Retrato do esgotamento dos comerciários digitais
Por Gabriela Neves Delgado, Valéria de Oliveira Dias e Carolina Di Assis | Outras Palvras
Essenciais ao e-commerce, eles atuam em plataformas com tarefas que mesclam marketing, consultoria e vendas. Sem direitos, recebem apenas comissões. A rotina: jornadas extenuantes e pressão para estarem conectados sem trégua
As metamorfoses da era digital têm provocado impactos significativos sobre o mundo do trabalho, com destaque para o surgimento de novas formas de trabalho estruturadas com recursos tecnológicos de ponta. No campo da regulação justrabalhista, um dos maiores desafios diz respeito à efetivação e ao alinhamento dos direitos fundamentais trabalhistas em favor dos trabalhadores que se ativam nas mais variadas modalidades de trabalho digital.
No setor de serviços, as contradições entre o avanço tecnológico e a restrição da proteção justrabalhista em trabalhos plataformizados são ainda mais evidentes. A expansão e a diversificação das formas de plataformização do trabalho (que incluem as relações entre prestador de serviços e cliente, intermediadas por uma plataforma digital ou aplicativo) incentivam trabalhadores em todo o mundo a trabalharem “por conta própria”, como se autônomos fossem.
A plataformização do trabalho ocupa, hoje, fatia importante do mercado, mas que, infelizmente, reproduz o aumento da informalização do trabalho ao impedir que trabalhadores cadastrados nos aplicativos tenham acesso aos direitos e às garantias fundamentais trabalhistas que asseguram a concretização do pressuposto constitucional do direito fundamental ao trabalho digno.
No âmbito do comércio já é possível notar algumas propostas que se assemelham, em grande medida, ao trabalho uberizado. Tais propostas ganharam ainda mais fôlego em tempos de pandemia, sobretudo com o avanço do trabalho de marketing de afiliados – desenvolvido por divulgadores digitais em prol de empresas que investem na área do comércio eletrônico, também denominado e-commerce.
O afiliado ou divulgador digital é a pessoa física que presta serviços a determinada empresa, por intermédio de plataformas que compõem o comércio eletrônico do estabelecimento, sendo esses serviços relacionados ao marketing, à consultoria e às vendas de produtos do catálogo da empresa contratante.
A relação entre o divulgador digital e a empresa se estabelece por meio do cadastro do trabalhador na plataforma digital de consumo, onde este cria sua vitrine virtual com produtos do catálogo da empresa contratante e estabelece contato com potenciais clientes.
Deve-se salientar que os divulgadores não possuem estoque próprio de produtos, por isso têm o papel de divulgar produtos de empresas terceiras, para vendê-los. Importante dizer que como contraprestação pelos serviços prestados, o divulgador recebe o pagamento de comissões (percentuais que incidem sobre as vendas efetivadas).
O que se nota é que, no contexto do programa de afiliados, o trabalho dos divulgadores digitais em muito se assemelha ao modelo de relação de emprego, dada a real possibilidade de enquadramento do divulgador na condição de vendedor digital da empresa a que se filia. Assim, não obstante haja a tentativa por parte das empresas de construir uma narrativa de que esses trabalhadores não são empregados, mas meros “divulgadores” ou ainda “consultores”, a hipótese de reconhecimento do vínculo de emprego é, em regra, evidente.
Em alusão aos elementos fático-jurídicos da relação de emprego, é importante observar que os divulgadores são pessoas físicas que executam com pessoalidade e permanência a atividade laboral de marketing, consultoria e vendas de produtos, como se fossem vendedores/gerentes da própria empresa a que estão afiliados. Esses trabalhadores são remunerados por comissão (onerosidade) e dirigidos pela empresa de forma subordinada (subordinação algorítmica, na qual os algoritmos se valem de um controle difuso para gerenciar e controlar o trabalho, o que permite à plataforma mapear as atividades executadas e registrar a percepção do consumidor sobre o serviço prestado), não possuindo liberdade para organizar de forma autônoma o trabalho prestado.
A única distinção entre o divulgador das plataformas digitais de consumo das empresas varejistas e o empregado dessas empresas seria o modus operandi do trabalho realizado: na loja física, o trabalhador empregado se ativa no trabalho de maneira presencial, enquanto o divulgador o faz de maneira remota, utilizando-se de ferramentas digitais próprias para o trabalho de divulgação e venda. Nessa linha de raciocínio é que se compreende pelo enquadramento sindical do trabalhador divulgador na categoria dos comerciários.
No contexto do Direito do Trabalho, os grandes desafios postos dizem respeito à preservação dos direitos e garantias fundamentais que devem ser assegurados a todo e qualquer trabalhador, na perspectiva do direito fundamental ao trabalho digno. Assim, para a proteção constitucional dos divulgadores digitais, três desafios precisam ser solucionados.
O primeiro desafio diz respeito à ausência de reconhecimento do vínculo jurídico de emprego, o que coloca esses trabalhadores às margens do sistema de proteção justrabalhista vigente.
O segundo desafio concerne à constante extrapolação dos limites constitucionais permitidos para a jornada de trabalho, em clara afronta aos direitos constitucionais de descanso, lazer e desconexão laboral. É que a dinâmica de trabalho dos divulgadores digitais tende a pressioná-los a permanecerem conectados à plataforma por longos períodos de tempo, inclusive para que possam auferir comissões mais rentáveis, mediante efetivação de um maior volume de vendas.
O terceiro ponto trata dos desafios de preservação do direito à saúde, em toda a sua abrangência. Não obstante seja necessário mapear os riscos que o trabalho plataformizado pode trazer à saúde do trabalhador, já existem relatos de danos físicos, sociais e psicológicos entre os divulgadores digitais, como, por exemplo, dores no corpo, conflitos nas relações familiares e vontade de desistir de tudo, respectivamente.
Finalmente, no campo do Direito Coletivo do Trabalho, apura-se a necessidade de as negociações coletivas alcançarem os trabalhadores plataformizados. Compreende-se que a atuação sindical nas relações de trabalho plataformizadas encontra cristalino respaldo na Constituição de 1988, que enuncia o direito fundamental da pessoa trabalhadora à tutela sindical (art. 7º, inciso XXVI; art. 8º, inciso VI).
Ou seja, a Constituição Federal de 1988 confere aos sindicatos, pela via da negociação coletiva, a construção de caminhos jurídicos-institucionais para a efetivação da tutela constitucional trabalhista em favor de todo e qualquer trabalhador, inclusive os que se ativam em plataformas digitais de consumo, como é o caso dos divulgadores.
Portanto, embora haja desafios a serem superados para se garantir o acesso sindical aos trabalhadores que atuam como divulgadores digitais de empresas do ramo do comércio, é preciso que as entidades sindicais busquem meios para alcançá-los, de modo que suas demandas passem a compor obrigatoriamente as pautas de reivindicação da categoria dos comerciários. O intuito, ressalte-se, é reafirmar o sistema constitucional e legal de proteção trabalhista edificado na premissa básica do direito fundamental ao trabalho digno.
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Fonte: Outras Palavras
Data original de publicação: 30/06/2022