O trabalho à distância na pandemia sobrecarregou principalmente as mulheres

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Por Flávia Traldi Lima, Gustavo Tank Bergström e Sandra Francisca Bezerra Gemma | Justificando

“A pandemia do COVID-19 provocou mudanças nos mais diversos campos da vida, interferindo, diretamente, na forma com que as relações sociais se desenvolvem. O trabalho, como atividade produtiva base do sistema capitalista, não ficou imune a este fenômeno. Como medida para a situação de calamidade pública do novo vírus, o Governo Federal editou a Medida Provisória 927/2020 (caducada em julho/20) e ampliou as possibilidades de trabalho à distância, a citar o teletrabalho, ou o home-office. Tal fato permitiu que os empregadores – a seu critério – pudessem mudar o ambiente de trabalho de seus empregados para o modelo remoto, independentemente de diálogos ou negociações.

Se de um lado, a possibilidade do trabalho remoto surgiu como necessidade sanitária e por vezes é vislumbrada como “privilégio” por parcela de empregadores e empregados, do outro, a medida abre espaço para eliminação dos direitos do trabalho e implicações para a saúde de diversas trabalhadoras. Diante desse cenário, o presente ensaio faz uma breve análise do trabalho feminino à distância durante os meses mais críticos da pandemia do COVID-19.

A implementação do trabalho à distância e suas implicações

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu notificações sobre a incidência de vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na China. Uma semana depois, identificou-se a existência de um novo tipo de corona vírus, o SARS-Cov-2, responsável por causar a doença COVID-19.

Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou seu surto, alertando para uma emergência de Saúde Pública de importância internacional, o mais alto nível de alerta da organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Diante de sua intensa disseminação, em 12 de março a doença foi caracterizada como uma pandemia, atingindo vários países ao redor do mundo. 

Mediante estado de calamidade pública, por se tratar de um vírus com alto grau de disseminação, repentinamente muitos trabalhadores se viram impossibilitados de realizar suas funções de modo presencial. A partir daí, funções remotas como teletrabalho e home-office realizadas eventualmente em casos de emergência como enchentes e outros, tornaram-se uma das principais modalidades de trabalho no país e no mundo.

Embora se configurem como um tipo de trabalho remoto, teletrabalho e home-office possuem características e atributos próprios. De acordo com a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017), o teletrabalho consiste resumidamente na prestação de serviço em qualquer lugar, fora das dependências do empregador, com utilização de tecnologias de informação e comunicação (TICs), não havendo controle de jornada do empregado e não sendo possível o direito adicional de horas extras. Já o termo home-office diz respeito a uma categoria de teletrabalho, cuja a peculiaridade consiste no trabalho a ser realizado na casa do trabalhador[1].

O contexto que envolve a situação de pandemia e a modalidade de atuação remota tem apontado para diferentes formas de intensificação do trabalho e forte controle das atividades por meio de sistemas digitais de vigilância e controle[2]. Tal situação se agrava na medida em que tratamos tais aspectos sob a perspectiva de gênero e do teletrabalho, dado que os impactos e as implicações do novo coronavírus se apresentam de diferentes formas para homens e mulheres[3]. 

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), as mulheres são as mais afetadas pelo trabalho não-remunerado, principalmente em tempos de crise[4]. Na situação pandêmica, evidencia-se uma intensificação ainda maior do trabalho doméstico, não remunerado, que implica em duplas/triplas jornadas de trabalho às mulheres, incluindo a sobreposição de tarefas e a concorrência delas na esfera temporal.

Em decorrência do distanciamento e isolamento social, aumento de doentes, do fechamento das escolas e da ampliação do trabalho remoto, recaem ao gênero feminino, de forma acentuada, o trabalho não remunerado, invisível e não reconhecido simbólica e materialmente, atribuído ao cuidado às crianças, doentes, idosos e a manutenção do lar. No caso da situação de pandemia, agrega as precauções de higiene para evitar a Covid-19 junto aos demais membros da família[5].

Esse acúmulo e concorrência de atividades na situação de pandemia e home office demandam com mais intensidade à mulher, que necessita conciliar trabalho doméstico e laboral, permeado por longos períodos de atividade online dentro de casa e acentuado por vigilância das tarefas pelos empregadores, bem como cobranças por manter a qualidade e a produtividade. Pois, na medida em que o trabalho se desloca do espaço público para o privado, o modo de morar se transforma em modo de trabalho e vice-versa, podendo ser impossível dissociá-los e distingui-los, afetando frontalmente os tempos de lazer e trabalho[6]. 

Importante ressaltar que, a responsabilização de tais atividades quase exclusivas às mulheres que se aplica se forma naturalizada, se reproduz com base na divisão sexual do trabalho, legitimada por uma ideologia estritamente biológica[7].  Divisão essa que reduz práticas sociais a papéis sexuados, de modo a incidir representações de feminino e masculino que influenciam homens e mulheres em determinadas categorias, setores e ocupações no trabalho, de modo a perpetuar estratégias de acumulação e reprodução violentas do capital.

Conclusões

As análises realizadas apontam que medidas de distanciamento social promovidas pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19) e a ampliação do trabalho na modalidade remota, como teletrabalho e home-office, intensificaram ainda mais o trabalho assalariado e doméstico, este último não remunerado, realizado majoritariamente por mulheres. Isso porque, acentuou-se o controle sobre as atividades remotas por vias digitais, que somadas ao isolamento dos indivíduos, aumento de doentes, fechamento das escolas e a divisão sexual do trabalho, recaíram às mulheres, de forma ainda mais acentuada os papeis sociais que naturalizam a responsabilização do cuidado e da vida reprodutiva, demonstrando que a pandemia do COVID-19 exacerbou as desigualdades já existentes em nosso sistema reprodutivo. (…)”

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Fonte: Justificando

Data original da publicação: 29/10/2020

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