Os entregadores de comida são reféns do seu 'like'
Sejam entregadores ou prestadores de serviços técnicos, os trabalhadores estão submetidos à ditadura da avaliação virtual dos clientes
Por Pablo Ordaz
MADRI – Apenas sete anos depois de sua estreia, Queda Livre, aquele capítulo da série Black Mirror que fazia uma caricatura futurista da obsessão pelo prestígio nas redes sociais, está se tornando uma realidade assustadora para o elo mais fraco do sistema. Já existem garçons, entregadores de comida rápida, vendedores de perfumes em lojas de departamento ou instaladores de fibra ótica que perdem o emprego, ou pelo menos boa parte de sua renda, por causa da má avaliação virtual de um cliente insatisfeito ou simplesmente irritado com a empresa para a qual prestam serviço. Não é difícil verificar. Basta conversar um pouco com os entregadores que, de capacete, esperam ao lado de suas bicicletas o próximo pedido nas portas de um estabelecimento da rede McDonald’s. Um fast-food do centro de Madri — dar nomes e pistas pode acabar sendo muito prejudicial para os protagonistas reais — ao meio-dia de um dia útil na semana passada.
Se alguém os observar de longe, verá que estão quase sempre com os olhos grudados em seus celulares. Esse maldito vício, se poderia pensar. Erro. Eles prestam atenção a um aplicativo que, para eles, é muito mais diabólico do que qualquer outro. O de uma dessas empresas virtuais que, através do celular e em questão de minutos, colocam o cliente em contato com o restaurante e com o entregador que, de bicicleta ou de moto, tem a missão de levar a comida ainda quente até sua casa. “Olhe”, diz um dos jovens mostrando seu telefone, “nosso trabalho depende inteiramente da pontuação que tivermos. A empresa nos dá horas de trabalho em faixas de horário de alta demanda –por exemplo, aos sábados das 21h às 23h– em função da avaliação dos clientes que acumulamos. Se perdemos a pontuação de excelência –cerca de 97 pontos em 100– por uma má avaliação, no dia seguinte te reduzem suas horas de trabalho ou as retiram diretamente, embora na maioria dos casos não sejamos nós os culpados pela comida ter chegado tarde ou fria. Mas o aplicativo só dá a opção de avaliar os entregadores”.
No caso, contam os jovens entregadores, de que um deles tenha uma diminuição considerável na sua avaliação, fica sem horas atribuídas. E então, como acontece com vários daqueles que participam da conversa, a única opção é ir até a porta de um dos restaurantes com maior demanda –esta hamburgueria no centro de Madri– e grudar os olhos na tela para tentar caçar algum pedido avulso. Esta é a nova imagem daqueles trabalhadores temporários que esperavam na praça da cidadezinha que o capataz –você sim, você não– os colocasse no furgão para trabalhar de sol a sol por um salário de miséria. “As pessoas não sabem”, reflete um dos jovens em excelente espanhol (cerca de 70% dos entregadores são venezuelanos em situação de asilo político), “o dano que podem fazer com uma simples avaliação negativa”.
Aqueles que sabem são os trabalhadores precários que, seja atrás do balcão de uma loja de departamentos, no serviço de atenção ao cliente de qualquer grande empresa ou instalando Internet casa por casa, dependem de uma boa avaliaçãopara obter um salário que raramente atinge os 1.000 euros (cerca de 4.188 reais). Já não é incomum que algum desses trabalhadores, angustiados pela situação, transfira diretamente para o cliente a importância de uma avaliação positiva. “Agora vão ligar da minha empresa”, explicou há poucos dias em San Sebastián, o instalador de uma das principais empresas de telefonia depois de resolver um problema com a fibra ótica, “pedindo-lhe para avaliar o serviço. Mas, na realidade, quem é avaliado sou eu, mesmo que eles digam ‘avalie a [nome da empresa]’, isso não é verdade. Avalie o técnico que vem à sua casa. E qualquer nota inferior a 10 implica numa redução salarial. O problema é que as pessoas costumam estar tão irritadas com a empresa que dão zero ou uma nota muito baixa. Então eu explico isso muito claramente a todos: com esse telefonema eles estão me avaliando”.
O economista e advogado Adrián Todolí analisou o problema e suas conclusões são alarmantes. “A situação piorou a tal ponto”, adverte, “que estamos voltando à servidão do século XIX”. E ele explica isso de uma maneira muito clara: “Estamos enfrentando o risco de uma dupla sanção. Por um lado, um trabalhador corre o risco de ser despedido por uma má avaliação de um cliente (seja verdadeira ou falsa) ou porque a empresa usa essas supostas opiniões negativas para se livrar de um trabalhador precário. Mas, além disso, agora surge outro problema, que são as plataformas online de pontuação, que coletam as avaliações de patrões e clientes sobre este ou aquele profissional. E aqui vem a dupla sanção. Uma pontuação ruim pode não apenas deixá-lo sem seu emprego atual, mas também trazer uma má reputação online que o impede ter acesso a trabalhos futuros. Quem ousará dizer não a um cliente ou se recusar a fazer horas extras se estiver jogando o futuro?”
Todolí refere-se a um aplicativo criado por empresários espanhóis que, sob o suposto objetivo de “promover a meritocracia”, permite com um simples movimento do dedo avaliar o trabalho de qualquer pessoa. Em seu site, os criadores da plataforma explicam como tiveram a ideia: “Uma manhã, tomando um brunch em um daqueles maravilhosos cafés do East Village de Nova York, pensamos: como gostaríamos de poder ajudar essa garçonete que nos atendeu tão bem. Quando nos aproximamos do gerente para comunicar nossa boa experiência com sua empregada, ele nos respondeu com um sorriso que somos convidados a avaliar o negócio em qualquer uma das muitas plataformas que já existem. E pensamos: ‘Que injusto não poder avaliar essa pessoa!’. Assim nasceu a ideia…”.
A cena é tão parecida com o início do capítulo de Black Mirror que só de pensar no final desastroso já produz calafrios. Na esquina das ruas Goya e Alcalá, jovens entregadores mantêm os olhos fixos no telefone como a protagonista de ‘Queda Livre’ fazia o tempo todo. Seu futuro depende de um like ou de um dislike.
Fonte: El País
Data original de publicação: 01 – 02 – 2019