a desconexão é fundamental para evitar a extensão da jornada de trabalho para além dos limites contratados, ou no caso dos trabalhadores autônomos ou plataformizados para garantir uma jornada de trabalho dentro dos parâmetros da civilidade.
8) A manipulação
Os dados gerados pelos trabalhadores e extraídos pelas empresas desde sempre são fonte de poder e instrumentos utilizados para o aumento da produtividade dos trabalhadores. Na forma de organização do processo de produção taylorista,o Método Científico de Administração e, no fordismo,o Departamento de Recursos Humanos, tinham como objetivos o aumento da intensidade do trabalho e aumento da produtividade (BODIE, 2022). No entanto, as ferramentas existentes hoje são muito mais poderosas e automatizadas. Elas podem medir o tempo de execução de tarefas, as pausas entre tarefas, o número de teclas digitadas, o número de piscadas na frente da tela, o número de clicks no mouse,enfim são infinitas as possibilidades de medição e interpretação do tempo do trabalhador individual e coletivo. Esses números gerados pelos trabalhadores e captados e interpretados pelas empresas são utilizados contra os interesses dos trabalhadores, que são os geradores dos dados.
A manipulação dos trabalhadores, pelos empregadores, com os dados extraídos dos próprios trabalhadores ocorre na medida em que tendo as médias coletivas e os dados individuais as empresas passam a exigir dos trabalhadores que estão com a produtividade abaixo da média, o aumento na intensidade do trabalho. Bodie(2022) avalia que os trabalhadores estão presos em uma armadilha, quanto mais dados eles geram, mais poder as empresas tem sobre eles. Katsabian (2023) também coloca que com as informações extraídas dos próprios trabalhadores, as empresas podem manipular, individual e coletivamente, os trabalhadores para o aumento da produtividade.
Dubal (2023, p.7) em seu estudo sobre discriminação salarial, nas empresas Uber e Lift, produzidos pelo sistema de pagamento digital ou, em outras palavras, pelo sistema algoritmo, coloca que: “(…) pessoas que fazem o mesmo trabalho, com a mesma habilidade, para a mesma empresa, ao mesmo tempo, recebem diferente pagamento por hora”. A autora se refere a esse fato como sendo um salário personalizado que é viabilizado pela complexidade e obscuridade do sistema de cálculo que impossibilita os trabalhadores saberem como ele é definido ou mesmo quando é alterado e por quê.Com aumento do monitoramento e da vigilância no local de trabalho e os avanços da inteligência artificial, com a captura de dados de cada indivíduo que obtém hábitos, práticas e objetivos de rendimento, o software consegue estimar com excelente precisãoas taxas salariais necessárias para incentivar os comportamentos de cada indivíduodesejados pelaempresa (DUBAL, 2023; VALLAS, SCHOR, 2020; BODIE, 2022).
Com as informações extraídas de cada trabalhador a empresa sabe exatamente qual a remuneração que motivará o trabalhador a estender a sua jornada de trabalho, o tempo que ele se dispõe a esperar pela nova tarefa, que tipo de incentivo o motiva e qual a estratégia utilizar com cada trabalhador. Enfim, extraindo as informações individuais e analisando-as, a empresa pode manipular cada trabalhador e ter estratégias de gerenciamento individualizadas para intensificar o ritmo de trabalho, estender a jornada e estimular a distribuição do tempo de trabalho da melhor forma que lhe aprouver (DUBAL, 2023).
9) Ser tratado como um robô
“Nós não somos Robôs”. Esse slogan dos trabalhadores da Amazon no seu movimento grevista de 2017 alertou o mundo para um antigo problema que ressurge de forma mais intensa no novo sistema de produção da Indústria 4.0 e quetrouxe novas exigências aos trabalhadores. A capacidade de vigilância absoluta com a medição dos tempos de execução das tarefas, dos tempos de pausa, dos tempos de intervalo individual e coletivos, percurso percorrido, medição dos clicks no teclado e piscadas diante do monitor.
A gestão por algorítmico e IA vêm sendo utilizada para tomadas de decisão importantes sem uma supervisão humana. Essa gestão organiza, vigia, mede, avalia o desempenho e o comportamento no trabalho. Com os dados capturados e elaborados defini a colocação, a remuneração, a compensação, promoção, punições e mesmo desligamentos (KATSABIAN, 2023; DUBAL, 2023). Tendo o tempo de execução de tarefas e pausas entre tarefas dos trabalhadores individuais e coletivos a gestão algorítmica passa a exigir dos trabalhadores que demoram mais tempo para executar tarefas e dos que fazem intervalos mais longos entre tarefas uma diminuição desses tempos. Sempre que um trabalhador que está acima da média da equipe, diminui seu tempo de execução de tarefa ou de intervalo, ele faz também com que a média diminua e joga outro(s) trabalhador(es) para cima da média que por sua vez terá que se esforçar para atingir a nova média. Em empresas com grande entrada de novos trabalhadores como os setores plataformizados ou com grande rotatividade como nos Centros de Distribuição esses novos tempos são os parâmetros para os entrantes. Essa sistemática faz com que os tempos de trabalho se tornem cada vez mais intensos. Defalti (2021) ao analisar, os ritmos dos Centros de Distribuição da Amazon, coloca que existe um ritmo de trabalho a ser atingido ditado pelo algoritmo que dá apoio ao software do inventário.
Elkia e Nardi (2017) ao se referirem aos trabalhadores que fazem microtarefas para plataformas digitais colocam que eles são vistos como softwares. Braz (2021) vai além, ao apontar que os trabalhos realizados são derivados de relações entre máquinas porque seus executores não são conhecidos e nem reconhecidos pelos verdadeiros demandantes das tarefas. O trabalhador que executa a tarefa não aparece e as avaliações sobre o seu trabalho são realizadas friamente tal qual uma conferência de dados feita por um computador. Katsabian (2023) também aponta para a tentativa de asempresas transformarem os trabalhadores em robôs, ou seja, ela destaca a enorme exigência de intensidade do trabalho e medição do tempo de execução de tarefas e do intervalo de tarefas que tornam o ritmo de trabalho padronizado, rígido e sobre-humano.
Considerações finais
As novas tecnologias vieram para ficar e avançar. Não podemos e não devemos frear seus avanços.No entanto, é imprescindível que minimizemos os seus efeitos perversos e distribuamos melhor os frutos do seu desenvolvimento. Como a história já nos ensinou, deixar para o “mercado” realizar as inovações e definir como será realizada sua utilização de forma discricionária, maximizará os lucros dos capitalistas e deixará um rastro de problemas para a sociedade lidar com eles e arcar com seus custos.
A inteligência artificial a cada dia que passa adquire novas funcionalidades e ganha mais sofisticação. Nas relações de trabalho ela está consolidada como ferramenta na gestão de pessoal e conquista novos espaços com uma velocidade impressionante. Apesar de estarmos vivenciando o início da sua utilização, já é bem perceptível os problemas que essa ferramenta de gestão acarreta aos trabalhadores: a discriminação, a falta de privacidade, a instrumentalização e a manipulação, são apenas alguns dos expedientes aqui descritos,mas que afetam a dignidade humana, leva a humilhação, a insegurança, a desumanização, enfim reificam os trabalhadores.
No tocante aos impactos no tempo de trabalho, que é o cerne da disputa entre capital e trabalho, cada expediente utilizado de forma discricionária pelos capitalistas atinge de forma específica uma ou mais das dimensões do tempo de trabalho buscando estender a jornada, torna-la mais flexível e intensa. A falta de transparência, a assimetria de informações, a discriminação, a gameficação e a instrumentalização impactam diretamente nas três dimensões. A manipulação impacta a intensidade e a distribuição, enquanto a vigilância e a falta de privacidade e ser tratado como um robô afetam mais diretamente a intensidade do trabalho. A maior, ou a completa, conexão ao trabalho afeta a extensão do tempo de trabalho.
As normas e leis de direitos digitais devem ser elaboradas para dar direito e proteção aos trabalhadores contra as formas de gestão algorítma, de inteligência artificial e por softwares que levam ao limite a exploração dos trabalhadores precarizando as condições de trabalho. Aos moldes do que foi feito para proteção dos cidadãos na União Europeia,com o Regulamento Geral de Proteção de Dados, e no Brasil, com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, deve ser criado um regulamento específico para uso e monitoramento dos dados nas relações de trabalho. Urge que o parlamento brasileiro discuta essas questões ecrie leis que imponham limites às técnicas de gestão aqui apontadas. Leis que impeçam esse movimento perpetrado pelos donos do capital que controla, manipula, humilha e desumaniza os trabalhadores.
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de financiamento 001. Ele se beneficiou dos artigos selecionados e pelas discussões realizadas no grupo de estudo sobre inteligência artificial do Bonavero Institute of Human Rights do Magdalen College da Universityof Oxford coordenado por Jeremias Adams-Prassl e organizado por Halefom Abraha, Michael ‘Six’ Silberman e Sangh Rakshita. Agradeço a oportunidade de participar das discussões e os isento de qualquer erro ou imprecisão que porventura tenha no texto.
[1] Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS, Doutor em Economia Social e do Trabalho pela UNICAMP e Pós-doutor na Universidade de Oxford sob orientação de Diego Sanchez-Ancochea. E-mail: cassio.calvete@ufrgs.br
Acesse no arquivo abaixo a apresentação de slides usada em apresentação no evento Diálogos do Trabalho SC