O trabalhador está nu – ou quase
Por Tarso de Melo
Proletarização: creio que esta será uma palavra-chave no vocabulário daqueles que pretendem entender o que aconteceu no Brasil (não apenas, mas aqui é nosso caso) nos últimos anos e, mais ainda, daqueles que estão dispostos a acompanhar as formas novas e mais terríveis que a relação entre capital e trabalho está assumindo em nosso país. Nunca houve, de fato, “paraíso” na vida do trabalhador assalariado, mas quem goza(va) da dupla CTPS & CLT já viveu momentos melhores do que indicam os movimentos dos últimos anos, com a aprovação da “reforma trabalhista” de Michel Temer, e as propostas do novo governo para os próximos anos.
Não precisamos dar muitas voltas, porque o novo presidente é alguém que se elegeu defendendo uma “carteira de trabalho verde e amarela” para quem “quer trabalhar sem ter direitos” e, junto com seu staff, fala abertamente da extinção de todas as instituições ligadas à defesa dos trabalhadores – do Ministério do Trabalho à Justiça do Trabalho, dos sindicatos às centrais sindicais, dos partidos de esquerda ao Ministério Público do Trabalho. Em suma, seu desejo nada secreto é extirpar “trabalhador” e outras palavras “vermelhas” do dicionário. Não apenas do dicionário…
Para tanto, o discurso é o mesmo a que sempre recorrem os defensores de “mais liberdade” na relação entre patrão e empregado, para salvar os empregos e garantir a competitividade das empresas e, assim, do país: “o Estado protege demais os (coitadinhos dos) trabalhadores e sacrifica o (generoso) empresariado”. Esta talvez seja a parte mais amarga do discurso para quem estuda de perto o que acontece dentro das relações reais de trabalho no Brasil e mesmo nos casos que chegam ao Judiciário, porque a vida do trabalhador, mesmo registrado e nas grandes empresas, não é mole.
Um exemplo? Dias atrás, conversei com um motorista de guincho, que trabalha para uma empresa terceirizada a serviço da seguradora de um grande banco. Ele deve ter entre 50 e 60 anos, seguramente, e fica à disposição dentro do caminhão-guincho no mínimo 12 horas por dia, 6 dias por semana. Sim, uma jornada mínima semanal de 72 horas. Mínima, sim, porque ele me disse que, enquanto está dentro do seu horário, tem que atender novos chamados de socorro, que nunca sabe quanto tempo demandarão, estendendo normalmente sua jornada para 14 ou 16 horas. Em alguns dias, já chegou a “virar” de uma jornada para outra, sem voltar para casa.
A semana, no relógio, tem 168 horas. E estamos falando de um trabalhador que fica em torno de 100 horas por semana dentro de um caminhão. Um trabalhador à moda antiga, com registro em carteira. Essa jornada absurda seria bastante fácil de comprovar num processo judicial, mas, segundo ele me contou, poucos de seus colegas de trabalho chegam a processar a empresa, porque têm medo de ficar com o “nome sujo” num mercado concentrado por poucos patrões. Seu atual empregador, por exemplo, tem 70 caminhões apenas atendendo a seguradora do grande banco e ele calcula que sejam uns 100 motoristas, todos registrados e trabalhando 100 horas por semana.
Posso assegurar que não é uma situação excepcional e também que a tendência, nos próximos anos, é que façam de tudo para que esse motorista passe a ter vergonha do seu “privilégio” de ter uma carteira de trabalho azul. Este, aliás, é um movimento que vem de muito tempo, mas que vai ganhando contornos cada vez mais perversos. Como demonstra cuidadosamente o sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp, em seu novo livro (O privilégio da servidão, lançado pela Boitempo), “os jovens de hoje, qualificados ou não, nativos ou imigrantes, se tiverem sorte terão o privilégio de serem servos”, porque a eliminação dos direitos trabalhistas, em todo o mundo, vem como uma avalanche sobre o modelo de relação trabalhista que conhecemos.
E é justamente aí que temos que voltar a pensar a importância do que acontece nas relações de trabalho para as demais relações que se estabelecem numa sociedade capitalista. Quero dizer: a forma como o trabalhador é tratado, com mais ou menos justiça, mais ou menos dignidade, mais ou menos segurança, é a forma que a sociedade vai assumir no geral. Quando uma sociedade relega os trabalhadores à própria sorte, não demora para que os efeitos dessa decisão sejam sentidos na vida de todos, mesmo daqueles que conseguem passar de helicóptero sobre nossas cabeças.
Não é algo tão simples e mecânico, mas, no geral, funciona como uma via de mão dupla: melhores condições de trabalho criam sociedades melhores, piores condições de trabalho criam sociedades piores. Não podemos negligenciar essa relação. Olhando ao redor, aqui no ABC paulista, por exemplo, é evidente o efeito que longos ciclos de empregos formais, com bons salários, respeito a direitos, acesso à justiça etc., deixam para as cidades ricas em que vivemos: desiguais, claro, com grandes problemas e massas de excluídos, mas ricas, com grande parte de seu território ocupado por boas casas, prédios de diversos padrões, infraestrutura pública (em saúde, educação etc.), lojas e serviços de todos os níveis. Tem muito a ser discutido aí, claro, mas é fácil encontrar, nas ruas, o resultado dos bons empregos da região.
O que chamamos de classe média, por aqui, é resultado, em grande medida, de conquistas relacionados a bons empregos anteriores, de outras gerações da família ou em outras etapas da vida. É muito fácil encontrar nessa classe diversos exemplos de pais (migrantes e imigrantes) metalúrgicos que formaram os filhos em Engenharia, Direito e outros cursos superiores, têm casa, carro, aposentadoria, etc. Famílias que fizeram seu patrimônio recebendo 13 salários por ano, tendo plano de saúde, previdência social e, em muitos casos, também condições de pagar planos de previdência privada. Tudo isso, a rigor, fruto da dupla CTPS & CLT durante as décadas passadas.
Outro ponto a ser pensado, no entanto, é por que essa classe média, mesmo aquela que é ainda assalariada ou que, por várias gerações, foi bem tratada pelos direitos do trabalhador, não se considera mais “trabalhadora” e agora faz o elogio, um tanto ingrato e desmemoriado, do “trabalhador nu”, como eu gosto de chamar essa figura em ascensão: o empreendedor de si mesmo, sem direitos, sem patrão, ou melhor, com múltiplos patrões sem vínculo formal, recebendo apenas e tão-somente pelas “horas de serviço efetivamente prestado”. É o “pejota”, o “frila”, o “colaborador”, todas essas figuras que encontramos por aí – e em que nos transformamos.
Esse divórcio do trabalhador com sua história familiar, pessoal ou mesmo com sua condição atual, olhando para o sistema protetivo do trabalho como se fosse uma máquina inimiga dos seus interesses, rejeitando nela a afirmação de que pertence a algo que se chama “classe trabalhadora”, tem uma longa gestação, múltiplas causas, e não cabe aqui mergulhar nos detalhes, mas é possível anotar: o silêncio que se segue à afirmação de que “os trabalhadores têm direitos demais” é resultado de um longo trabalho de “demonização da classe trabalhadora” por políticos, empresários, grande mídia e outros poderosos interessados na desarticulação da resistência dos trabalhadores à forma como o capital gosta de passear sobre nossos direitos.
Nesse sentido, vale acompanhar o trabalho do jovem escritor britânico Owen Jones, que tem investigado em detalhe e combatido essa “demonização”, nas múltiplas formas que ela assume. Jones nasceu em 1984, estudou História e é autor de dois livros de grande sucesso, Chavs (2011) e The Establishment (2014), que ainda não têm edição brasileira. São muitas as pontes que podemos fazer entre tatcherismo e bolsonarismo, sob o guarda-chuva comum do neoliberalismo, a partir de seus livros.
Entre outros discursos destrutivos, o bolsonarismo soube se alimentar também da demonização da classe trabalhadora, segundo a qual o sucesso no trabalho é uma questão de desempenho individual, o desemprego e a pobreza são problemas pessoais, a solidariedade é um mal, os benefícios sociais estimulam a ociosidade, e por aí vai. À sombra dessas “verdades”, é claro que o perfil dos governos e governantes deve ser outro: não mais aquele que representa uma classe, mas o empresário de sucesso. O vencedor. Curiosamente, o novo presidente não é uma coisa nem outra, mas conseguiu se eleger contra a “ameaça” de que os “vermelhos” voltassem ao cargo.
É com isso que temos que lidar. E o enfrentamento, agora e sempre, passa pelo mesmo lugar: é apenas como classe que os trabalhadores conseguirão resistir à destruição não apenas de seus direitos, mas de seus corpos, de seus sonhos, de suas chances. O trabalhador nu, sem qualquer direito antes, durante ou depois de começar a trabalhar, não tem como resistir. Nada lhe cobre, nem mesmo a palavra “trabalhador”, então fica muito fácil atingir sua vida – isolada e indefesa.
Não é por acaso que hoje se tornou tão comum, em tatuagens, camisetas, bonés, hashtags, trazer para o cotidiano do mundo do trabalho o que se exigia de soldados em guerra, atletas de alto rendimento e outras pessoas sujeitas a grandes sacrifícios (o motorista de guincho a que me referi tinha a palavra “fé” em vários lugares dentro da cabine do caminhão; por todo lado se lê “no pain no gain”, “resiliência”, coisas assim). Não é um bom sinal que a luta pela sobrevivência diária seja vista, por tantas pessoas, de diversas gerações, como um desafio sobre-humano. É sinal de que os “indivíduos” estão buscando apenas dentro de si e até noutro mundo aquilo que podem encontrar nos demais trabalhadores ao seu redor: a força que têm quando se unem.
Fonte: Revista Cult UOL
Por Tarso de Melo
Data original de publicação: 15-01-2019