Resenha: Um pé na cozinha, por Rodolfo Teixeira Alves
Por Rodolfo Teixeira Alves |Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Um pé na Cozinha, livro da socióloga Taís de Sant’Anna Machado publicado pela Fósforo no final de 2022, tá dando o que falar. E o livro dá mesmo, com suas quase 400 páginas de um trabalho que propõe questões para o campo que estamos chamando de estudos críticos de alimentação. Taís é referência nisso e seu livro é um marco importante para as pessoas interessadas nas relações sócio-históricas que atravessam a cozinha.
O livro apresenta uma análise aprofundada no trabalho culinário de mulheres negras no Brasil. Esse é o papo, que fala da continuidade das estruturas coloniais de poder e hierarquização racial; do racismo antinegritude e da brancura como ideal; das diversas formas de violência que operam na cozinha – da doméstica à profissional – e organiza a gastronomia que hoje atrai as classes médias urbanas e faz parte dos seus estilos de vida. Embora o esforço do livro seja mostrar as condições exaustivas do trabalho doméstico e, em especial, o trabalho essencial de cozinheiras negras, a proposta teórica de Taís é reiterar que, mesmo com tudo isso, essas mulheres aproveitaram e construíram brechas nessas estruturas de controle com suas formas de agência e resistência cotidianas. “Tão importante quanto o espaço da cozinha é o cozinhar como técnica e trabalho na manutenção de seu sustento (e dos seus), na conquista de uma possível ascensão social e no suporte a projetos sociais coletivos” – diz ela, na página 253. É por aí que Taís constrói essa cozinha circular como espaço geográfico de ação social e política dessas mulheres negras que compõem o livro.
Taís apresenta e costura – pela crítica feminista baseada na experiência de vida, agência e resistência de mulheres negras – processos históricos, econômicos e políticos, do século 18 à contemporaneidade. Ela mostra como, nos anos 20 do pós-abolição, intelectuais (majoritariamente) brancos usaram a imagem estereotipada da “mãe preta” em suas narrativas idílicas sobre a formação do Brasil. Na cabeça dessa turma, naturalizar a presença de mulheres negras na cozinha e as condições degradantes desse trabalho não era um problema. A crítica que Taís faz a essas narrativas romantizadas expõe “detalhes das relações de poder e de violência racial que se estabelecem entre patrões e patroas brancas e trabalhadoras negras, e como essas relações sempre estiveram bem distantes da história de harmonia racial geralmente contada sobre a formação da cozinha brasileira” – diz a autora na apresentação do livro.
Taís segue com sua análise crítica do material empírico mobilizado na pesquisa, como petições, cartas, imagens, diários, autobiografias, histórias familiares, obras literárias e entrevistas. É com esse material, aliado com reflexões teóricas de nomes como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Saidiya Hartman, Christina Sharpe, Patricia Hill Collins, entre outras, que Taís constrói um texto em movimento. Ele circula no tempo e faz dialogar o passado com o presente, quando mostra semelhanças históricas entre Esperança Garcia, Maria Carolina de Jesus e a chef Benedita Ricardo de Oliveira. O texto se movimenta também por espaços, descreve a insalubridade da cozinha doméstica e sua hierarquização de poder baseada no racismo antinegritude, e como isso, em contexto de escravidão urbana, se conectava com trabalho ao ganho e ocupação negra de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. E aborda como, nessa era da gastronomia em que estamos vivendo, o racismo e a brancura como ideal implicam em posições ocupadas nas cozinhas de restaurantes, em desigualdades de salários e reconhecimento profissional de chefs negras.
O olhar sócio-histórico que Taís Machado apresenta esquiva da sociologia que estuda receitas e trata da formação da cozinha nacional. O problema desses estudos, como Um pé na cozinha reitera constantemente, foi naturalizar a presença de mulheres negras na cozinha, as violências desse espaço e os estereótipos da “mãe preta” como uma imagem de controle – conceito de Patricia Hill Collins mobilizado por Taís. E não me surpreende como, ainda hoje, tem autores que querem ressoar essas narrativas que, publicadas com roupa nova, trazem aquele luso-tropicalismo cheirando a mofo.
Bom, como eu disse, Um pé na cozinha tá dando o que falar. Nos circuitos de quem estuda e trabalha com gastronomia, o livro já é considerado uma referência obrigatória. E é mesmo. “A urgência dos estudos apresentados neste livro era gigantesca e que bom que finalmente ele existe”, escreveu Lourence Alves no prefácio. Antes mesmo de virar livro, a tese de doutorado que Taís defendeu na UnB já vinha despertando a atenção do público e, atualmente, esse material conta mais de 5000 downloads. Com o livro publicado no ano passado, Taís vem circulando por cidades brasileiras para fazer lançamentos em livrarias, como na Blooks de Botafogo. Nessa atividade aqui no Rio, fui convidado para fazer alguns comentários, ao lado de Lourence Alves, Rute Costa e da própria Taís. Parte do que escrevo aqui vem das coisas que falei naquela noite. Além dos lançamentos, o livro recebeu algumas notas na imprensa e Taís concedeu algumas entrevistas para jornais de grande circulação. Digo isso para se ter uma ideia da recepção da obra nesses primeiros meses de lançamento.
Que o livro Um pé na cozinha é uma referência incontornável para os estudos críticos de alimentação no Brasil, disso não temos dúvida. A minha expectativa é que ele também passe a ocupar bibliografias de cursos de Ciências Sociais. Motivos não faltam. Um livro que analisa, a partir da trajetória de vida de cozinheiras negras, relações de poder, hierarquização racial e de gênero, projetos de vida e familiares, o papel da formação educacional como caminho de ascensão social e econômica, só para citar alguns temas transversais, daria boas horas de discussão em cursos de sociologia do trabalho, pensamento social e político brasileiro, relações raciais, e por aí vai. Espero que isso não demore a acontecer.
Quero encerrar dizendo que Um pé na cozinha é um livro construído por um pensamento em movimento e que movimenta. E a cozinha circular, como estou pensando, vem dessa dobra que faz emergir nesse espaço formas de agência e resistências dessas mulheres negras que Taís nos apresenta. O último capítulo – “A cozinha como um espaço geográfico de mulheres negras” – mexeu comigo nesse sentido. A necessidade de estar sempre atentos para maneiras de autodefinição, para sabedorias transmitidas e operadas no cotidiano, para as tecnologias que ajudam na ginga, no drible, e como elas colocam a colonialidade no jogo pra gente continuar vivendo. Tá lá no livro: o cuidado como forma de agência dessas cozinheiras negras concebe aos filhos e à comunidade negra “a possibilidade de habitar outros mundos e sonhar com outros futuros, a ser forjado por elas e eles”. Axé.
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Fonte: Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Data original de publicação: 07/03/2023