Quem cuida dos filhos das enfermeiras durante a pandemia?
Por Camila da Silva e Rayane Moura | Gênero e Número
” (…) Maioria entre as profissionais de saúde e em geral responsáveis pelo cuidado dos filhos, as mulheres na linha de frente da pandemia passam mais tempo longe de seus filhos – enfrentando desafios e preocupações muito diferentes das mães que estão trabalhando em casa. Filhos de profissionais da saúde que estão afastadas e vivem com a ameaça constante da infecção são crianças mais intensamente atingidas pela pandemia, observa Guilherme Polanczyk, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Os transtornos que surgem na infância e adolescência têm prejuízos cumulativos até a idade adulta, explica o professor da USP, que está estudando o custo da pandemia sobre a saúde mental de crianças e adolescentes. “O surgimento de transtornos mentais, que ocorre mais frequentemente naquelas crianças mais vulneráveis, propaga e perpetua as desigualdades sociais já existentes”, observa em artigo.
Assim como Renata, 17.098 profissionais da área de enfermagem foram diagnosticados com o vírus, sendo 14.560 mulheres, segundo os últimos dados do Comitê Gestor de Crise do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Destes, 156 vieram a óbito, sendo 99 mulheres. Os números refletem o perfil feminino e negro da profissão de enfermagem: 86% dos profissionais são mulheres e a maioria (53%) são negras.
(,,,) O esquema de trabalho, com plantões extensos, somadas ao tempo de viagem entre a casa e o trabalho limitam o tempo das enfermeiras com seus filhos. A enfermeira Katia de Souza Santos, 42 anos, mãe de cinco filhos, gasta cerca de quatro horas de deslocamento por dia entre sua casa e o Hospital Ermelino Matarazzo. Moradora da Vila Industrial, Zona Leste de São Paulo, ela leva duas horas para ir e duas horas para voltar do trabalho.
Adiciona-se a isso o plantão de 12 horas, Kátia passa apenas um terço do dia em casa, ou seja, 8 horas. Com essa rotina, é o companheiro quem assume o cuidado diário com os filhos (ela mora com três dos cinco filhos, que têm idade entre 8 e 15 anos). “Eu sinto falta do tempo em que passávamos juntos, em que deitávamos todos na cama e ficávamos conversando, vendo vídeos”, conta.
Para as mães solo a situação ainda é mais difícil, tendo que contar com uma rede de apoio – quando ela existe. A enfermeira Cristiana de Farias, 34 anos, trabalha na área de treinamento do corpo de enfermagem em um hospital particular de São Paulo. Ainda que não atue diretamente no tratamento de pacientes, decidiu se afastar fisicamente dos filhos (de 11 e 17 anos) para evitar a possível transmissão do vírus, já que ela está mais exposta.
Mãe solo, ela segue na casa da família e os filhos estão na casa de familiares: a menina mais nova com o pai e o menino na casa do avô. “Eu nunca abri mão dos meus filhos, mas com essa pandemia eu tive que me afastar, para o bem estar deles. Há dois meses separados, a gente procura se falar todos os dias por chamada de vídeo para matar as saudades”, conta.
Cristiana enfrenta também a queda da renda – o seu salário foi reduzido junto com a jornada de trabalho, o que foi permitido pelo governo dentro das medidas econômicas anunciadas para combater a pandemia. “Houve uma redução do nosso salário em 25%. Para mim, como chefe de família, a questão financeira pesou, porque sou só eu para pagar tudo”, diz Cristiana.
As profissionais também destacam o quanto a área não é reconhecida e valorizada. “A gente trabalha muito e tem gente que precisa ter dois empregos para poder pagar as contas. Aplausos na janela são ok, mas o governo não tem dado condições boas para gente trabalhar”, pontua Cristiana.
Ela faz parte dos 11 milhões de mães solo no Brasil, que corresponde a 26,8% das famílias do país. Pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que em 35% das casas sustentadas por elas já faltou dinheiro para comprar comida durante a pandemia e em 31% para adquirir produtos de limpeza, essenciais em meio a uma crise de saúde pública. Isso agrava a vulnerabilidade que essas mulheres já viviam antes da pandemia: segundo dados do IBGE, 56,9% das mães solo vivem abaixo da linha da pobreza, sendo 64,4% dessas mães negras.
A psicóloga e educadora Elânia chama a atenção para a realidade na periferia, onde crianças e adolescentes muitas vezes ficam em casa sozinhos e são responsáveis pela casa e por outros irmãos menores. “Quando se é uma criança periférica, se aprende desde cedo que ou a mãe sai para trabalhar ou vai faltar comida em casa”, diz Elânia, que destaca a ausência do Estado nesse contexto.
Nem todas as profissionais de saúde contam com auxílio psicológico no seu local trabalho. Das quatro profissionais entrevistadas, duas não possuem esse acompanhamento (ambas trabalham em hospitais públicos). “Nosso único tratamento psicológico tem sido nós mesmas, uma conversando com a outra, uma ajudando a outra. A gente chega em casa com o psicológico muito abalado, a mente muito cansada e o corpo muito cansado”, diz Katia. (…)”
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Fonte: Gênero e Número
Data original da publicação: 28/05/2020