‘Regulação de trabalho por aplicativos não se resolve por canetada’, diz coordenador de GT
Clemente Ganz Lúcio, membro da transição, destaca que o governo Lula quer buscar soluções com trabalhadores, empresas e Congresso
Por Fábio Zambeli | Jota
Clemente Ganz Lúcio, coordenador do GT da transição sobre Trabalho, aborda em entrevista ao JOTA como tem sido tratado o debate sobre a regulação dos trabalhos envolvendo aplicativos e plataformas.
Ele destaca que o tema é considerado como algo complexo e que ainda necessitará de um debate envolvendo trabalhadores e empresas, além do novo Congresso. A perspectiva é que após fevereiro seja dado o encaminhamento sobre o tema e a definição do que terá de ser feito por lei e se há medidas a serem tomadas por normas infralegais.
Na sua visão, há ainda a possibilidade de negociações coletivas entre trabalhadores e empregados, mas com a dificuldade de se construir a representação objetiva dos “autônomos” que trabalham nesse mercado tão recente.
Clemente, que é sociólogo e foi diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) por 16 anos, observa que pode haver dentro do espectro casos em que a relação seja de “assalariados”, que devem ser tratados de forma diferente.
O coordenador do grupo de trabalho afirma que haverá liderança do Ministério do Trabalho na regulação, mas que deve haver envolvimento de diversas pastas para que seja construída a fórmula mais eficiente.
Entre as referências citadas pelo coordenador estão as mudanças realizadas na legislação da Espanha.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Como está o status da discussão no GT sobre trabalhadores de aplicativos e qual a sua avaliação sobre a pauta e as principais providências que precisam ser tomadas?
O trabalho da transição visa dar os insumos para o novo governo tomar as medidas em janeiro e principalmente para a transição tomar as medidas ainda em dezembro, desarmando as bombas e tirando as cascas de banana. Há o debate, por exemplo, sobre o orçamento, no qual o atual governo não deixou um centavo para pagar o Bolsa Família e, talvez, não tenha verba para pagar a previdência em dezembro, que é um escândalo.
O nosso objetivo é identificar essas urgências, quase que num pronto-socorro para as medidas de respostas muito rápidas. Ao mesmo tempo, nós abrimos em todos os grupos para que ouvíssemos organizações e especialistas. Então, estamos também recepcionando propostas e contribuições, que nós deixaremos como um subsídio à futura equipe ministerial.
Uma dessas questões é aquela relacionada à produção da proteção laboral e previdenciária para metade da força de trabalho que não tem essa proteção, que são os trabalhadores autônomos, por conta própria, trabalhadores domésticos, e assim por diante.
E entre eles você tem, de forma crescente, trabalhadores que passam a ter sua ação mediada por aplicativos ou por plataformas. Isso atinge os trabalhadores que já estão na chamada economia informal e que incorpora o uso da tecnologia. É o eletricista, o encanador, o pedreiro que passa a fazer o seu trabalho hoje mediado por uma plataforma na qual aquele que demanda o trabalho acessa esse prestador de serviço por meio de uma plataforma.
Então, é algo muito maior do que aquilo que, no geral, especialmente a mídia, converge, trazendo como se fosse trabalhador mediado por aplicativo aqueles que fazem transporte de pessoas e mercadorias, o Uber e os IFood da vida. Esses, sim, são trabalhadores mediados por aplicativo, são um milhão e meio, dois milhões de trabalhadores, mas nós temos duas, três, quatro vezes mais trabalhadores já hoje mediados por aplicativo. E se nós estendermos isso para o teletrabalho, nós vamos ver que são milhões de trabalhadores que hoje têm algum tipo de tecnologia mediando seu trabalho e que exigem ou o estabelecimento de regras para o uma proteção que não existe ou mudanças nas regras para atender uma nova situação de trabalho. Estamos recomendando ao futuro ministério que dê prioridade a esse tema.
Sugerimos ao presidente eleito e aos parlamentares agora em dezembro que não deem continuidade ao debate que está no Congresso sobre a regulamentação do trabalho por aplicativo porque julgamos mais adequado fazê-lo com a nova legislatura e com o novo governo, estabelecendo inclusive um processo de diálogo social muito mais estruturado com a participação da sociedade, dos trabalhadores e das próprias empresas de aplicativos.
Não achamos que é algo que você resolve numa única canetada. É muito provável que seja necessário um processo legislativo que vai definindo regras, vai aprovando e vai definindo novas regras e vai num processo contínuo construindo um arcabouço legal para esse mundo do trabalho sem proteção.
Com relação ao timing, você falou que esse trabalho de médio e longo prazo, com uma mesa tripartite, começaria somente com a nova legislatura. Então, quer dizer que antes de março não deve acontecer nenhum avanço?
É muito provável que uma equipe ministerial possa começar a trabalhar já a partir dos primeiros dias de janeiro, se assim definirem.
Trabalhamos em que sentido? Em que essa equipe tome pé da situação. Se for uma equipe que não conheça tão profundamente esse tema, ela chame especialistas, se posicione e compreenda em que estado da arte está o tema, por exemplo, no Congresso, porque há um processo legislativo em curso, ouvir os trabalhadores e os empregadores antes mesmo da própria posse do novo Congresso. Portanto, a equipe ministerial pode chegar ao início de fevereiro com o posicionamento mais claro.
Aí, tendo a posse do novo Congresso, a definição dos cargos nas duas Casas, haverá muito provavelmente a indicação da relatoria desses projetos que estão no Congresso e, portanto, a retomada desse assunto já a partir de fevereiro poderá ser feita.
Achamos que esse é o encaminhamento correto, adequado, para que a partir de fevereiro esse tema possa ser novamente colocado em debate e aí produzidas as soluções ou as respostas que porventura venham a ser criadas ou, no âmbito do diálogo social, pactuadas entre trabalhadores e empregadores. Isso pode, por exemplo, resultar num acordo, numa convenção coletiva entre trabalhadores e empregadores diretamente. As centrais sindicais fecharem acordo com as plataformas de transporte. Outra coisa é a produção de legislação, que é algo muito mais amplo e muito mais complexo porque exige a interação entre o Poder Executivo, o Legislativo e em alguma medida muitas vezes o próprio Judiciário, que precisa ser ouvido porque também está se posicionando sobre o tema.
Então, depende de qual é o nível de amplitude que se buscará dar, se você vai buscar uma legislação um pouco mais ampla, se vai se procurar fazer isso ponto a ponto, normativo por normativo, pegando cada um dos aspectos, regulando. Depende de qual a estratégia que o governo e o próprio Congresso venham a definir e, é evidente também, a estratégia que o movimento sindical e as empresas poderão estabelecer numa relação direta, porque a nossa proposta ao governo é de fortalecimento da negociação coletiva e do sistema sindical.
Dentro do que você já obteve de informação e até da sua trajetória, quais seriam os principais desafios do governo eleito? Por exemplo, há dados suficientes para o governo começar a trabalhar? E sobre representatividade. Como que esses trabalhadores hoje estão representados e como é que se dialoga de uma forma mais objetiva com eles?
Bom, o que a gente tem é um pouco a referência de como estava até 2016. De lá para cá, e especialmente no governo Bolsonaro, o que nós estamos observando, em geral — não posso dizer especificamente do mundo do trabalho, porque a gente também não conseguiu olhar com maior detalhe —, é uma destruição generalizada da capacidade do Estado em formular e executar políticas públicas.
Então, o diagnóstico provavelmente não só significará respostas normativas para uma determinada regra de proteção para que os trabalhadores acessem, como também observar a capacidade do Estado em implementar, acompanhar e fiscalizar e monitorar uma implementação de uma determinada política pública. Duvido que o país tenha organizado um cadastro das empresas, das plataformas e dos trabalhadores em aplicativos. O que é muito provável é que nós encontremos carências estruturais do ponto de vista da geração das informações.
Especificamente sobre aplicativos, dado que é uma coisa nova, com baixa regulamentação tanto para as empresas quanto para os trabalhadores, é muito provável que um conjunto normativo inclua necessariamente a produção de uma base cadastral tanto das empresas quanto das plataformas. Coisas que inclusive não só aqui no Brasil que se está discutindo.
A gente fala muito de plataforma pensando, como eu disse, nos aplicativos. Mas, pega o Airbnb que é a plataforma de aluguel para turismo, moradias que são transformadas em uma unidade econômica de turismo. Essa plataforma no mundo todo vem transformando essa economia de viagens e de hospedagens. Duvido que no Brasil a gente tenha um cadastro de quais são as unidades residenciais usadas como unidades econômicas para produzir esse serviço de hospedagem. Se a gente vai querer mediar esse trabalho e por trás desse trabalho, dessa plataforma, há milhares de trabalhadores que direta ou indiretamente interagem com esse tipo de serviço, organizar o cadastro desses imóveis é uma coisa economicamente importante para você monitorar uma área que se expande. Isso está sendo debatido no mundo todo.
A União Europeia está tentando criar uma regulamentação para fazer esse registro. A Espanha recentemente criou uma legislação para regular a participação dessas empresas, do tipo Uber e outras, na sua economia. Provavelmente o Brasil precisará fazer a mesma coisa, do ponto de vista do registro dessas empresas e do seu cadastro.
Há, por exemplo, uma regulamentação na Espanha e em outros países que trata do acesso ao log, ao algoritmo que essas empresas usam para monitorar cada trabalhador. Significa que ele está sendo monitorado pela inteligência artificial com os critérios que a empresa define, alocando, realocando, demitindo, contratando, afastando. Na Espanha foi regulado que o trabalhador tem direito ao acesso permanente, universal, a todas as informações do algoritmo relacionado ao seu cadastro. Tenho absoluta certeza que o Brasil não tem nada em relação a isso. São coisas que vão precisar ser feitas e a partir do zero. E se não tem nada você tem que construir tudo, construir o critério, a forma, o instrumento para fazer. Você não faz isso de uma hora para outra.
Claro que precisa de uma regulamentação, pode ser uma regulamentação administrativa do ponto de vista do ministério, pode ser algo que exija um decreto presidencial, como pode ser algo que exija uma regulamentação aprovada no Congresso. Então, dependendo do que for, você tem tempos inclusive de materialização dessas decisões. Olhar para tudo isso e para essa multiplicidade de inserções ocupacionais e de atividades econômicas, segmentá-las para poder responder a cada uma dessas situações econômicas com aquela resposta que dê efetividade tanto para empresa poder fazer o seu trabalho com segurança quanto para os trabalhadores terem a proteção e quanto para o Estado poder fazer um boa gestão é algo que leva tempo.
E não é uma única regra. Proteger um trabalhador cooperado que trabalha com plataforma é diferente de um trabalhador autônomo, que é diferente de um trabalhador que está sendo, digamos, ludibriado por uma relação de autônomo quando na verdade aquilo pode significar um assalariamento. Pode ter muito assalariado disfarçado nesse meio. Portanto, conseguir separar essas coisas é algo que precisa ser feito de maneira cuidadosa para você ter uma resposta efetiva, para cada um desses contextos.
Sobre essa questão da representatividade dos trabalhadores, como é hoje o seu diagnóstico sobre esse quadro? Há uma necessidade de que hoje esses trabalhadores sejam organizados de uma forma que tenham ali uma representatividade sindical, ou você acredita que essa não seja uma necessidade de largada?
Primeiro tem um diagnóstico feito pelos movimentos sindicais, não só no Brasil, de que é necessário olhar para o mundo do trabalho e reorganizar a sua forma de representação dadas as profundas mudanças que ocorrem no mundo do trabalho. Então é claro, por parte do movimento sindical, que é preciso construir uma capacidade política sindical de representação desses trabalhadores, que não tem proteção sindical porque não fazem parte do mundo dos assalariados clássicos. É uma tarefa complicada de criar e inventar a forma de representação que não necessariamente recai sobre a famosa forma clássica de sindicato por categoria.
É muito provável, e isso tem aparecido em muitos países, formas de representação mais horizontais, menos segmentada por categoria e mais estruturada dos trabalhadores independente da sua forma de ocupação. Há respostas em lugares específicos, especialmente dos trabalhadores em plataformas de transporte de pessoas e mercadorias que procuram se organizar por sindicato por categoria inclusive com base municipal, mas isso não necessariamente significa que tenhamos uma boa resposta organizativa. Isso é um debate sindical mais para frente, não só no Brasil, mas no mundo.
E a outra coisa é como isso se transforma, essa representação, no processo de pactuação, seja de uma celebração ou uma convenção coletiva, de um acordo coletivo com uma empresa mundial. Você pode produzir um acordo coletivo nacional com a Uber, por exemplo. Em tese, legalmente, pode. Qual é a organização nacional que representa os trabalhadores da Uber? Tem que olhar, debater com as organizações que existem — nesse caso, as centrais sindicais são os órgão máximo de representação que podem ter a tarefa de articulação, aglutinação de uma forma de representação que já exista, e o que não existe que possa ser criado.
Mas não há uma resposta definitiva e vai depender inclusive do tipo de espaço de diálogo que essa representação venha a encontrar junto ao governo , junto às empresas e ao Congresso.
Pelo que está sentindo nesse período de transição, esse tema no novo governo terá a liderança do ministério do Trabalho?
É um tema que cabe ao ministério do Trabalho ser o protagonista do ponto de vista da iniciativa, mas é um tema que exigirá necessariamente uma interação com vários ministérios: Indústria e Comércio, Fazenda, Planejamento, Ciência e Tecnologia, Saúde, todos eles precisam de alguma forma serem relacionados com a solução do problema. Porque se trata de olhar para a empresa, olhar para o trabalhador e olhar para os direitos. Como é que você dá a proteção à saúde desses trabalhadores acidentados, por exemplo? Então você tem que criar uma regra, e parte disso vem do Ministério da Saúde, parte disso vem do Trabalho, e parte vem da Fazenda, que vai ter que financiar.
O GT já está trabalhando no seu relatório final?
Tem um relatório final, que a princípio é o documento que a gente entrega para equipe de transição, que não é secreto, mas é sigiloso.
Clique aqui e acesse a entrevista na íntegra
Fonte: Jota
Data original da publicação 12/12/2022