Seita religiosa de Brasília entra na ‘lista suja’ do trabalho escravo
Por Diego Junqueira | Repórter Brasil
“Jesus está voltando. Mas só vai ganhar o Reino dos Céus quem me seguir”. Pregações como estas eram usadas por Ana Vindoura Dias Luz, líder da Igreja Remanescente de Laodiceia, para aliciar dezenas de trabalhadores para sua empresa de alimentos em Brasília, no Distrito Federal. Ao invés de salários, porém, os funcionários eram pagos com a promessa de salvação divina.
A “ajuda de custo” que recebiam informalmente era, em parte, usada para bancar despesas da igreja e da empresa, segundo auditores-fiscais do trabalho que autuaram Dias Luz por submeter 79 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Os trabalhadores-fiéis dormiam em locais improvisados, como carrocerias de caminhões, sob tetos de lona e ao lado de agrotóxicos, enquanto a líder religiosa vivia em uma casa confortável e espaçosa, de acordo com os auditores.
Dias Luz é uma das novas integrantes da “lista suja” do trabalho escravo, cadastro divulgado semestralmente pelo Ministério da Economia que relaciona os empregadores responsabilizados pela utilização de mão de obra escrava. Além da religiosa, outros dois empregadores entraram na lista: um do ramo da mineração e outro de produção agrícola. Ao todo, os três submeteram 96 trabalhadores à escravidão moderna e se somam a outros 109 empregadores que já integravam o cadastro (veja a relação completa).
A atualização da lista, nesta segunda-feira (5), é a primeira desde que o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da publicação dos nomes de empregadores envolvidos com trabalho escravo. Também é a que apresenta o menor número de novos empregadores – o último cadastro teve 41 novos nomes.
Segundo auditores-fiscais ouvidos pela Repórter Brasil, a redução deve-se ao fato de que o setor de recursos administrativos – em que empresas e empregadores podem questionar a autuação – está fechado desde março, quando começou a pandemia do novo coronavírus. Como o direito à defesa não pode ser exercido neste momento, os nomes vão se acumulando para as próximas atualizações.
A líder religiosa é dona da empresa Folha de Palmeiras Produtos Alimentícios, situada em uma chácara a 40 km da Esplanada dos Ministérios, onde fica também a sede da igreja e uma comunidade com cerca de cem moradores. A propriedade foi alvo de megaoperação policial em março de 2019, com a participação de auditores-fiscais do trabalho e membros do Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Civil, além de representantes do governo do Distrito Federal e do conselho tutelar.
Na chácara funcionavam uma horta, uma empresa de produção de alimentos orgânicos (como pães, geleias, pão de queijo e bolos) e uma confecção de roupas. Os produtos eram vendidos pelos fiéis em diversos estados, assim como os livros da missionária, que pregam a salvação por meio da alimentação saudável. Até mercados de bairros nobres em Brasília compravam os produtos supostamente orgânicos, sem conhecer os agrotóxicos que lhes eram aplicados – auditores encontraram dezenas de envases de pesticidas na propriedade.
“A igreja era uma ferramenta utilizada pelo empregador para manter uma mão de obra constante, controlada, submissa e a um custo praticamente nulo”, diz o auditor-fiscal Rodrigo Ramos do Carmo. “A forma como conseguiram aliciar as pessoas e mantê-las trabalhando, usando a crença religiosa, foi algo que eu nunca tinha visto. Os trabalhadores realmente acreditavam que eram donos do empreendimento”, completa.
‘Casas’ em carrocerias de caminhões e debaixo de lonas
Parecia uma empresa como outra qualquer – faturando entre R$ 50 mil e R$ 60 mil por mês, conforme revelou a própria Dias Luz no dia da operação –, mas estava ancorada em uma série de violações trabalhistas. Ninguém tinha a carteira de trabalho assinada e não eram pagos salários nem recolhidos FGTS e INSS, segundo o relatório da fiscalização, ao qual a Repórter Brasil teve acesso. Eles também eram submetidos a rígidas regras de como se vestir, onde trabalhar e até mesmo quando usar o WhatsApp.
Além disso, os trabalhadores viviam em moradias improvisadas, como carrocerias de ônibus e caminhões, onde se espremiam beliches e fios elétricos. Em outra “casa”, famílias viviam sob teto de lona no mesmo espaço onde ficava a oficina de costura e o depósito de agrotóxicos – “isolado” por meia parede de papelão. Havia 11 tipos diferentes de pesticidas, alguns deles altamente tóxicos, como o glifosato e o dipil – cuja venda é controlada e só pode ser aplicado por profissional habilitado. A aplicação, porém, era feita por dois trabalhadores sem orientação técnica nem equipamentos de proteção.
“Não é uma empresa de fundo de quintal. Ela é bem estruturada, tem equipamentos modernos e vende um produto chamativo, com rótulo bonito. Mas, por outro lado, não tem condições de trabalho e as pessoas são alojadas numa situação degradante, expostas a doenças e acidentes e até dormindo com agrotóxicos”, diz Carmo.
Enquanto os trabalhadores e fiéis dormiam em lugares precários, a casa de Dias Luz era “extremamente confortável, bem espaçosa e com eletrodomésticos modernos”, conta a procuradora do trabalho Carolina Mercante. “Praticamente todos os fiéis eram pessoas de baixíssima formação escolar, com dificuldade até para se expressar, estavam doentes e não tinham bens nem perspectiva profissional”, completa.”
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Fonte: Repórter Brasil
Data original da publicação: 05/10/2020