Polícia Militar, nascida para reprimir greves

Fonte: Outras Palavras

Por Almir Felitte | Outras Palavras

A história não é uma linha reta com fatos milimetricamente demarcados abrindo e fechando eras. Porém, alguns fatos podem ser considerados, sim, simbólicos e mais decisivos que outros para a definição de certos processos históricos. No caso da militarização das polícias no Brasil, é o estado de São Paulo no início do período Republicano que cumpre esse papel. E o cenário paulista da época é didático para entendermos a quem serviu a aplicação do militarismo na segurança pública brasileira.

Tal análise, porém, não é dada de forma isolada. Vale dizer que muitos autores consideram que, para o Ocidente como um todo, o século XIX marca o início das instituições policiais tal como as conhecemos hoje. E é também uma espécie de movimento mundial que, em tal época, as polícias tenham passado a se reformular não só como um aparato de segurança pública que combate o crime, mas, também, como um verdadeiro mecanismo de controle social sobre as chamadas “classes perigosas” e de proteção da propriedade privada.

No Brasil, esse período coincidiu com a mudança do eixo econômico do país do Nordeste para o Centro-Sul, com um foco mais que especial no estado de São Paulo. Mas não só isso. Foi nesse período, também, que o país passou pela abolição do trabalho escravo em território nacional e, aí com mais destaque para o cenário paulista, por um intenso processo de imigrações, pela forte urbanização e industrialização, sobretudo na capital de São Paulo, pelo empoderamento político da burguesia cafeeira paulista (e, mais tarde, da burguesia industrial) e pelo incremento de uma nova classe de trabalhadores livres camponeses e operários.

Antes que se fale de tais classes, porém, é importante ressaltar que a República trouxe consigo a federalização e, por consequência, a chamada “política dos governadores”, cujos objetivos foram definidos pelo historiador Boris Fausto como um mecanismo onde o governo central sustentava grupos dominantes nos estados que, em troca, apoiavam o Presidente da República. Em suma, a essa época, o país tinha estados com cada vez mais independência e com oligarquias cada vez mais fortes politicamente. E tais oligarquias não hesitavam em utilizar seus governos estaduais para fazer frente ao governo federal e seu Exército, bem como para garantir seus interesses internos. Nesse sentido, as forças policiais estaduais passaram a ganhar um significado político crescente.

E não é exagero dizer que tais forças eram capazes de deixar até mesmo o Exército Nacional em seu “devido lugar”. E, nesse quesito, o estado de São Paulo sabia agir com maestria. Não são raros os autores que exaltam o poder das forças policiais estaduais paulistas, que ganhariam a alcunha de “Pequeno Exército Paulista”, um aparato que serviu até mesmo para sufocar revoltas de caráter nacional em outros estados, como foi o caso da repressão à Canudos, na Bahia.

Porém, não foi só de olho no jogo de poder entre Estado e União que a burguesia paulista montou o seu próprio exército dentro de uma força que deveria ter caráter policial.

Como já dito aqui, a Primeira República, sobretudo em São Paulo, fora marcada por intensos processos de imigração, urbanização e industrialização. Não tardaria para que esta “nova” classe em ascensão de trabalhadores livres, profundamente marcada por ideais que cruzaram o oceano junto com suas bagagens, tais como o comunismo, o anarquismo e o sindicalismo, também começasse a se organizar.

Mas se os trabalhadores passaram, principalmente no início do século XX, a se organizar em torno de sindicatos e movimentos sociais, do outro lado, as burguesias cafeeiras e industriais se organizavam em torno de uma máquina ainda maior e mais poderosa: o Estado.

É curioso, por exemplo, observar as movimentações da legislação criminal brasileira da época, bastante pautada no positivismo criminológico, influenciado pelas ideias de Lombroso, que fazia uma leitura da criminalidade através de aspectos físicos do indivíduo. Porta aberta para o racismo, claro. O Código Penal Brasileiro de 1980, por exemplo, numa clara alusão à população negra, criminalizava a capoeira e a “magia”, bem como previa a expulsão de “vadios estrangeiros”. Mais tarde, a “Lei Gordo” de 1907, sobre a expulsão de estrangeiros do território nacional, seria uma das principais ferramentas para banir anarquistas do país.

Logicamente, porém, a movimentação da burguesia paulista não se restringiu à legislação penal. Em São Paulo, o envolvimento das elites com as forças policiais ganhou contornos especiais, ao contrário de boa parte do país, onde as forças privadas de segurança ainda eram a preferência das elites estaduais, como nos casos do coronelismo nordestino. Foi nessa época, por exemplo, que a Polícia Civil do estado passaria por uma reforma de carreira que, entre outras coisas, deu ao Presidente do Estado maior poder nas nomeações dentro da instituição.

Mas foi em outra força policial que a burguesia paulista concentrou seus maiores esforços de organização. Do chamado Corpo Permanente à Força Policial, desde o início da República, sempre houve a presença de um embrião de corpo militar dentro das forças de segurança pública ostensivas paulistas. E ninguém melhor do que as próprias autoridades da época para demonstrarem o real interesse por trás da manutenção dessas forças militares.

Em 1893, por exemplo, o Secretário dos Negócios da Justiça de SP, propondo a militarização da cavalaria da polícia, escreveu: “A organização atual do corpo convém seja alterada, dando-lhe outra que mais se aproxime da dos corpos de Cavalaria do Exército (…). Está demonstrada à evidência, a eficácia da cavalaria nos casos de perturbação da ordem, bastando sua presença para afastar os desordeiros”. O Secretário, aqui, se preocupava com o uso político da polícia contra protestos populares, e enxergava o militarismo como estrutura mais adequada para isso.

Em 1903, o Chefe da Polícia de SP mostrava preocupação em aumentar o efetivo da Guarda Cívica, polícia de natureza civil, para cumprir as funções policiais, “recolhendo aos quartéis as praças da Brigada Policial” (uma polícia militarizada), assim, “atendia-se às exigências da disciplina militar, que veda o contato direto com o povo”. Para o então Chefe de Polícia, “não deve caber às praças da Brigada Policial o serviço de vigilância das ruas, (…) que constitui função especial da polícia civil”.

Pensamento semelhante teve o Secretário de Justiça de SP em 1889, ao escrever que “para as rondas, para as patrulhas, para a manutenção da ordem nas ruas, na praça pública, mais se precisa do guarda inteligente, perspicaz e ativo, do que do soldado, com o aparato marcial de suas armas e com a ostentação de sua força”.

Esses são apenas alguns relatórios oficiais tirados do livro Polícia e Segurança, da Heloísa Rodrigues Fernandes. A verdade é que o Estado, com suas oligarquias, sempre enxergou na militarização da polícia um caráter de controle social e político das forças de oposição. Tanto que havia, sempre, a preocupação de se manter uma polícia de caráter civil para cumprir as funções tipicamente policiais de ronda, ostensividade e manutenção da ordem pública.

Porém, poucos anos depois da Proclamação da República, a opção pela polícia militarizada se consolidaria. E tal consolidação tem data e nome certos. Em 1906, o estado de São Paulo contrataria uma Missão Francesa que mudaria para sempre a história da segurança pública brasileira. Tal missão, liderada por um militar francês, se incumbiu, durante oito anos, de conceder treinamento, armamento, hierarquia, estrutura, fardamento e mais uma série de outras características tipicamente militares à Força Pública Paulista.

Assim, quando os movimentos populares de trabalhadores, profundamente marcados pelo anarcossindicalismo de influência imigrante italiana, já apresentavam maior grau de organização na década de 1910, a burguesia paulista já possuía o seu próprio “Pequeno Exército” pronto para reprimir qualquer “desordem social” causada por tais “classes perigosas”. Por isso mesmo, se a década de 1910 foi recheada de greves de trabalhadores, incluindo a grande greve geral, de caráter nacional, de 1917, ela fora também marcada pela violência desta polícia altamente militarizada contra os trabalhadores.

E assim seria por longos anos constituído o sistema de segurança pública paulista. Para se ter uma ideia do nível de desvio a que chegou tal força militarizada, em 1926, com uma polícia ostensiva essencialmente focada na repressão política, o próprio Estado de São Paulo viu-se forçado a criar uma nova Guarda Civil, esta sim com objetivos de vigilância e policiamento típicos dos princípios que regem a segurança pública, inclusive regida por uma legislação que em muito lembra a atual bandeira levantada pelas esquerdas de implantação do chamado policiamento comunitário.

Anos se passariam, porém, e o já consagrado modelo militarizado de policiamento, nascido da ideia de repressão aos trabalhadores pela burguesia paulista, terminaria por se nacionalizar, consolidando-se, de vez, durante a Ditadura Militar, através do Decreto 667/1969, vigente até hoje.

Hoje, apesar da redemocratização, pouco se debateu o sistema de segurança pública, que ainda carrega boa parte de sua estrutura autoritária. O resultado se vê nas ruas e nas pequenas câmeras de celulares que, por sorte, conseguem captar uma realidade cotidiana e mostrá-la na internet. A PM paulista, sem dúvida, segue sendo um dos principais mecanismos de controle social do Estado brasileiro, seja no cotidiano das ruas na periferia, seja nas grandes avenidas tomadas por protestos, ainda muito longe da sua real função garantidora de segurança.

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Por Almir Felitte | Outras Palavras
Data original de publicação: 23/03/2024

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