Renda Básica e Renda Máxima, propostas verdadeiramente republicanas contra os grandes poderes privados. Entrevista com Daniel Raventós
Daniel Raventós, espanhol, é doutor em Ciências Econômicas, professor da Faculdade de Economia e Empresa da Universidade de Barcelona, Espanha. É autor de livros como “Renta Básica contra la incertidumbre” (publicado por RBA, 2017); “Renta básica Incondicional. Uma propuesta de financiación racional y justa” (com J. Arcarons y L. Torrens, publicador Ediciones Serbal, 2017); e o mais recente, “Against Charity” (com Julie Wark, publicado por Counterpunch, 2018).
Por João Vitor Santos|Instituto Humanitas Unisinos
“A desigualdade atinge níveis recordes no Brasil e no mundo, carregando consigo taxas de empobrecimento bruto e recrudescimento do trabalho informal. No contexto da Revolução 4.0, a nova configuração dos postos de trabalho acentua o temor sobre o futuro da grande massa de trabalhadores. Na avaliação de Daniel Raventós, essa desigualdade é parasitária e imoral, e não fruto do merecimento ou da falta de esforço. ‘De acordo com George Monbiot, as listas de pessoas ricas estão repletas de gente que ou herdou sua fortuna ou a fez graças a atividades rentistas: por outros meios que não foram a inovação ou o esforço produtivo’.
A desigualdade econômica aparece então como causa e consequência da desigualdade do poder político. Segundo Raventós, ‘os ricos capturaram muitas rendas da maioria da população graças às legislações que conseguiram impor’. A diferença de força nos mecanismos de poder ‘entre bancos e o restante da população’ é a expressão ‘da atual configuração política dos mercados, que explica perfeitamente por que os ricos estão cada vez mais ricos, antes e durante a crise econômica, junto ao fato de que a maior parte da população está cada vez mais pobre’.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Raventós defende a proposta de renda básica para a superação da desigualdade, mas desde que seja associada a uma renda máxima, a um Estado de Bem-Estar Social e ‘financiada pelos 20% mais ricos’. ‘As grandes fortunas têm a possibilidade de interferir à vontade nas condições materiais de existência da imensa maioria. E essa possibilidade, que muitas vezes se torna realidade, atenta contra a liberdade da maioria não rica’, destaca o economista espanhol.”
Confira os principais trechos da entrevista
“IHU On-Line – Em suas reflexões recentes, o senhor defende o emprego de “renda básica incondicional” e de “renda máxima”. Gostaria que detalhasse esses dois conceitos.
Daniel Raventós – A associação Basic Income Earth Network entende por renda básica uma alocação pública monetária incondicional para toda a população. Incondicional é uma característica essencial. Os subsídios que conhecemos para pobres, para pessoas que não chegam a um determinado nível de renda e/ou pessoas desocupadas são condicionais.
A renda máxima significa que a partir de determinada quantidade não se pode ganhar mais, ou seja, 100% da taxa impositiva. A ideia é velha e pode se encontrar na concepção mais que milenar da liberdade republicana. Republicanamente as grandes fortunas são incompatíveis com a liberdade da grande maioria. As grandes fortunas têm a possibilidade de interferir à vontade nas condições materiais de existência da imensa maioria. E essa possibilidade, que muitas vezes se torna realidade, atenta contra a liberdade da maioria não rica.
É nisso precisamente que a neutralidade republicana se diferencia da liberal – a qual se conforma com que o Estado não tome partido por uma concepção determinada de vida digna em detrimento de outras que possam existir –, pois exige acabar com a capacidade dos grandes poderes privados de impor ao conjunto da sociedade sua concepção privada de vida digna e de disputar no Estado essa prerrogativa.
Republicanamente as grandes fortunas são incompatíveis com a liberdade da grande maioria
Daniel Raventós
IHU On-Line – A instauração de uma renda básica por si só é capaz de reduzir as desigualdades? Que outro conjunto de medidas de política econômica e social deve ser adotado junto com a renda básica?
Daniel Raventós – Depende de como se financie. As diferenças entre as propostas de renda básica de direita e esquerda são muitas. Porém uma das mais importantes é como se financia. Dito de outra maneira, quem ganha e quem perde, que parte da população sairá beneficiada com uma renda básica e que parte não. Para a esquerda, o financiamento da renda básica significa uma reforma fiscal que suponha uma redistribuição da renda dos decis mais altos ao restante da população. A direita pretende outros objetivos, não precisamente uma redistribuição da renda dos mais ricos aos demais.
Sobre outras medidas que devem ser levadas em consideração, dependerá das opiniões políticas. Há pessoas que talvez tenham em comum a defesa da renda básica, porém as opiniões políticas são opostas ou muito diferentes. Conheço pessoas que defendem a renda básica com as quais não tenho nenhuma comunhão de ideia, política ou socialmente. E talvez existam pessoas que discordem da renda básica, mas por outro lado posso ter com elas mais afinidade em outros aspectos políticos e econômicos.
No meu caso, defendo que a renda básica deve ser acompanhada da defesa do Estado de bem-estar social, com a imposição de uma renda máxima, que citei anteriormente, um controle público da política monetária, uma redução da jornada de trabalho… Entre outras medidas, para garantir a existência material de toda a população, condição republicana para ser livre.
IHU On-Line – As novas tecnologias e a chamada Revolução 4.0 têm impactado o mundo do trabalho. Em que medida a instituição de uma renda básica poderia amenizar esses impactos?
Daniel Raventós – Distintos estudos asseguram que a robotização pode afetar muitos postos de trabalho, com uma ressalva a respeito de outras épocas: não é uma ameaça somente para os trabalhos de baixa qualificação, mas também para alguns de alta qualificação.
Essa situação, que em parte já está se vivendo, é uma das razões pelas quais novas pessoas apoiam a proposta de renda básica nos últimos anos. A robotização pode ser algo realmente bom para a imensa maioria da população se seus benefícios se repartirem entre todos. Isto é, se o incremento da produtividade que representará a robotização se converter em menos horas de trabalho. Claro que uma renda básica pode ser uma das grandes medidas que permitam distribuir entre toda a população as vantagens da robotização. Porém também pode suceder que esses benefícios somente sejam agenciados pelos proprietários das grandes empresas. Que se incline em um ou outro sentido dependerá (ou deveria depender, sejamos realistas) da vontade da grande maioria.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Daniel Raventós – Somente o seguinte. Dentro de poucos anos, a renda básica pode chegar a ser algo que nos pareça tão normal ou natural como hoje nos parecem as férias pagas, o direito à sindicalização, o sufrágio universal, a proibição do trabalho infantil, a proibição da tortura… Talvez.
Porém também, se seguir a tendência dos últimos anos, podemos desembocar em uma sociedade em que impere o trabalho semiescravo (ou, para não enganar, falemos diretamente: escravo), com condições sociais cada vez piores para a maioria da população não rica, com o império das multinacionais e a mais servil submissão dos governos. Depende de nós.
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Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 23/10/2019