Renda básica universal e a eliminação do trabalho análogo à escravidão

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano em Las Palabras Andantes?)

Imagem: Spacca | Reprodução

Por Maria Teresa Vieira da Silva e Ronaldo Alvarez Inforsato | Consultor Jurídico

A escravidão ainda está entre nós.

Ainda que seja negado ou desconhecido por parte da população, pela mídia e pelo Estado, o trabalho escravo existe.

O Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão; abolida apenas no plano formal, uma vez que no plano material o Estado não implementou políticas públicas de inserção dos ex-escravizados na sociedade.

A falta de políticas de reparação fez com que o impacto da trajetória do escravismo no Brasil se prolongue até os dias atuais, havendo disparidades visíveis entre brancos, negros, pardos e seus descendentes, valendo citar o acesso à educação, à moradia — passando pelo processo de gentrificação; o que impõe que os “herdeiros” da escravatura sejam novamente lançados no mercado de trabalho escravo, em um looping cruel e injusto.

Entre 1995 e 2022, mais de 610 mil pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil.

No primeiro trimestre de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou o número recorde de 918 trabalhadores escravizados, uma alta de 124% em relação ao mesmo período de 2022.

No Brasil, as atividades que mais fazem uso do trabalho escravo são a produção de carvão vegetal, a criação de bovinos para corte, serviços domésticos, cultivos da maçã, do café e da soja.

Excetuando os serviços domésticos, todas essas atividades fornecem commodities para os mercados nacional e internacional, não sendo difícil concluir que se tratam de bens de alta relevância para a economia global.

Mas o trabalho escravo não ocorre apenas nessas áreas.

Em 2023, no Rio Grande do Sul, 293 pessoas foram resgatadas no mês de março, na safra da uva, em Bento Gonçalves, e na cultura do arroz, em Uruguaiana.

No mesmo ano, foram resgatados outros escravizados nos estados de Minas Gerais, Bahia, Piauí e Goiás, que atuavam nas áreas da construção civil, do extrativismo mineral, na indústria do entretenimento sexual, além de outras.

No final de janeiro de 2024, nova operação resgatou, em São Marcos (RS), 22 argentinos que trabalhavam na colheita da uva em uma propriedade rural, dentre eles, menores de idade e maiores de 60 anos.

Na segunda semana de fevereiro deste ano, novo resgate em Farroupilha (RS): cinco trabalhadores, dentre eles três adolescentes.

Diante disso, uma reflexão se impõe: o orgulho nacional pelo fato de o Brasil figurar como a nona economia mundial faz sentido se isso decorre, em grande parte, pela escravização de seres humanos? De que serve ser um país economicamente forte se uma parte dos brasileiros, valor maior de uma nação, está nessa condição?
Conceito e causas do trabalho escravo contemporâneo

Primeiro temos que responder a outra indagação: mas, afinal, o que é exatamente o trabalho escravo moderno?

O artigo 149 do Código Penal, alterado pela Lei nº 10.803/2003, e que representa importante avanço na legislação, traz o conceito de trabalho escravo contemporâneo: diversamente do que ocorria, não é apenas a privação de liberdade do trabalhador que configura trabalho escravo, mas todo e qualquer trabalho degradante ou exaustivo, ou, ainda, que importe em intimidação e restrição da liberdade de locomoção do trabalhador.

Tal previsão legal — aliada à circunstância de ser o Brasil signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de ter ratificado diversos tratados sobre o tema, todos instrumentos que condenam o trabalho escravo — não autoriza a ilação de que o cometimento desse crime esteja diminuindo em nosso país.

Ao contrário, os números apresentados pelas instituições responsáveis pelo combate ao trabalho escravo no Brasil revelam que esse crime, lamentavelmente, só recrudesce; o que inclusive importa em violação à sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por descumprir os direitos previstos no Pacto de San Jose da Costa Rica, dentre eles o direito de não ser submetido à escravidão.

Spacca

A pobreza, a desigualdade social, a falta de oportunidades e a xenofobia são as principais causas da persistência do mercado de trabalho escravo no Brasil e no mundo.
“Vale a pena arriscar”

Tudo isso aliado ao cálculo dos empresários que se utilizam do trabalho escravo de que “vale a pena arriscar”.

O modelo econômico em que vivemos impõe a manutenção desse quadro: pessoas físicas e jurídicas, em busca da obtenção de maiores lucros, têm no trabalho escravo sua opção mais lucrativa, seguindo a cartilha dos colonizadores que enriqueceram e desenvolveram seus países a partir do século 16.

Diferentemente dos colonizadores, esses empregadores não se manifestam publicamente a favor do trabalho escravo; mas nas entranhas do poder o lobby pela permanência desse sistema é de orgulhar o feitor do século 17.

Tanto isso é verdade que um dos mecanismos legislativos para o combate ao trabalho escravo, a chamada “lista suja” (cadastro público de empregadores que submeteram trabalhadores ao trabalho escravo e que impede que eles tenham acesso a crédito público) foi questionada judicialmente perante o STF por diversas entidades empresariais.

Felizmente, o STF decidiu pela constitucionalidade do referido cadastro.
O combate à prática

Mas, se por um lado, temos o crescimento do trabalho escravo no Brasil, por outro, a atuação das instituições responsáveis pelo seu combate tem evoluído e se aperfeiçoado.

Mutirões de combate, grupos móveis de fiscalização, atuação conjunta das esferas administrativa e judicial, política de colaboração entre os órgãos, capacitação de agentes, condenações na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal, expropriação de propriedades rurais e urbanas flagradas com trabalho escravo, tudo têm contribuído para dar visibilidade a essa triste realidade e combatê-la.

Contudo, sabemos que tão-somente o combate ao trabalho escravo, assim como em outros tipos de crimes, não é suficiente para exterminá-lo, uma vez que constitui o ideal de custo zero do próprio sistema capitalista.
A importância da responsabilização

Somente quando aquele empresário que arregimenta trabalhadores escravizados tiver desvantagem financeira, em razão de severas punições ou pela concorrência no emprego de novas tecnologias, é que podemos vislumbrar um cenário de redução do trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão.

Formas supletivas de interrupção da engrenagem do trabalho escravo também passam por uma reforma agrária efetiva e pela criação de incentivos ao desenvolvimento de todas as regiões do Brasil, contribuindo para que as pessoas lá residentes permaneçam em seus locais de origem.

Passa, ainda, pela responsabilização dos compradores externos dos produtos que têm mão de obra escrava na sua produção. Estamos falando de países que têm discursos progressistas em seu solo, mas que fecham os olhos para o sofrimento de trabalhadores estrangeiros escravizados, tudo no escopo de manter suas economias funcionando e alto o índice de desenvolvimento humano de seus cidadãos.
Renda básica como instrumento para eliminação do trabalho escravo

Há outra forma, contudo, de reduzir o aliciamento de trabalhadores escravos de forma mais rápida e com resultados mais efetivos.

A pobreza e as desigualdades sociais são o gatilho de convencimento do trabalhador a aceitar postos de trabalho degradantes ou em regime de escravidão. Quem não tem nada, não tem escolha. Os aliciadores do trabalho escravo sabem usar muito bem esse desespero como isca para essas pessoas.

Mas, e se pudéssemos retirar da equação a oferta de mão de obra a ser explorada?

Tal realidade seria possível por intermédio da instituição da chamada “Renda Básica Universal” (RBU).

Trata-se de um valor pago pelo governo a todo e qualquer cidadão sem regras de elegibilidade, de caráter não contributivo, independentemente de idade, gênero, renda ou condicionantes.

A proposta é assegurar a todos uma vida desprovida de privações materiais, e, de quebra, garantir que os cidadãos, dispondo de uma renda mínima de sobrevivência, ostentem um maior poder de barganha em relação a ofertas de trabalho, não se submetendo a funções degradantes, nocivas à saúde, exploratórias e em condições análogas à escravidão — a que o trabalhador somente recorre quando se vê premido pela necessidade de sua sobrevivência e de sua família.

Outra consequência da RBU seria aumentar o valor da força de trabalho, colocando na equação valores antes não existentes quando do uso do trabalho escravo, forçando o uso de máquinas em trabalhos degradantes, como é o caso da coleta de lixo, operada por trabalhadores no Brasil, e por máquinas em países ricos do norte global, por exemplo.

Diversamente do que ocorre com os programas de transferência de renda tradicionais, a RBU não tem por foco a população mais pobre, senão toda a população, desde o nascimento até a morte, alcançando a integralidade da família e não exigindo qualquer condição para a aquisição do benefício (como ocorre com o “bolsa família”, por exemplo).

A RBU tem por fundamento principal o enfrentamento da pobreza, da desigualdade social e representa uma possibilidade de transformação estrutural da sociedade.

Mais do que uma política humanitária, a renda mínima é uma ferramenta primordial para o cumprimento de uma obrigação imperativa do Estado, uma vez que a promoção de assistir à população economicamente desfavorecida é uma determinação da Constituição Federal de 1988.
Histórico, impactos e fontes de financiamento da RBU

A exigibilidade de um programa de renda básica não é recente. Desde o século 16 estudiosos das mais diversas áreas, como economistas, filósofos, sociólogos, além de revolucionários e pacifistas, tais quais Thomas More, Thomas Paine, Thomas Spence, Bertrand Russel, John Maynard Keynes, Milton Friedman, James Tobin, John Kenneth Galbraith, Martin Luther King e Philippe Van Parijs, têm defendido a criação de um benefício básico a todos os cidadãos.

No Brasil, a ideia foi capitaneada por Eduardo Suplicy, ao argumento de se tratar de um mecanismo de empoderamento de minorias. Foi dele o projeto que se converteu na Lei nº 10.835, de 08/01/2004, que instituiu a “renda básica de cidadania”. A lei não é autoaplicável, depende de regulamentação do poder Executivo — o que não ocorreu até os dias atuais.

E para os que apregoam que a concessão da renda básica aniquilaria o mercado de trabalho, as pesquisas e a experiência evidenciam que, ao contrário, pode contribuir para se atingir o pleno emprego.

Com a RBU, a procura por bens e serviços de primeira necessidade provocaria o crescimento da economia, e, com isso, da própria empregabilidade.

A equação deve ser lida de forma inversa ao que pregam alguns economistas: não é o mercado que vai regular a RBU, mas ela é que vai regular o mercado.

Opositores do programa argumentam que seria uma medida paternalista e oportunista capitaneada por grupos de esquerda críticos do sistema capitalista.

Tais conclusões desprezam uma premissa axiológica básica: não existe igualdade social material no Brasil. Sabemos que em uma sociedade poucos são os indivíduos que prosperam sem um ponto de partida. Esses são a exceção, uma vez que prosperidade, em regra, se acumula de forma geracional.

Como bem pontuou Martin Luther King, “(…) é óbvio que se um homem entra na linha de partida de uma corrida trezentos anos depois de outro, o primeiro teria de realizar uma façanha incrível a fim de alcançá-lo”.

A maioria dos cidadãos brasileiros não é “herdeiro”. Assim, seu ponto de partida é o nada. Com a renda mínima garantida, esse ponto de partida passa a ter outra feição: concede ao indivíduo opções.

A ideia da renda mínima universal não está atrelada, necessariamente, a uma ou outra corrente político-ideológica, mas uma ideia dos que se preocupam com a dignidade da pessoa humana. Importante notar que os estudos acerca do tema foram feitos por pesquisadores de diferentes matizes teóricas.

Diversas são as propostas de financiamento da renda básica universal.

Eduardo Suplicy propõe que o programa seja financiado pelo que chama de “Fundo Brasil de Cidadania”.

A RBU poderia também ser provisionada mediante um sistema vinculado à produção econômica do país, como destinar 10% do PIB para seu financiamento ou com a criação do imposto de renda negativo. Isso sem falar no repasse dos valores oriundos da extinção de todos os outros programas de assistência social.

As experiências exitosas de implantação da RBU em outros países e até no Brasil autorizam a conclusão de que é plenamente defensável e factível a ideia de que uma fração da receita proveniente da exploração de nossos bens comuns globais seja redistribuída para financiar a renda básica, como ocorre no Alasca e em Maricá, cujos programas são financiados pelos royalties do petróleo.

A questão orçamentária para a efetivação da RBU não é sobre escassez de dinheiro, mas sim de vontade política e de pressão da população sobre onde empregar o dinheiro do nosso país.

Muito se fala sobre o financiamento de programas sociais, antes mesmo que eles sejam efetivados. É o caso da RBU. Mas pouco se discute quando o dinheiro público é empregado para suportar parcelas privilegiadas da sociedade.

Dá-se como natural o emprego de parcelas significativas da riqueza brasileira para alguns pequenos grupos sob forma de isenções de impostos sobre a exportação de commodities, grandes fortunas, a atividade de igrejas, IPVA para aeronaves e embarcações, rações animais e defensivos agrícolas, o estabelecimentos de multinacionais no país; cobrança de impostos ínfimos sobre as grandes propriedades rurais; gastos com as Forças Armadas, seja no financiamentos de projetos de construção de submarinos e outros artefatos de necessidade duvidosas, e também na manutenção de pensões de viúvas e filhas solteiras de militares; subsídios para a indústria; renúncia fiscal para empresas aéreas; orçamentos públicos bilionários para partidos políticos, dentre outras.
Da teoria à prática

Nessa linha, temos que a implantação de uma política de renda básica universal depende, mais do que de debates legislativos e contabilidade em gabinetes, do interesse político e da luta popular.

Grupos com alta representatividade e com fortes lobbies têm cada um sua “RBU” própria. É a pressão da sociedade organizada que vai determinar a urgência da implantação do projeto de RBU e seu orçamento.

Não estamos falando sobre vantagens econômicas para grupos específicos. Estamos falando de dignidade humana universal.

Segundo a Organização das Nações Unidas, “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”.

Esses direitos passam necessariamente pelo estabelecimento de uma sociedade que confira condições dignas de sobrevivência a todos os seus cidadãos.

Assim, a RBU surge como uma alternativa para o enfrentamento da pobreza e da supressão das formas de perpetuação da miséria, de emancipação e empoderamento do indivíduo e, por conseguinte, de eliminação de toda e qualquer forma de trabalho degradante e escravo.

Estudos mostram que o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) reduziram a pobreza em nosso país. Contudo, a redução da pobreza não veio acompanhada de diminuição da desigualdade social. É aí que a RBU pode fazer a diferença: mais do que reduzir a pobreza, tem potencial para equilibrar as desigualdades sociais.

Em um mundo em que a abundância concentra-se nas mãos de poucos, a correção dessa desigualdade passa, necessariamente, pela redistribuição da riqueza.

Por fim, cabe registrar que de nada adianta a lei da RBU compor o ordenamento jurídico brasileiro se suas diretrizes ainda não se tornaram realidade concreta.

Uma lei não cria uma realidade, apenas possibilita que as condições nela prevista deixem se ser meras previsões e se tornem reais.

E para que a mencionada lei se torne efetiva, há que se lutar por ela. Discutir sobre ela. Levá-la ao conhecimento de todos. Pressionar as autoridades.

Fazer o que Franklin Roosevelt sugeriu aos jovens que lhe apresentaram uma proposta para acabar com o desemprego fizessem: “muito bem, vocês me convenceram. Agora saiam e tratem de fazer que a sociedade exerça pressão sobre mim”.

DENUNCIE O TRABALHO ESCRAVO!

-Disque 100;

-Ministério Público do Trabalho: https://mpt.mp.br/pgt/servicos/servico-denuncie

-Ministério Público Federal: https://www.mpf.mp.br/mpfservicos

-Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência: https://ipe.sit.trabalho.gov.br/#!/

Fonte: Consultor Jurídico

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Data da publicação original: 14 de março de 2024

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