“Que país se espera?”. Eis a questão a ser respondida pela superação da crise econômica. Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo
“Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – Ilpes/Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas – Facamp, onde é professor. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp-Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza – Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outras obras.”
Por Patricia Fachin|Instituto Humanitas Unisinos
“Apesar de a crise econômica gerada pela pandemia de Covid-19 ter uma natureza diferente de outras grandes crises da história, como a de 1929 e a de 2008, todas compartilham uma “determinada estrutura de relações” que as torna iguais, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo à IHU On-Line. “A semelhança deve ser perscrutada na observação da estrutura de relações das economias capitalistas e em sua dinâmica. Estamos falando de economias de mercado monetárias-capitalistas. Trata-se de um sistema complexo de relações e interdependências, assentado na divisão do trabalho e separação de funções”, afirma. Ao mesmo tempo, complementa, a crise pandêmica é diferente das demais porque toda a estrutura que envolve a demanda e a oferta ao longo das cadeias mercantis foi afetada, por isso “os agentes hesitam em gastar porque correm o risco de não receber”. Uma das pontas dessa cadeia, “os trabalhadores, assalariados ou informais, são o grupo de risco da pandemia econômica”, assegura.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, o economista é categórico ao apresentar soluções para enfrentar a crise gerada pela pandemia. “Em uma situação como esta, os governos não podem hesitar. Os Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais têm que abandonar as regras que ordenam suas relações em tempos de ‘normalidade’”. Na prática, isso significa que “os governos têm que engolir o estoque de dívida privada e expelir uma montanha de títulos públicos para garantir a missão monetária que vai sustentar o gasto público”. E adverte: “Não tem jeito. A crise dos mercados é a crise dos bancos, a crise dos bancos é a crise de crédito. A crise de crédito é a crise do gasto. E a crise do gasto é a crise da renda e do emprego”.
Até o momento, menciona, as medidas emergenciais anunciadas pelo governo federal e as dificuldades que as pessoas estão enfrentando para ter acesso aos R$ 600,00 mostram “a distância do Estado em relação aos seus cidadãos”. Na avaliação do economista, a “gravidade da crise” atual e a “ruptura das cadeias de produção e de serviços recomendariam uma atitude mais drástica” do Estado brasileiro, como “a garantia dos empregos e a manutenção dos salários”. Ao contrário dessas medidas, lamenta, “estou observando propostas de corte de salário”. Além disso, salienta, “discutem no Congresso a Carteira Verde-Amarela a pretexto de facilitar a criação de empregos, a mesma cantilena da reforma trabalhista, ou seja, enfraquecer a proteção dos trabalhadores para estimular os empresários a contratar. Aqui surge uma contradição entre o interesse individual, particular de cada empresário, e o funcionamento da economia como um todo”.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista
IHU On-Line – O desemprego tem aumentado no país por conta da pandemia de Covid-19. Como avalia as medidas emergenciais adotadas pelo governo para manter parte da renda e o emprego dos brasileiros?
Luiz Gonzaga Belluzzo – A gravidade da crise e a ruptura das cadeias de produção e de serviços recomendaria uma atitude mais drástica: a garantia dos empregos e a manutenção dos salários. Isso deveria ser acompanhado da coordenação e planejamento na área de transportes e de sustentação da oferta de alimentos, medicamentos e produtos de higiene e limpeza.
Estou observando propostas de corte de salários. Minha avaliação é negativa. Discutem no Congresso a Carteira Verde-Amarela a pretexto de facilitar a criação de empregos, a mesma cantilena da reforma trabalhista, ou seja, enfraquecer a proteção dos trabalhadores para estimular os empresários a contratar. Aqui surge uma contradição entre o interesse individual, particular de cada empresário, e o funcionamento da economia como um todo.
Se um empresário consegue reduzir o custo do trabalho, certamente ele aumentará sua margem de lucro, mas se todos fizerem o mesmo, a massa de salários, ou seja, o poder de compra da maioria da população vai declinar substancialmente. Como dizia Henry Ford, os custos caem, mas a demanda pela produção das empresas também se reduz. É a falácia da composição que habitualmente contamina o pensamento dos liberais.
IHU On-Line – O governo teria condições de fazer mais do que está fazendo no momento? O que ainda poderia ser feito para socorrer empresas, manter a renda e os empregos dos trabalhadores e ajudar os trabalhadores informais?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Vamos começar com as ações do governo. Depois de falar dos trabalhadores informais, vou retomar o tema da ação monetária e fiscal do governo.
O Orçamento de Guerra em tramitação no Senado está sofrendo resistências, sobretudo no que se refere à autorização para o Banco Central comprar as dívidas das empresas abrigadas nas carteiras dos bancos privados. Outro dia eu chamei essa operação de limpeza do passado. Limpar o passado para preparar o futuro. Sem a limpeza do passado, não há perspectiva de futuro. É claro que isso envolve o estabelecimento de critérios para a compra das dívidas, ou seja, das carteiras abrigadas nos balanços dos bancos. Os títulos têm que ser adquiridos pelo valor de face para evitar uma disparada das taxas de juros. Na verdade, na situação atual, a atuação do Banco Central para adquirir ativos de dívida e direitos creditórios afetará necessariamente a determinação das taxas de juros.
Há quem se apegue à ideia da perversidade dos bancos e demais instituições financeiras para combater a compra do estoque de dívida das empresas nos bancos. Mas é imprescindível ter presente que uma degradação muito pronunciada no valor desses ativos vai desarticular todo o sistema de crédito, isto é, os bancos privados vão fugir da oferta de crédito como o diabo foge da cruz. O circuito crédito-gasto-formação da renda encolhe de forma dramática e destrutiva. As empresas não faturam, não pagam os fornecedores, não recebem dos clientes e os trabalhadores ficam a ver navios: são dispensados e não recebem os salários. E esse processo é cumulativo. Como foi dito acima, quanto mais cai, mais afunda.
O grupo de risco da pandemia econômica
Vou repetir: o grupo de risco da pandemia econômica é constituído pelos assalariados, pelos informais e trabalhadores precarizados. As políticas de garantia de renda devem ser amplas e descartar cortes de salários, mesmo porque a manutenção dos rendimentos vai assegurar uma saída mais rápida e segura da crise. A ação do Estado deve se prolongar até o ponto em que as empresas retomem as atividades e os bancos ganhem confiança para expandir o crédito, estimulando o circuito de formação da renda do emprego. Quanto mais sólida e efetiva for a intervenção do Estado, mediante o financiamento monetário e o gasto fiscal, mais rápida e consistente será a retomada.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta os discursos e declarações do presidente Bolsonaro, mais especificamente quando ele critica o isolamento horizontal e diz que a economia brasileira não pode parar neste momento, quando se refere aos informais e ao comércio, chamando a atenção para a ampliação da crise econômica nos próximos meses? O que esses discursos significam?
Luiz Gonzaga Belluzzo – A maioria dos chefes de Estado declarou em alto e bom som a primazia das ações destinadas a preservar a vida humana e reduzir ao máximo a letalidade da pandemia. Diante da agressividade do vírus, não pode haver hesitação. Como foi dito acima, as sociedades enfrentam um inimigo invisível e mortal que se espalha por seu território. A palavra de ordem deve ser isolamento social e organização para o combate ao vírus e suas consequências econômicas.
IHU On-Line – Outra proposta que surge neste momento é a implantação de uma renda mínima social. Qual sua viabilidade imediata ou para o futuro?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O crescimento dos trabalhadores em tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, é escoltado pela destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria. O inchaço do subemprego e da precarização endureceu as condições de vida do trabalhador. A evolução do regime do “precariato” constituiu relações de subordinação dos trabalhadores dos serviços, independentemente da qualificação, sob as práticas da flexibilidade do horário, que tornam o trabalhador permanentemente disponível.
Na nova economia ‘compartilhada’, ‘do bico’, ou ‘irregular’, o resultado é a incerteza a respeito dos rendimentos e horas de trabalho. Esta é a mudança mais importante na força de trabalho americana ao longo de um século e ocorre à velocidade da luz. Algumas projeções estimam que, nos próximos cinco anos, mais de 40% da força de trabalho americana estará submetida a um emprego precário.
Diante da insegurança generalizada que contamina os mercados de trabalho, não há como escapar de soluções universais que aquietem as cabeças e os corações. O progresso tecnológico e a globalização lançaram enormes contingentes de trabalhadores na incerteza do dia seguinte.
Renda básica: medida incontornável
A renda básica não é a panaceia universal, mas apenas uma medida incontornável para assegurar aos indivíduos condições de buscar uma situação melhor. É o ponto de partida para igualar as oportunidades. Nas condições do capitalismo atual, em seu frenético movimento, as relações salariais estão sendo dissolvidas e a precarização tende a se tornar geral e irrestrita. A criação de uma renda básica universal é incontornável.
Mas não basta. Surgem soluções mais ousadas, como as que recomendam a gestão cooperativa das empresas maiores e o incentivo para a criação de pequenas e médias empresas fornecedoras de grandes conglomerados estatais. Muitos sugerem a reserva de áreas nas cidades para o exercício do pequeno comércio. Isso, diga-se, aconteceu no pós-guerra nas cidades europeias.
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Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 17/04/2020