O Supremo contra os trabalhadores
STF posiciona-se em defesa da democracia formal, mas promove o desmonte dos direitos trabalhistas. Ao ceder ao ativismo judicial das corporações, não nega apenas a justiça social: também mina bases para um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo
Por Erik Chiconelli Gomes
Ao longo da história, o Direito do Trabalho no Brasil se consolidou como uma ferramenta essencial na proteção dos direitos da classe trabalhadora, sempre tensionado entre os interesses do capital e as demandas por justiça social. No entanto, o que se observa nas últimas décadas, especialmente a partir das reformas neoliberais dos anos 1990, é um processo sistemático de desconstrução dessas garantias. O Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria atuar como guardião dos direitos fundamentais, tem desempenhado um papel paradoxal, promovendo decisões que fragilizam as conquistas históricas do movimento operário.
A perspectiva histórica é fundamental para compreendermos esse processo. Desde a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, o Direito do Trabalho no Brasil buscou equilibrar as relações entre capital e trabalho, assegurando direitos fundamentais aos trabalhadores. Como destaca Delgado (2019), em sua obra Curso de Direito do Trabalho, a CLT representou um marco na história das lutas sociais no Brasil, instituindo um arcabouço jurídico que visava proteger o trabalhador da exploração desmedida. Contudo, as decisões recentes do STF, ao flexibilizarem esses direitos, estão revertendo décadas de avanços, levando o Brasil a um retrocesso jurídico e social.
Um exemplo contundente dessa desconstrução é a legitimação da terceirização irrestrita pelo STF, que permite a terceirização em qualquer atividade, inclusive nas atividades-fim. Antunes (2018), em O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital, observa que a terceirização não é apenas uma forma de precarização do trabalho, mas também uma estratégia de fragmentação da classe trabalhadora, que enfraquece a solidariedade e a capacidade de organização sindical. Esse processo, que se intensificou após a Reforma Trabalhista de 2017, é parte de uma ofensiva neoliberal mais ampla, que busca desregulamentar o mercado de trabalho e aumentar a exploração da força de trabalho.
Outra prática perniciosa é a pejotização, que força trabalhadores a se tornarem pessoas jurídicas (PJs) para driblar a legislação trabalhista. Essa prática, como analisa Coutinho (2015) em Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora, é uma forma de fraude que desvirtua a relação de emprego e priva os trabalhadores de direitos básicos, como férias, 13º salário e proteção contra demissões arbitrárias. O STF, ao permitir a prevalência da pejotização sobre o vínculo empregatício, legitima essa precarização e desumaniza o trabalho, transformando o trabalhador em um prestador de serviços sem qualquer proteção social.
A postura do STF em relação às convenções coletivas de trabalho é igualmente preocupante. Ao decidir que essas convenções podem prevalecer sobre a legislação trabalhista, mesmo quando estabelecem condições de trabalho inferiores às garantidas por lei, o Supremo subverte a lógica protetiva do Direito do Trabalho. Essa decisão, como destaca Souto Maior (2017) em A Quem Interessa essa ‘Reforma’ Trabalhista?, não só enfraquece a capacidade de negociação dos trabalhadores, mas também institucionaliza a desigualdade, favorecendo os interesses do capital sobre os direitos fundamentais da classe trabalhadora.
A “uberização” do trabalho, um fenômeno global que encontrou terreno fértil no Brasil, é a face mais recente dessa precarização. Como aponta Abílio (2020) em Uberização: Do Empreendedorismo para o Autogerenciamento Subordinado, a uberização representa uma nova forma de exploração do trabalho, caracterizada pela ausência de vínculos empregatícios formais e pela desproteção social. Nesse modelo, o trabalhador é reduzido a um número em uma plataforma digital, sem garantias de direitos básicos ou segurança econômica. O STF, ao decidir sobre a natureza jurídica desse tipo de relação de trabalho, definirá o futuro das relações laborais no Brasil, com potencial para agravar ainda mais a precarização.
A desconstrução do Direito do Trabalho no Brasil, promovida por decisões judiciais que favorecem o capital em detrimento dos trabalhadores, deve ser entendida como parte de um movimento global de avanço do neoliberalismo. Krein (2018), em sua análise crítica sobre a reforma trabalhista, ressalta que essa tendência não é exclusiva do Brasil, mas aqui assume contornos particularmente dramáticos devido à histórica fragilidade das instituições de proteção social e à profunda desigualdade que caracteriza o mercado de trabalho. Essa desconstrução jurídica reflete a correlação de forças entre o capital e o trabalho, onde o primeiro tem imposto sua agenda de flexibilização e desregulamentação.
O papel do STF nessa desconstrução é paradoxal e revela as contradições internas do sistema jurídico brasileiro. Como observa Streck (2018), ao mesmo tempo em que o Supremo se posiciona contra extremismos políticos e defende a democracia formal, ele promove uma desconstrução das bases materiais da cidadania trabalhadora. Essa contradição expõe a influência predominante dos interesses do capital na interpretação e aplicação das leis, desvelando um ativismo judicial que se alinha com a agenda neoliberal de desmonte dos direitos sociais.
Nesse contexto, é crucial que a classe trabalhadora reconheça a gravidade do momento histórico que estamos vivendo. A destruição das garantias constitucionais do trabalho não é apenas uma questão jurídica, mas um ataque direto às condições de vida e de trabalho da maioria da população. A resistência a essa ofensiva deve partir de uma organização coletiva capaz de contrapor a lógica do individualismo e da fragmentação promovida pela uberização e pela pejotização. Somente através da solidariedade e da luta organizada será possível defender as conquistas históricas do movimento operário e avançar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
A história do trabalho no Brasil, como bem destaca Gomes (2014) em A Invenção do Trabalhismo, é uma história de lutas e resistências, onde cada direito conquistado foi resultado de mobilizações e enfrentamentos. Hoje, diante da ofensiva neoliberal e da desconstrução do Direito do Trabalho, é imperativo que os trabalhadores retomem essa tradição de luta para enfrentar os desafios do presente. A preservação dos direitos trabalhistas não é apenas uma questão de justiça social, mas também de dignidade humana e de construção de um futuro onde o trabalho seja valorizado e respeitado.
O impacto da desconstrução do Direito do Trabalho vai além das relações laborais, afetando profundamente a estrutura social e econômica do país. Como argumenta Pochmann (2020) em Tendências Estruturais do Mundo do Trabalho no Brasil, a precarização das relações de trabalho tem contribuído para o aumento da desigualdade social, a estagnação da mobilidade social e o enfraquecimento do mercado interno. Essas consequências não apenas comprometem o bem-estar da classe trabalhadora, mas também minam as bases para um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo.
A luta pela manutenção e ampliação dos direitos trabalhistas deve ser vista como parte de um projeto maior de sociedade. Nesse sentido, é fundamental que os movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos comprometidos com a justiça social unam forças para resistir à ofensiva neoliberal e propor alternativas. Como sugere Boito Jr. (2018) em Reforma e Crise Política no Brasil, a construção de uma frente ampla em defesa dos direitos sociais e trabalhistas é essencial para reverter o processo de desconstrução do Direito do Trabalho e retomar o caminho do desenvolvimento com justiça social.
É importante ressaltar que a defesa do Direito do Trabalho não significa a defesa de um modelo estático e inflexível. Como aponta Carelli (2020) em O Mundo do Trabalho e os Direitos Fundamentais, é necessário adaptar a legislação trabalhista às novas realidades do mundo do trabalho, mas sempre mantendo como princípio fundamental a proteção do trabalhador e a busca pela justiça social. Isso implica em pensar formas inovadoras de regulação que possam abranger as novas modalidades de trabalho, como o trabalho por plataformas digitais, sem abrir mão das garantias fundamentais.
Conclui-se que o processo de desconstrução do Direito do Trabalho no Brasil, liderado pelo STF, representa um retrocesso histórico de proporções significativas. As decisões que flexibilizam e precarizam as relações de trabalho estão desmantelando um arcabouço jurídico que levou décadas para ser construído, comprometendo o futuro das relações laborais no país. A resposta a esse processo deve ser a organização e a mobilização da classe trabalhadora, em defesa de seus direitos e de um projeto de sociedade mais justo e solidário. Somente através da ação coletiva e da reafirmação dos princípios fundamentais do Direito do Trabalho será possível construir um futuro em que o trabalho seja fonte de dignidade e realização humana, e não de exploração e precariedade.
A desconstrução do Direito do Trabalho no Brasil deve ser analisada também sob a ótica da História Econômica do Trabalho. Como argumenta Cardoso (2019) em sua obra Adeus, Trabalho? O Emprego e a Classe Trabalhadora em Debate, as transformações nas relações de trabalho e a erosão dos direitos trabalhistas não são fenômenos isolados, mas parte de um processo histórico mais amplo de reestruturação produtiva e mudanças no capitalismo global. A flexibilização e precarização do trabalho, legitimadas por decisões judiciais e reformas legislativas, representam uma nova fase na história econômica do trabalho no Brasil, caracterizada pela intensificação da exploração e pela transferência de riscos do capital para o trabalhador. Esse processo não apenas compromete as conquistas históricas da classe trabalhadora, mas também reconfigura profundamente a estrutura do mercado de trabalho e as relações de poder na sociedade brasileira, com implicações de longo prazo para o desenvolvimento econômico e social do país.
Referências
ABÍLIO, L. C. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2020.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BOITO JR., A. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Unicamp, 2018.
CARDOSO, A. Adeus, trabalho? O emprego e a classe trabalhadora em debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2019.
CARELLI, R. L. O mundo do trabalho e os direitos fundamentais: o Ministério Público do Trabalho e a representação funcional dos trabalhadores. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.
COUTINHO, G. F. Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora. São Paulo: LTr, 2015.
DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.
GOMES, A. C. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2014.
KREIN, J. D. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Social, v. 30, n. 1, p. 77-104, 2018.
POCHMANN, M. Tendências estruturais do mundo do trabalho no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 1, p. 89-99, 2020.
SOUTO MAIOR, J. L. A quem interessa essa “reforma” trabalhista? Revista Síntese: trabalhista e previdenciária, v. 29, n. 336, p. 9-24, 2017.
STRECK, L. L. O que é isto – decido conforme minha consciência? 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
Fonte: Outras Palavras
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Publicado 21/08/2024