Onde estão as mulheres no PL dos aplicativos?

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/03/04/lula-encaminha-projeto-que-cria-pacote-de-direitos-para-motoristas-de-aplicativos.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget | Reprodução

Por Valdete Souto Severo e Giovanna Magalhães Souto Maior | Jorge Luiz Souto Maior

Hoje é dia de relembrar a luta daquelas que, antes de nós, denunciaram a estrutura machista e racista que sustenta o capitalismo.

No contexto da rememoração dessas lutas, impossível não pensar sobre o PL apresentado recentemente pelo governo, que trata da (des)proteção trabalhista para as trabalhadoras e os trabalhadores selecionados e contratados por empresas multinacionais que operam seu negócio por meio de plataformas digitais. Trata-se de uma questão central no mundo do trabalho, não apenas porque envolve grande contingente de pessoas, pelo menos 1,5 milhão (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38160-em-2022-1-5-milhao-de-pessoas-trabalharam-por-meio-de-aplicativos-de-servicos-no-pais), mas porque diz com uma forma precarizada de exploração de trabalho, que tem se expandido para outras atividades. Já há plataformas para a contratação de professoras, médicas e outras trabalhadoras em atividades predominantemente femininas.
Mesmo entre os motoristas, o número de mulheres que realizam o trabalho é expressivo. Em São Paulo, apenas entre janeiro de 2019 e de 2023, o “total de mulheres paulistas que incluíram a observação Exerce Atividade Remunerada (EAR) na Carteira Nacional de Habilitação (CNH) passou de 931.608 para 1.400.513” (https://garagem360.com.br/numero-de-mulheres-que-usam-o-carro-como-ferramenta-de-trabalho-aumenta-veja-dados/). Uma profissão ainda predominantemente masculina, sem dúvida, mas que tem se revelado, cada vez mais, a saída possível para mulheres que precisam sobreviver numa realidade de trabalho obrigatório.

Em estudo feito a partir de entrevista com motoristas mulheres, no final do ano de 2019, as pesquisadoras constataram que a busca por esse trabalho está relacionada ao desespero de ver-se desempregada e à necessidade de dar conta da sobrevivência familiar. Revela, ainda, que elas trabalham com medo e, por isso, evitam realizar as atividades à noite. Também têm dificuldade para realizar jornadas mais extensas, pois dão conta do cuidado com filhos, com idosos e com a casa. Em razão disso, a pesquisa aponta a existência de uma hierarquia que naturaliza a desigualdade nessa atividade, pois “quanto maior o número de corridas feitas pelo motorista e boas avaliações recebidas dos usuários, maiores os ganhos financeiros e os privilégios concedidos pela empresa”.

As mulheres, portanto, são prejudicadas pela “dificuldade de realização de maior quantidade de corridas, restringidas pela dupla jornada de trabalho e, principalmente, pelo medo de dirigir em determinados locais e horários, devido à falta de segurança”. Estão bem mais sujeitas a “notas baixas/ruins exclusivamente pelo fato de serem mulheres”. Nesse sentido, as autoras apontam que as diretrizes inscritas nos aplicativos potencializam a discriminação de gênero, e, portanto, aprofundam a violência simbólica da estrutura patriarcal e machista da sociedade brasileira.

Nenhuma novidade!

Em uma audiência, no Fórum Trabalhista de Porto Alegre/RS, de um processo no qual a motorista pedia vínculo com a UBER, constatou-se que a trabalhadora havia tido seu cadastro suspenso, em razão da reclamação de um usuário, sobre o fato de ter feito a corrida enquanto a filha pequena também estava no veículo. O argumento da empresa era o de que a trabalhadora sabia da impossibilidade de levar sua filha junto para o trabalho.

Bem se vê, por conseguinte, que a denominada “autônoma” não pôde sequer utilizar o próprio veículo para manter consigo, sob os seus cuidados, a sua filha, enquanto prestava o serviço. Quando foi ouvida na audiência trabalhista, a trabalhadora referiu que, naquele dia, a outra mulher que a auxiliava no cuidado com a filha havia faltado. Como ela não podia deixar de trabalhar, pois isso comprometeria sua renda mensal, não teve escolha, precisou levar consigo a menina. Mas, por conta disso, acabou perdendo o trabalho.

Pois bem, nenhuma das aflições e necessidades da mulher motorista está refletida no PL apresentado pelo governo.

Além da linguagem exclusivamente masculina, não há uma linha sequer sobre a condição das mulheres nesse tipo de atividade. Ao contrário, ao permitir que essas trabalhadoras permaneçam até 12h em trânsito (veja que isso sequer inclui o tempo de espera pela nova corrida e de deslocamento para a casa), o que o projeto faz, concretamente, é acentuar ainda mais a violência de gênero nessa atividade. Se, como sabemos, as mulheres despedem pelo menos 9,6 horas a mais por semana com atividades de cuidado, do que os homens (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37621-em-2022-mulheres-dedicaram-9-6-horas-por-semana-a-mais-do-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas) não é difícil imaginar o que significa o regime inconstitucional de trabalho que o PL propõe. Além de se constituir um “legítimo” instrumento de exclusão e de discriminação da mulher do mercado de trabalho.

E não se trata de uma pauta exclusivamente feminina. Nem de um projeto que afeta apenas as mulheres. A questão é que, ao admitir a espoliação do trabalho fora dos parâmetros constitucionais e trabalhistas de proteção social, o governo atua para tornar a vida de todas as pessoas que dependem do trabalho ainda mais difícil.

Afeta a todas as pessoas, sem exceção.

De todo modo, essa é uma questão importante para as causas feministas. Algo que hoje precisa estar em nossos discursos, pois de nada adianta subir a rampa com representantes da diversidade, fomentar projetos que reconhecem a condição das mulheres nos diferentes ambientes sociais, e precarizar justamente as condições de trabalho, sabendo-se que as trabalhadoras e trabalhadores dependem da venda da sua força de trabalho em troca de capital para sobreviver.

O tempo em que trabalhamos é tempo no qual não convivemos com nossa família, nossos afetos. É tempo em que não estudamos; não prestamos atenção no clima, na comunidade, no ambiente em que estamos inseridas.

Permitir que alguém permaneça trabalhando por 12 horas implica – se for um homem – sobrecarregar as mulheres que viabilizam seu trabalho (suas companheiras, mães, irmãs, filhas). Permitir que alguém permaneça trabalhando por 12 horas implica, se for mulher, exaurir as forças físicas e psíquicas dessa trabalhadora, que, sobretudo se computarmos os intervalos, o tempo que demandará para voltar para a casa e aquele que será dedicado às atividades de cuidado, a impede concretamente de existir de forma minimamente decente.

E tudo isso interfere no convívio social. Produz pessoas cansadas, irritadas e desconectadas com as pautas públicas, inclusive com aquelas que dizem diretamente com a sobrevivência humana, tal como a grave crise ambiental com a qual estamos convivendo.

Trabalho sem vínculo é trabalho precário e a precariedade do trabalho causa enormes danos àquelas e àqueles que não têm outra escolha se não a de se submeterem às condições que lhes são oferecidas, pois, repita-se, necessitam da venda de trabalho para sobreviver.

Quando uma atividade como a de motorista é considerada “autônoma”, o que se produz, concretamente, é a aflição constante com a possibilidade de adoecer (e não ter remuneração), de estragar o carro ou de se perceber em alguma condição que impeça a obtenção do salário.

E tudo isso está estreitamente ligado à violência de gênero.

Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará, em parceria com o Instituto Maria da Penha, realizada em 9 capitais do nordeste, em 2017, revelou que 48% das mulheres ouvidas eram alvo de violência doméstica. Elas se declararam estressadas e infelizes. Relataram dificuldade para dormir, sensação constante de insegurança e problemas de concentração e relacionaram essa condição com a precariedade do trabalho (https://www.esquerdadiario.com.br/Violencia-domestica-e-o-mercado-de-trabalho).

Outro estudo da UFES deixa explícita a relação entre desemprego masculino e violência doméstica (https://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439792598_ARQUIVO_AlexeBeatrizANPUH2015.pdf). Homens exaustos e desvalorizados em seu ambiente de trabalho estão muito mais sujeitos a promover violência moral e física dentro de suas casas. O estresse é um dos fatores emocionais que, apoiado em uma cultura machista na qual nossos meninos crescem sob o imperativo da violência, como insistem Bell Hooks e Rita Segato, desencadeia atitudes agressivas.

Essas situações são muito graves. É apostar num convívio social adoecido, estressado, alienado, discriminatório e violento com relação, sobretudo, às mulheres.

O Direito do Trabalho é o resultado da compreensão sobre a impossibilidade de deixar trabalhadoras e trabalhadores sem amparo social, diante da força de quem detém o capital. Não apenas para que eles e elas possam consumir. Não apenas para que consigam ter um mínimo de previsibilidade na vida. Também porque o emprego protegido, em uma sociedade como a nossa, é condição de possibilidade para todo o resto: estudar, ter ambiente familiar saudável ou engajamento coletivo, por exemplo.

Ao assumir a responsabilidade por “harmonizar os interesses em luta”, o Estado brasileiro reconheceu a ausência de neutralidade na atuação diante das perturbações sociais. A construção de direitos previdenciários e trabalhistas constitui, portanto, uma mudança profunda no discurso do Direito e não se justificou em razão da industrialização. Justificou-se pela necessidade de dar sentido à regulação social. Afinal, somos seres racionais. De que serve construir uma sociabilidade que gera sofrimento e violência?

Como seguir afirmando que a ordem jurídico-social é para todas as pessoas, se a maioria dela, porque depende do salário para sobreviver, é levada à exaustão, interditada em relação às possibilidades de consumo, sujeita à violência da precariedade do trabalho ou mesmo da impossibilidade de obtê-lo?

Em 2024, nada disso mudou. Novas tecnologias para a extração do trabalho, como é o caso das plataformas digitais, não afetam o fato de que seguimos tendo de trabalhar para sobreviver; fazendo-o, em regra, para quem detém o capital e aufere lucro com nossa força de trabalho.

Também não alterou o fato de que as mulheres têm os piores empregos e os piores salários, especialmente as mulheres racializadas. Nem conseguimos mudar a estrutura social, pela qual o trabalho reprodutivo segue sendo tarefa predominantemente feminina e invisibilizada.

Então, quando o governo propõe um texto de lei que admite a exploração do trabalho subordinado sem direitos trabalhistas e, principalmente, desconsidera as necessidades estruturalmente impostas às mulheres, o que faz, além de contribuir para uma espécie de retorno ao passado, é promover uma sociedade precária, estressada, adoecida e sem condições de pensar o mundo a sua volta. Com isso, também reforça e “legitima” toda a violência que se direciona, cotidianamente, às mulheres trabalhadoras.

A propósito, são várias as normas trabalhistas historicamente conquistadas pelas lutas das trabalhadoras, para minimizar o peso que a sociedade capitalista machista tomba seus ombros, até mesmo com o propósito de excluí-las do mercado de trabalho. Normas que são essenciais para viabilizar o trabalho, tal como aquelas que constam dos artigos 389 e 400 da CLT:

“§ 1º, art. 389, CLT – Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação.”
“Art. 400, CLT – Os locais destinados à guarda dos filhos das operárias durante o período da amamentação deverão possuir, no mínimo, um berçário, uma saleta de amamentação, uma cozinha dietética e uma instalação sanitária.”

O PL silencia sobre isso, assim como nada refere acerca das garantias de licença à gestante e de manutenção provisória no emprego, após o nascimento do bebê. Nesse aspecto, da defesa de uma gestação saudável, exige-se, inclusive, que também ao pai sejam garantidos iguais direitos, para que partilhem dos deveres e obrigações parentais.

O silêncio com relação a esses direitos, conquistados a duras penas pelas trabalhadoras brasileiras, e a desconsideração de todas as questões que dizem respeito à inclusão e à não discriminação das mulheres no mercado de tabalho, diz muito sobre o retrocesso social que o PL busca impor e sobre o machismo em que se fundamenta.

Fonte: Jorge Luiz Souto Maior

Clique aqui e acesse o texto na íntegra.

Data original de publicação: 8/3/2024

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