Foto: cassimano/Flickr

O fim da escala 6×1 e o direito de sonhar

Com a ajuda de véus que revertem o sentido da realidade, a lógica contemporânea roubou o tempo de sono e o que ele proporciona de melhor às pessoas


Não aconteceu de repente, em um único ato insano de alguma mente psiquicamente desequilibrada. Foi um processo que obedeceu a uma lógica, que desde Karl Marx atende pelo nome de ideologia — uma inversão dos fatos da realidade até que eles fiquem de ponta-cabeça, de tal modo que não sejam mais reconhecíveis enquanto tais. Como resultado, consolidaram-se ideias invertidas e sonâmbulas que encobrem com 1.000 véus um corpo ferido, agonizando, respirando com dificuldade, à beira do colapso físico e mental: o corpo moribundo do trabalho contemporâneo.

Quem ainda se lembra da frase alemã Arbeit macht frei (“o trabalho liberta você”, em tradução livre), irônica expressão fixada nos portões de campos de extermínio nazistas na Segunda Guerra Mundial? Pois bem, há ecos fortes por aqui. “Trabalhe enquanto eles dormem”, dizem os influenciadores digitais que prometem riqueza e sucesso a quem dificilmente conseguirá acumular alguns reais durante a vida. “Pelo menos eu faço meu horário”, afirmam os motoristas e entregadores de aplicativo, sufocados por jornadas superiores a 12 horas para obter o mínimo sustento à família. Enquanto se agarram a frases como essas, trabalhadores de todo tipo acabam por não perceber que se trata da destruição contínua e eficaz de um bem maior: seu tempo de vida. 

Uma das consequências mais trágicas do estado terminal do trabalho contemporâneo é que, das pessoas trabalhadoras, foi usurpado o direito de sonhar. Não falo de fantasiar sobre um futuro melhor nem das tais utopias sociais, agora bastante desacreditadas. Falo, sim, dos sonhos noturnos, aqueles que costumam brotar no momento da opacidade da consciência. Sonhar é importante para consolidar a memória, prevenir doenças neurológicas e até para resolver simbolicamente nossos conflitos subjetivos. Para um grande conhecedor da magia dos sonhos — Sigmund Freud —, são eles que protegem nosso sono das invasões perturbadoras do inconsciente. Lembremos que, quando decifrados por nós mesmos ou na psicanálise, os sonhos nos levam a um entendimento maior de nossas experiências diurnas. Sonhar é tão necessário quanto se alimentar bem ou se exercitar fisicamente. Por isso não é um exagero dizer que privar alguém do sonho equivale a um crime. Sim, o que está acontecendo no mundo do trabalho contemporâneo pode ser chamado de roubo descarado de um direito humano fundamental: o direito de sonhar.

Trabalhadores de todo tipo acabam por não perceber que se trata da destruição contínua e eficaz de um bem maior: seu tempo de vida

O roubo dos sonhos atinge um amplo espectro social: de quem faz serviço braçal ou de escritório a quem é gerente de banco ou CEO de grande empresa. A insônia persistente tem como raiz preocupações financeiras, aflições com metas impossíveis de se atingir e, principalmente, o medo do desemprego, de atrasar o boleto ou do fracasso diante das expectativas de uma vida movida pelo consumo. 

Aliás, o roubo dos sonhos já se reflete em frias estatísticas. Em 2024, o Brasil registrou um número recorde de afastamentos do trabalho por problemas de doença mental, totalizando 472.328 licenças médicas concedidas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). O número preocupante representa um aumento de 68% em relação ao ano anterior. No topo dos sintomas descritos pelos trabalhadores nos pedidos de afastamento estão ansiedade e depressão. Outros sintomas relatados, tais como sensação de nervosismo, inquietação, fadiga, irritabilidade, tensão muscular e dificuldades de concentração, costumam aflorar após noites mal dormidas, insônia que se repete por meses, até por anos.

Se as vítimas do roubo dos sonhos não têm classe social, os alvos desse crime em sua forma mais explícita — um roubo à mão armada e violento — têm. São os trabalhadores de baixa renda das metrópoles contemporâneas, empurrados para as periferias, a horas de distância de seus locais de trabalho. No ir e vir, o tempo para dormir se encurta. “Na região metropolitana de São Paulo, há uma clara dissociação entre a localização do emprego e a da moradia, com grande parte da população levando entre duas e três horas para chegar a seus trabalhos diariamente”, explica a urbanista Alejandra Maria Devecchi, da Ramboll, empresa dinamarquesa de planejamento voltada para questões ambientais, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. 

É nesse quadro que surgiu o movimento VAT (Vida Além do Trabalho). A iniciativa vem convocando pessoas a se posicionarem contra a escala 6×1. A finalidade é reduzir a jornada mantendo o mesmo salário. Nas redes sociais, o VAT publica frases impactantes de trabalhadores de todas as partes do país, tais como: “trabalhador não é máquina”, “somos milhões que merecemos mais do que só trabalhar e adoecer”, “todos na mesma dor: jornada exaustiva, medo, humilhação e abandono; isso não é normal”. É um movimento que defende uma escala horária semanal que dê aos trabalhadores o direito de viver — e de sonhar.

Uma pesquisa Datafolha de dezembro de 2024 mostrou que há brechas para desmontar a lógica de frases como “trabalhe enquanto eles dormem”. No levantamento, 64% dos brasileiros disseram apoiar o fim da escala 6×1. É um alento. O Congresso, porém, parece ainda não ter acordado para o tema. Enquanto a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que reduz a jornada de trabalho tramita lentamente em comissões, os parlamentares gastam suas energias sonâmbulas em projetos de anistia a golpistas. 

O corpo moribundo do trabalho, esse fazer demasiadamente humano, continua à espera de ser reencantado pelos sonhos. 

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