Revista Saúde em Debate v. 44 n. Especial 4 – Covid-19: conhecer para enfrentar os desafios futuros
Por Revista Saúde em Debate
Editorial
O que será do amanhã?
Ana Maria Costa, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS); Josué Laguardia, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict); e Regina Fernandes Flauzino, Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Saúde da Comunidade (ISC), Departamento de Epidemiologia e Bioestatística (DEB)
DESDE 25 DE FEVEREIRO, QUANDO FOI CONFIRMADO NO BRASIL o primeiro caso de Covid-19, acumulamos, lamentavelmente, 175 mil mortos, e mais de 6,5 milhões de infectados até a primeira semana de dezembro de 2020. Declarada pela Organização Mundial da Saúde como pandemia em 11 de março, a doença se move dos bairros mais ricos para as periferias; e dos grandes centros urbanos para as cidades do interior, alastrando-se pelo País ao longo desses meses, desenhando uma curva alargada na qual se destacam os níveis mais elevados de incidência, taxa de transmissão e óbitos nos meses de junho, julho e agosto. Sem o controle da doença e ainda com significativa taxa de transmissão, a Covid-19 volta a crescer no País, agora, tendo como epicentro todo o território nacional. Atualmente, o Brasil ocupa a sétima e a nona posição entre os países com as maiores taxas de mortalidade e letalidade, mas essa situação pode mudar perante o aumento do número de casos da doença, a extinção da renda emergencial e a retomada da lei do teto de gastos com o risco de uma perda em torno de R$ 40 bilhões para o orçamento da saúde a partir de 2021. Ao acentuar as injustas desigualdades sociais persistentes no País, a Covid-19 revela seu caráter discriminatório ao acometer os mais pobres e vulneráveis, sacrificando populações subalternizadas invisíveis – indígenas, negros, povo cigano, quilombolas, população de rua, refugiados.
O que vem ocorrendo no enfrentamento da pandemia no Brasil está no foco das análises de diversos estudiosos, que ressaltam o descaso e a inoperância na adoção de medidas e iniciativas reconhecidas como adequadas e eficientes para conter a doença. Muitos atribuem a condução caótica e omissa do governo federal ao despreparo e à incompetência, mas as evidências sugerem uma desconcertante ação deliberada de economia necropolítica associada ao darwinismo social1. Entretanto, já não se trata mais do necroestado ou da necropolítica em que o Estado é o gestor da morte. Aqui o governo vem se esmerando na implementação do Estado suicidário, ou seja, um novo e perverso estágio dos modelos de gestão imanentes ao neoliberalismo em que o Estado passa a ser ator contínuo de sua própria catástrofe. Trata-se de uma condição espelhada no fascismo de Hitler na qual o Estado cuida diretamente da administração da morte de setores de sua própria população, que se aproxima perigosamente de sua própria destruição2.
As trocas e desautorizações de ministros da saúde e a omissão do governo federal no exercício de seu papel mobilizaram os gestores municipais e estaduais a assumirem o processo de controle da pandemia. Sem apoio na aquisição de insumos e recebimento de recursos e desprovidos da coordenação federal, os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) vêm sendo não apenas desamparados, mas boicotados pelo governo federal. O distanciamento social e o uso da máscara, medidas eficazes para contenção da disseminação da pandemia, são desestimuladas e ridicularizados por integrantes do governo federal. A despeito das advertências de pesquisadores e instituições acadêmicas de todo o mundo sobre a importância dos testes populacionais, o governo brasileiro não estabeleceu uma estratégia de testagem para identificação de infectados que permitisse o isolamento e o controle dos focos da doença para reduzir a transmissão do novo coronavírus. Na mesma direção, ainda que o Congresso Nacional tenha aprovado e destinado recursos extras para o enfrentamento da Covid-19 pelo SUS, o governo não usou os recursos existentes para proteger a população e controlar o avanço da doença.
O protagonismo do SUS, ainda que sua atuação ocorra sob condições precárias que colocaram em risco de adoecimento e morte centenas de seus profissionais, impactou de maneira positiva milhares de vidas. Essa condição paradoxal deixa claro que não há possibilidade de construir estratégias para cumprimento do mandamento constitucional da Saúde com Direito de Todos e Dever do Estado sem uma avaliação profunda acerca dos desafios e impactos provocados pela pandemia da Covid-19.
O SUS mostrou-se fundamental para salvar vidas, para a saúde e o bem-estar da população brasileira. O acesso universal propiciado pelo SUS entre nós contrasta com o que vemos na experiência de outros países, particularmente nos Estados Unidos, em que, sem sistema público, muitos cidadãos com sintomas da Covid-19 fogem do tratamento, morrem em casa e nas ruas por medo dos gastos exorbitantes para custeio do próprio bolso do seu cuidado em saúde. É o SUS que sustenta a saúde como um direito de todos.
A saúde de uma população é produto de sua acumulação política e resulta da determinação social, econômica e cultural; e, sob essa perspectiva, a efetivação do direito universal à saúde, como conquistado na Constituição Federal, depende, centralmente, da democracia social direcionada à redução dessas desigualdades. O SUS, enquanto um sistema público e universal, é parte dessa complexa condição requerida ao direito à saúde. Entretanto, cabe assinalar que os objetivos da saúde universal e de qualidade essenciais na consolidação do SUS se deparam com barreiras, interesses e contradições no interior do próprio modelo de Estado, na sociedade, na democracia e de projeto de desenvolvimento do País. A saúde está sob a mira do setor privado, que pretende transformar atenção, cuidado e assistência médica em mercadoria – e, mais uma vez, uma situação de emergência sanitária nos demonstrou que a saúde não pode ser uma mercadoria, em que só quem tem riqueza pode ter acesso. De outro modo, o resultado é a barbárie.
As medidas para enfraquecer e até mesmo inviabilizar o SUS são variadas, mas os golpes sobre o seu financiamento, que comprometem a capacidade do SUS de prover atendimento adequado e oportuno às necessidades de saúde, são a sentença de morte para centenas de milhares de brasileiros nos próximos anos, com ou sem pandemia.
E o que será do amanhã?
O capitalismo do consumo excessivo das classes abastadas tem consequências sérias à sobrevivência da própria humanidade ao transformar o Estado em empresa a serviço dos interesses do mercado e dos donos do capital. A degradação ambiental desenfreada e protegida pelo Estado é produto da inconsequência da corrida pelo lucro e, incidindo sobre as mentalidades das pessoas, desmantela os valores civilizatórios de solidariedade e coletivismo que estão na gênese da produção dessa crise sanitária que resguarda todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça³.
A conjunção dessa tempestade de crises – sanitária, ambiental, econômica e social – acentua os efeitos de um país que vinha sendo devastado pelo neoliberalismo nas últimas décadas e agora, sob um governo de ultradireita, é conduzido a um Estado suicidário autoritário em movimento em torno do nada. Trata-se de uma realidade perturbadora que muitas vezes imobiliza a própria resistência. De certa forma, observa-se uma acomodação da sociedade – particularmente das populações pobres –, que sempre viveu uma guerra civil não declarada com uma naturalização dos genocídios e dos massacres e em que a acumulação de capital é garantida pela bala e o medo².
Cabe então interrogar sobre o futuro, mediante o desconcerto de um governo regido por um delírio de entrega ao sacrifício, que incita o aplauso do povo aos seus algozes e que não se importa com a morte dos outros. Nesta realidade, entretanto, é possível identificar emoções ou afetos capazes de mobilizar mudanças de fortalecimento de uma solidariedade nas periferias e favelas.
O Estado Social que emprestou potência aos direitos humanos, particularmente os direitos sociais, como estratégia no combate às desigualdades sociais, já não encontra ressonância nessa realidade perturbada. Qualquer retomada da centralidade dos direitos humanos na luta dos excluídos, explorados e discriminados requer ressignificá-los, começando por reafirmar que os direitos são fruto da conquista histórica dos oprimidos. A captura desses direitos pela hegemonia, que, mais uma vez, aplicou neles uma maquiagem institucionalizada, naturalizou e banalizou o sofrimento humano, resultando no esgarçamento da tessitura da solidariedade social. A essa hegemonia, definitivamente, não interessa e não serve a luta contra as desigualdades sociais e econômicas enraizadas tanto no Brasil quanto nos países latino-americanos4.
O panorama atual é que a maioria da população, inspiração e objeto do discurso e da luta por justiça e direitos humanos, não alcançou ser sujeito deles. No Brasil, os insurgentes que ocuparam as ruas foram jovens da periferia, trabalhadores informais de serviços essenciais, incluído o transporte por aplicativo. Convivendo diariamente com o risco, a doença e a morte, impedidos do distanciamento social, eles protestaram e ingressaram na prática da política. São jovens que enfrentam, há tempos e cotidianamente, a violência policial, o tráfico, o desemprego e a exclusão; que trazem uma experiência de vida desde que nasceram com a exclusão e a violência institucional. O Brasil real assumiu sua voz e, na escassez, mostra a nova solidariedade entre os que dividem o que pouco têm.
O aprendizado se apresenta aos que querem ou darão conta de aprender. O fato é que as novas realidades e narrativas desafiam a humanidade, e esses desafios continuarão impondo ao futuro novas respostas políticas, econômicas e sociais. A escuta e a leitura da complexidade e crueza da realidade desafiam partidos políticos democráticos, não apenas aos do campo da esquerda, a um novo compromisso com uma democracia aliada ao combate das desigualdades e da discriminação.
Esses novos atores políticos, agora presentes e atuantes, que redefinem e ressignificam os direitos humanos e as políticas sociais, serão a base do Estado fundado na solidariedade social. No entanto, serão essenciais mudanças mais profundas. Os mais ricos terão que perder privilégios, acumular menos e dividir mais. A taxação das grandes fortunas não pode mais ser um tabu. Está prevista na nossa Constituição, e o assunto segue debaixo do tapete.
A ciência também foi surpreendida pela intensidade e magnitude da pandemia se a comparamos às experiências anteriores das últimas duas décadas. O grau de desconhecimento acerca do novo vírus, aliado à descrença, por parte de alguns segmentos da sociedade, do papel da ciência na resolução de problemas de saúde, criou a tempestade perfeita para disseminação de fake news e seu uso para o fortalecimento de grupos políticos da extrema-direita. A despeito do conhecimento acumulado e rapidamente disseminado desde o início da pandemia e da rapidez no desenvolvimento de novas vacinas para conter a transmissão da Covid-19, resta o desafio posto às empresas farmacêuticas de convencer a população sobre a eficácia e a segurança desses produtos. Para tal, não basta alegar que os estudos foram realizados dentro dos melhores padrões científicos requeridos pelas agências reguladoras. É preciso transparência, garantir o acesso público aos dados anônimos dos participantes dos estudos que dão sustentação científica às afirmações de que as vacinas são seguras e eficazes.
Mesmo antes da sua aprovação, já circulam rumores sobre pretensos riscos à saúde devido ao uso dessas vacinas. A sociedade terá como desafio lidar com as situações de alardes, material frequentemente usado pelos grupos antivacinas para disseminar suas teorias conspiratórias e o descrédito aos argumentos científicos. Nas sociedades em que governos e segmentos populacionais apoiam tais teorias, as repercussões negativas desta pandemia de desinformação podem comprometer os esforços para alcançar níveis de cobertura vacinal necessários para reverter o quadro epidemiológico atual da Covid-19.
Neste cenário de devastação, morte e desinformação, não é mais tolerável aceitar a manutenção de modelos de fazer ciência e de sistemas de saúde atrelados aos interesses de corporações cujo objetivo principal seja a boa saúde financeira dos seus acionistas. Tampouco a academia e os seus pesquisadores devem seguir pautando suas ações em modelos neoliberais de desempenho que favorecem os grandes grupos editoriais em detrimento de uma ciência cidadã.
Do mesmo modo, o cenário político tem que garantir que esses novos atores do Brasil real possam vocalizar suas aspirações por democracia, direitos, igualdade, equidade, não discriminação de raça, orientação sexual e gênero, justiça e inclusão social. São persistentes, mas renovadas demandas que, daqui para a frente, pautarão os nossos desafios e, também, a política.
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