Opinião – Solução à brasileira do projeto de lei complementar do motorista de app

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Por Maurício Pallotta Rodrigues | Conjur

O Projeto de Lei Complementar 12/204, de autoria do Poder Executivo, trata da relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas, dentre os principais pontos da lei temos:

  1. Definição de empresa operadora de aplicativo;
  2. Condições para trabalhadores autônomos por plataforma;
  3. Representação sindical;
  4. Negociação coletiva;
  5. Práticas autorizadas para empresas operadoras;
  6. Remuneração mínima;
  7. Contribuição previdenciária; e
  8. Fiscalização e penalidades.

Em uma primeira análise do texto legal, me parece que o objetivo principal seja, na prática, estabelecer mecanismos de inclusão previdenciária e garantir direitos trabalhistas inerentes à relação de emprego aos motoristas de aplicativo para, segundo o autor do projeto, melhorar as condições de trabalho.

Ao avaliar as razões que justificam a proposta de lei complementar, assinada pelos ministros Luiz Marinho, Carlos Roberto Lupi e Fernando Haddad, respeitosamente, acredito ter havido supressão de discussões que precedem a avaliação da necessidade de regulamentação da profissão.

No documento que apresenta o PLP verificamos digressões acerca do avanço tecnológico no setor e as transformações do mercado, mas revela a preocupação com relação aos direitos trabalhistas e previdenciários dos proponentes do projeto.

Na medida em que, conforme as suas razões, os proponentes alegam pretender harmonizar a inovação tecnológica com a proteção dos direitos laborais, estabelecendo diretrizes transparentes para a relação entre trabalhadores e empresas operadoras de aplicativos.

Destacam-se aspectos como piso remuneratório, segurança do trabalhador, limites de conexão diária, garantia de direitos previdenciários, controle e fiscalização das atividades das empresas, representação sindical e incentivo à capacitação dos condutores.

Para os autores, o projeto busca promover um ambiente de trabalho digno e justo, alinhado aos princípios da Convenção 144 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e à agenda do trabalho decente.

Mais insegurança jurídica

Confesso que optei por aguardar a poeira baixar, as paixões políticas se acomodarem e refletir sobre a minha própria perspectiva baseada no livro que escrevi em 2021 sobre o tema. Para só então analisar o texto do PLP e emitir um preliminar juízo de valor.

Quem me conhece sabe que sou cético em relação à criação de mais leis como solução para problemas de insegurança jurídica, ao meu ver quase sempre isso acaba em mais insegurança, especialmente em um país como o nosso, onde temos um arcabouço legal já muito complexo de conviver em harmonia.

Quando escrevi o livro “Contratação na Multidão e a Subordinação Algorítmica”, fiz algumas reflexões sobre a possibilidade de aproveitamento do ordenamento jurídico vigente (intermitente, MEI, avulso e autônomo) para melhor enquadrar a profissão de trabalhadores em plataforma antes de pensarmos em nova forma de prestação de serviço.

Por exemplo, tratei de uma potencial figura do “Chapa 4.0”, destacando as similaridades do trabalho desempenhado em plataformas de intermediação de mão de obra com os trabalhadores avulsos.

É certo que as atividades desenvolvidas pelos prestadores de serviço por meio de aplicativo não se enquadram nas hipóteses previstas na Lei do Avulso, tal qual está redigida hoje, entretanto, como esses profissionais, os “uberizados” são convocados ou iniciam o trabalho de forma similar.

No texto propus uma reflexão sobre essa possível equiparação, de forma a viabilizar o modelo de negócio e regular uma proteção mínima contra a suposta precarização.

De certa forma, foi mais ou menos isso que ocorreu com o PLP 12/2024, mas por meio da criação de uma nova categoria, tão segmentada que, na contramão do esperado, pode trazer ainda mais insegurança. Afinal, como vamos enquadrar os entregadores de aplicativo? E o transporte em veículo de duas rodas? Assim como, outros serviços que possam ser oferecidos por meio de plataformas de tecnologia?

No livro, abordei também a forma como foi tratada a figura da “venda direta” pelo Judiciário após anos de embate. Igualmente, se tratava à época de um novo modelo de negócio, que tal qual o fenômeno da uberização, parecia conflitar com as regras previstas em nosso ordenamento.

Em sentido diametralmente oposto ao que ficou definido no PLP 12/2024, as decisões que pacificaram o tema são no sentido de que o vínculo empregatício não pôde ser observado, já que os revendedores podem manter outras relações jurídicas concomitantes, inclusive empregatícias ou com concorrentes.

Mais que isso, o caráter autônomo da prestação dos serviços é confirmado pela forma de custeio da atividade, atribuída ao próprio revendedor e que  recebimento de ordens de gerentes celetistas das empresas de venda direta são, na verdade, meras instruções.

Contribuintes obrigatórios da Previdência

Do ponto de vista legislativo, nada foi alterado, muito menos criada uma nova categoria para acomodar esses profissionais, afinal são trabalhadores autônomos, revendedores de produtos, e assim permanecem até os dias atuais. O debate ficou em cima do modelo de negócio das empresas de venda direta.

Importante destacar que, do ponto de vista da cobertura social, tanto os autônomos, quanto os MEIs são considerados contribuintes obrigatórios da previdência social e podem gozar de benefícios previdenciários, desde que estejam adimplentes.

Inclusive, os MEIs têm alíquotas contributivas muito mais atrativas em relação aos trabalhadores autônomos e aos plataformizados do PLP 12/2024.

Por isso, mantenho a minha posição original, externada no referido livro, no sentido de que é necessário primeiro enfrentar o debate sobre a natureza jurídica das empresas de tecnologia que viabilizam as plataformas tecnológicas de intermediação de oferta e demanda de serviços antes de adentrar na forma como se poderia melhorar as condições dos trabalhadores plataformizados.

Tal qual constou no referido PLP, partimos da premissa de que essas empresas sejam aplicativos de transporte e não mais ferramentas agregadoras de oferta e demanda por meio de inteligência algorítmica. E isso pode ter consequências para ambas as partes da equação.

Em uma economia de compartilhamento, essas plataformas deveriam funcionar como um viabilizador para que profissionais de uma determinada categoria se cadastrem para que possam ser localizados no meio da multidão e prestar os serviços que desejam. Tenho certeza que isso ficaria mais evidente se a relação com essas plataformas se encerrasse na conexão entre indivíduos.

Entretanto, por ser através delas que os preços são calculados, os trabalhos são designados, os pagamentos são realizados e a remuneração é descontada em forma de percentual sobre o serviço prestado, é que ficamos com a impressão, falsa ou não, de que sejam na prática empresas de mobilidade urbana ou de transporte, no caso da Uber.

Fenômeno tecnológico x CLT

É neste ponto nevrálgico que entendo estarmos deixando de lado a importante missão de compreender o fenômeno tecnológico, para novamente brigar por uma equiparação proporcionalizada desses trabalhadores aos celetistas, com o potencial de desagradar a todos.

Compreendo a narrativa no sentido de que o texto se trata de um acordo costurado juntamente com os representantes das empresas, que ao meu ver podem até estar achando que essa seja uma solução intermediária ainda mais vantajosa para não tornar o negócio inviável em razão da potencial pacificação judiciária no sentido de se tratar de uma relação de emprego pura, com seus reflexos, ou de uma briga por maior transparência na precificação e repasse aos trabalhadores.

De toda sorte, acabamos mais uma vez atacando o sintoma e não a doença.

Seria necessário maior transparência em relação ao funcionamento dos algoritmos dessas plataformas para buscar a pacificação jurídica e social. Como se dá a formação do preço? Como é feita a dispersão da demanda? Qual a justificativa para os percentuais retidos? Enfim, a melhoria nas condições de trabalho poderia se dar por meio de uma real compreensão do fenômeno e transparência no tratamento de dados, conforme previsto na própria LGPD.

Já existe, inclusive, uma preocupação se as condições não vão ficar ainda piores para os trabalhadores, na medida em que, com a garantia de uma remuneração mínima, as empresas vão ficar ainda mais confortáveis escondidas nas “caixas pretas” dos seus algoritmos e os trabalhadores podem se ver obrigado a trabalhar ainda mais para tornar a sua atividade economicamente viável.

Friso que, dos R$ 32,10 por hora de trabalho garantidos pelo PLP, apenas R$ 8,03 são destinados a remuneração pelo trabalho e R$ 24,07 destinam-se ao reembolso de despesas. Portanto, seriam necessárias 176 horas de trabalho mensais para a formação de uma remuneração de um salário mínimo, ou seja, uma média de oito  horas por dia útil de trabalho. Embora do ponto de vista do imposto de renda e INSS, isso possa ser vantajoso, pois a base cálculo para incidência dos tributos seria consideravelmente reduzida.

Óbvio que estamos falando de piso remuneratório e não de salário, assim como que na prática a parcela indenizatória também integra a renda do trabalhador, mas em um universo no qual a grande maioria dos trabalhadores em plataformas alugam os carros de locadoras especializadas, as quais cobram em média entre R$ 600 e R$ 1.000 por semana de locação, somado isto ao combustível gasto nas corridas, a necessidade de contratação de plano de dados e aquisição de celulares para o desenvolvimento da atividade, pode acabar faltando dinheiro.

Enfim, ao meu ver estamos ainda muito longe de compreender o fenômeno tecnológico relacionado com a tal uberização, de equilibrar os conflitos geracionais e suas prioridades frente ao nosso ordenamento jurídico trabalhista vigente e mais uma vez vamos resolver “à brasileira”, por meio da imposição legal, as questões jurídicas que se colocam fruto da evolução do mercado de trabalho.

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Por Maurício Pallotta Rodrigues | Conjur
Data original de publicação: 19/03/2024

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