Trabalhadores de Apps em Cena: Welligton Araujo, por Daniele Barbosa
por Daniele Barbosa[1] |Grupo Gente Nova
Welligton Araujo é diretor administrativo da Associação dos Motofretista Autônomos e Entregadores do DF (AMAEDF). Entregador de plataforma digital em Goiás.
Trabalhadores de Apps em Cena: Welligton Araujo
Com a academia, mas para além dela! É assim que continua a próxima etapa da coluna Trabalhadores de Apps em Cena, iniciada em 2021. Além dos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, em 2022, ampliaremos o diálogo com juízes, procuradores e advogados, uma vez que a luta contra a precariedade politicamente induzida[2] deve implicar também os que atuam na Justiça do Trabalho no Brasil.
Busca-se, com esta coluna, fazer com que as vozes das trabalhadoras e dos trabalhadores de plataformas digitais compareçam à cena principal em um constante questionamento das formas restritivas por meio das quais a esfera pública vem sendo acriticamente proposta[3] pelo enquadramento da grande mídia[4]. Dando continuidade ao projeto[5], convidei para a formulação de uma pergunta: Daniela Muradas Antunes, Guilherme Leite Gonçalves, José Ricardo Ramalho, Magda Barros Biavaschi, Maria Celeste Marques, Noa Piatã, Philippe Oliveira de Almeida e Renata Queiroz Dutra. Nas entrevistas deste mês, “composição de custos”, “expropriação e endividamento”, “solidariedade e resistência”, “controle do trabalho”, “discriminação de gênero”, “discriminação racial” e “avaliação” serão alguns dos temas abordados.
A construção coletiva das entrevistas é também uma forma de resistirmos à racionalidade neoliberal. Christian Laval e Pierre Dardot, em A nova razão do mundo, afirmam que “é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização”6. Segundo os teóricos ainda, para uma resistência à racionalidade dominante, é necessário “promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si.”7. Na esteira dessa reflexão, em vez de se fortalecer aqui uma lógica da concorrência, da destruição dos laços sociais, da maximização do desempenho individual, a ideia foi buscar, neste agir juntos, com as entrevistas sendo produzidas coletivamente, uma outra maneira de nos relacionarmos.
A entrevista de hoje é com Welligton Araujo.
Welligton Araujo
Diretor administrativo da Associação dos Motofretista Autônomos e Entregadores do DF (AMAEDF). Entregador de plataforma digital em Goiás.
DANIELA MURADAS ANTUNES: O trabalho em plataformas vem acompanhado de narrativa do empreendedorismo. As empresas alegam que os trabalhadores atuam por conta própria e por isso assumem o custeio dos recursos para o desenvolvimento da atividade, tais como smartphones, veículos e contratos de seguro e outras despesas, inclusive as decorrentes da depreciação. Você se percebe empresário de si mesmo ou acredita que é um trabalhador e vive de sua atividade? Você conhece ou teve notícia de composição de custos para a sua atividade? Sabe qual é o ganho que o aplicativo obtém de cada operação?
A primeira é se eu me vejo empreendedor, né? (…) Empresário de si mesmo não. Com certeza, um trabalhador que vive da sua atividade, pois você tem que enviar um currículo, né, para o iFood. Ele tem que aprovar esse currículo, na verdade, e ele te impõe sanções, né. Ele que decide quem contratar e ele que decide quando demitir, não é? Então, não tem nada de empreendedorismo aí, né, mesmo porque eu estou prestando serviço a uma empresa só, né. Um empreendedor, ele presta serviço a várias empresas, não é? O que não é o nosso caso, né. Então, não me vejo como esse empreendedor e sim como um trabalhador por plataforma. E um trabalhador que se vê, eu digo que obrigado, né, a obedecer a algumas normas impostas pela empresa, não é? Então, a única coisa que nos falta realmente é regulamentação, né. E o que eu vejo hoje, nessas plataformas, né, que trabalham com entregas e outras coisas, é uma forma de se livrar, né, de impostos e de pagamentos de direitos, né. E uma depreciação do trabalhador nessa nova forma da sociedade moderna, né, que não valoriza mais a pessoa e apenas os números, né. Então, a gente trabalha para um algoritmo na verdade, né. A segunda pergunta seria o quê mesmo? (…) Sim, conheço. O custo para minha atividade seria a compra da moto, na verdade, a compra do aparelho telefônico, a compra da bag, né, ou baú pra colocar, né. E também componentes de segurança, como capa de chuva, né, botas, porque você não pode usar qualquer calçado também, né. Se acontecer alguma colisão, alguma coisa, seu pé tem que tá protegido, né. Também jaquetas, para que você não passe frio, né, porque o vento, né, e o horário em que você trabalha, né, é complicado. Então, você tem um custo. No meu caso, eu tive um custo de R$ 20.000,00, né, que é uma moto, que eu trabalho com moto 250. E aí você tem mais R$200,00 de capa de chuva. Você tem mais outros 200,00 de botas. Você tem quase esse mesmo valor, dá uns R$180,00, pra comprar a bag, na verdade. Aí você também tem que comprar um suporte pra colocar na moto, que vai mais uns R$90,00. Então, não é um custo barato, não é? E é um serviço que hoje se tornou essencial por motivo da pandemia, né. E essa questão de quantificar esse custo e valorizar esse investimento, a gente não vê como retorno das plataformas, né, porque isso parece que fica invisível pra elas, né. Parece que a gente está trabalhando, parece que a gente ganhou tudo o que a gente investiu pra poder trabalhar com elas. E o retorno hoje se tornou pífio, porque ela vem, a cada dia, tirando mais, né. A gente continua com o mesmo investimento, pagando combustível mais caro e ela, além de ter dito… que antes a gente tinha um valor que a gente recebia por deslocamento. Vamos supor, eu tô num determinado local e vou retirar numa determinada loja. Eu recebia o deslocamento até a loja e depois o deslocamento pra entrega. Hoje não. Eu posso tá onde tiver, se bipar, eu vou de graça retirar esse pedido e só recebo após pegar o pedido para o deslocamento, né. Então, diminui, cada vez mais, o custo dela e, a nossa parte, não há retorno algum nessa diminuição de custo pra ela, né. É uma questão de lucro em cima de lucro. E a divisão para os funcionários não existe, porque, na cabeça dela, nós não somos funcionários, né. E a terceira seria o quê mesmo? (…) A gente tem uma ideia, a gente não sabe exatamente qual é o ganho que ele tem, né, mas a gente tem alguns parâmetros, que é, quando a gente recebe a comanda do cliente, a gente vê, né. Muitas vezes, ele cobra, vamos supor, do cliente, ele cobra R$ 5,99 e cobra da loja o mesmo valor, né, R$ 5,99. E ele acaba ganhando ali, deixa eu ver, 13, né, dá uma média de R$ 12,00, né, da corrida. E paga, pra nós, 6 e alguma coisa. E agora ele inventou uma tal de corrida dupla, né, porque ele te manda duas entregas, né, cobra dos dois clientes e te paga apenas uma. Então, continua recebendo, vamos supor, dos R$ 12,00 que ele ganhou da primeira entrega, eu recebo 7,00 e ele recebe os outros R$12,00 completos, né. E eu faço duas entregas por uma entrega apenas, né, o que fica extremamente complicado, né, nessa questão de custo-benefício e de relação financeira entre nós e o iFood, né. Fica desvantajoso demais, né, sendo que o custo maior pra esse deslocamento é nosso, né. Combustível, ele não gasta nenhum centavo com o combustível, né.
GUILHERME LEITE GONÇALVES: Nas últimas décadas, temos observado um processo intenso de privatização e mercantilização de serviços, bens e espaços públicos e coletivos. Com isso, trabalhadoras e trabalhadores se veem cada vez mais dependentes do mercado para satisfazer necessidades básicas (transporte, saúde, habitação, educação etc.). Como a remuneração ao trabalho é cada vez mais insuficiente, a pressão por obtenção de crédito junto a bancos tem sido cada vez maior. Trabalhadoras e trabalhadores de apps têm vivenciado esta dinâmica de expropriação e endividamento? Ela tem contribuído para a aceitação de condições ainda mais precárias de trabalho?
Essa questão da expropriação, né, que, na verdade, é a perca da qualidade do trabalho e do indivíduo como ser humano, né. Porque hoje o mercado, ele não entende mais o indivíduo como um semelhante, né. Hoje, as grandes empresas, como essa que a gente tem aí, a BlackRock, que é uma multinacional, né, empresas que têm um capital aí superior ao PIB de muitos países, né. Então, hoje você vê esses grandes conglomerados de dinheiro e as pessoas pensam apenas em números, né. E a gente vê que o jogo lá em cima é pra ver quem é o homem mais rico e quem ganha mais dinheiro, né. E, nessa disputa, a gente cria novas áreas de trabalho, né, e a gente não se preocupa com a qualidade de vida. Então, quer dizer, eu tenho que ser empreendedor. Tenho dinheiro, formulo uma ideia de como ganhar esse dinheiro nesse novo mundo digitalizado e moderno, né, nas novas tecnologias. As profissões antigas, elas vão sumindo, quando essas novas ideias surgem, né, porque, com essa questão do app, as empresas, os restaurantes contratavam os motoqueiros, né, e pagavam CLT e tudo mais pra eles, né. Agora não, né. Vai direto para o aplicativo. A empresa não tem mais essa questão de alugar moto, de pagar o motoqueiro e você vê que o ser humano, ele começa a sumir. Porque é como se eu não tivesse mais uma família, como se eu não fosse mais um ente da sociedade, como se eu não fizesse parte do mecanismo social. Como se só quem faz parte da sociedade e do mecanismo social são os grandes empresários. As outras pessoas são, vamos supor, meros números e meras laranjas para serem colhidas e espremidas até a última gota e jogada fora, né. Então, por exemplo, essa questão da relação humana, o ser humano pelo ser humano, ela está sendo esvaziada, né. A gente tinha uma visão de que a sociedade ia modernizar, né, a tecnologia ia chegar e a vida do ser humano ficaria mais fácil, né. Mais fácil pra sobreviver, mais fácil pra manter a sua família, mas isso não acontece. Isso está ficando cada vez mais difícil pra manter a família, porque os empregos dos quais as pessoas são empurradas, né, pra fazer são empregos que pagam muito pouco, né, e não valorizam o ser humano e tentam invisibilizar ele, mostrando apenas uma estrela como o grande empreendedor, né, como a história do Jeff Bezos, Elon MusK. Então, quer dizer, são nomes que surgem, mas, atrás deles, ficam um rastro de pobreza, né, porque, para se fazer um bilionário, precisa de bilhões de pobres, né. E essa conta não fecha porque a gente precisa pensar no ser humano como si. Não adianta evoluir financeiramente, se a gente não evolui espiritualmente, se não evolui de maneira humanitária, né. E o que esses aplicativos estão fazendo é isso, eles estão tirando a humanidade das pessoas. E o ser humano não está pensando no ser humano. Apenas em dinheiro e número, né. E qual é a outra pergunta? (…) Sim, tem contribuído porque você tem que se endividar para você comprar as ferramentas necessárias para se inserir nesse novo mercado de trabalho, né, sendo que é um mercado de trabalho extremamente perigoso. Porque você, além de gastar com essa motocicleta, você vai comprar ela parcelada. Porque é muito difícil a pessoa ter R$ 16.000,00 pra comprar essa moto à vista, né, principalmente, uma pessoa que acabou de ficar desempregada. Tem família, tem contas, né. E aí você acaba contraindo mais uma conta, né, pra poder trabalhar. E aí você tem que trabalhar muito mais tempo pra dar conta das contas que você já tinha e dessa nova conta. E a gente vê que o governo, o governo não está liberando crédito para os pequenos, né, somente para os grandes. Os grandes estão trabalhando, cada vez mais, com o dinheiro governamental, que diz que está falido, né? E os pequenos não têm essa mesma oportunidade. E o crédito hoje está cada vez mais difícil, né, mais precário, menor. E a gente necessitando de fazer um investimento cada vez maior para se manter dentro da estrutura de trabalho proposta por esses aplicativos, o que causa realmente o endividamento, né. Agora as pessoas estão procurando mecanismos, buscando mecanismos pra financiar essas dívidas pra comprar essas motos. Às vezes, de maneira informal, né, comprando através do crédito da mãe, através do crédito de um irmão, né, de terceiros, porque você acabou de ficar desempregado. Como você vai ter crédito e comprovação de renda pra comprar, né? E aí você fica muito mais refém daquela dívida, né, porque, quando é o seu nome, é uma coisa, mas, quando é o nome de outra pessoa, fica complicado. E eu vejo isso, cada vez mais, na minha vivência com o público, né, de trabalho com os motoqueiros. Então, a dívida ficou maior, o crédito muito mais difícil e a ferramenta de trabalho muito mais cara, né. O que deveria ser o contrário. Numa sociedade que tá evoluindo, os bens de consumo deveriam ficar um pouco mais baratos, né, mais fáceis de adquirir, né. E o trabalho, em si, deveria satisfazer muito mais as necessidades dos indivíduos, o que não acontece.
JOSÉ RICARDO RAMALHO: A solidariedade de classe é uma das características marcantes da história dos trabalhadores e dos sindicatos no capitalismo. Como a construção dessa solidariedade se coloca para os trabalhadores de aplicativos? Como se constrói uma identidade coletiva de resistência aos mecanismos de exploração exercidos pelas empresas?
Um dos mecanismos de resistência é um dos mais antigos que tem, né. É a paralisação, né. Você vê que, na Revolução Industrial, os empresários, eles usavam as crianças e as mulheres para impedir que os homens fizessem greve, né, inclusive, contratando as crianças e as mulheres com o salário menor, né, o que, muitas vezes, funcionou para brecar as greves. E hoje a gente tem uma dificuldade muito grande, porque, dentro da própria categoria, há pessoas que sempre ganharam muito pouco, né. Ganharam um salário mínimo, mil e pouco reais. E hoje ele tem uma oportunidade de tirar de 700,00 a 1.200,00 reais por semana. Então, pra ele, aquilo é uma coisa maravilhosa. Ele não quer voltar pra aquele trabalho que ele tinha de mil e pouco reais. Mas, depois de um tempo em que ele está ali dentro, ele vê que aquilo não é suficiente pelo trabalho que é exigido dele, não é? E pelo risco de vida que ele está colocando em jogo e por uma questão que ele não tem segurança nenhuma. Se ele se acidentar, ele tá enrolado. Ele não tem nada que ampare ele, se ele parar. E outra coisa, ele tem que tá trabalhando todo dia e muitas horas por dia para ele alcançar aquele objetivo, né. Tem motoqueiros que trabalham até 16 horas por dia, né. Eu mesmo ligo o meu aplicativo dez e meia e vou desligar apenas onze horas da noite, né. Então, se você não faz isso, você não consegue minimamente manter uma renda adequada, né. Então, fica complicado. E qual o mecanismo que você tem? O mecanismo é greve. O mecanismo mais arcaico que a gente tem é a greve. É parar o mecanismo pra que o mecanismo entenda que ele precisa distribuir um pouco do lucro dele pra que a engrenagem funcione. Mas aí os aplicativos, hoje, eles têm essa grande vantagem, porque esse grande exército de pessoas que entrou, que recebe um pouco mais, né, e que não estavam trabalhando, não tinham esse contato com os aplicativos ou com entrega anteriormente, entram com essa expectativa de ganhar. Mas eles não levam em conta os prejuízos e os gastos que eles vão ter, que é o combustível, a manutenção do veículo, a prestação do veículo, não é isso? E, com o tempo que ele começa a trabalhar, ele percebe que aquilo ali não supre aquela função que ele tava. Porque, quando ele tava trabalhando com salário mínimo, né, em outra empresa, ele não tinha que fazer investimento no veículo. Ele apenas apresentava o currículo, era contratado e ia fazer o serviço. Aqui não. Aqui ele tem que fazer um prévio investimento pra depois trabalhar. E aí, depois de um tempo, que ele vai entender. Então, é difícil você colocar na mentalidade dessas pessoas a questão da resistência, né, e a questão, os pontos realmente que têm que ser abordados. Então, é depois de um tempo que ele tá dentro do aplicativo que ele vai entender. E os aplicativos ficam colocando sempre pessoas novas, né, e bloqueando as pessoas mais antigas. Eles fazem esse movimento, né. E é um movimento que a indústria faz há muito tempo, né. Porque, se você tem um profissional altamente qualificado que recebe um “x”, esse movimento já vem sendo feito na indústria há um tempo, né, você manda ele embora e contrata outro na mesma função, mais barato. Por isso que a gente tem que ter um exército de desempregado, né. O capitalismo, ele gera muito isso, um exército de desempregados para que eu possa ter realmente, ao meu dispor, esse mecanismo que sempre tá ameaçando quem tá trabalhando, né. Tá ruim pra você? Tem um exército aqui querendo trabalhar. Se não tiver bom pra você, eu te mando embora e vou contratar outro. E vou contratar até por menos, né. Então, fica difícil hoje, na sociedade moderna, você lutar por melhorias exatamente pela implantação desse mecanismo, né. Mas a gente continua na resistência. Quando um irmão é acidentado, a nossa solidariedade é o quê? Todo mundo se juntar. Levar uma cesta básica, ajudar a pagar uma luz, ajudar a pagar um aluguel enquanto ele se recupera, né. Vejo muitos motoqueiros fazendo consórcios entre si, né. Vamos supor, vamos fazer um consórcio de um valor. Como a galera recebe (todo mundo) por semana, né, então, vamos fazer aí, pegar dez amigos. Faz um consórcio. Dez parcelas aí. Cada um vai recebendo um dinheirinho a mais. Vai desenrolando aqui, desenrolando ali. E é uma coisa que a sociedade faz há muito tempo, né. Ela procura mecanismos pra poder dar um upgrade no ganho, né, dentro do que ela pode, né, e na solidarização dos amigos mesmo do trabalho, né. E agora, dia 1, 2, 3, nós vamos fazer uma paralisação, que vai ser nacional, né. Vamos fazer essa paralisação exatamente pra isso. E foi muito difícil conscientizar. Ainda tem muita gente que não quer participar. Mas, graças a Deus, noventa por cento aderiu, né. E vamos ver no que dá.
MAGDA BARROS BIAVASCHI: Quem controla tuas atividades? Como prestas contas delas à plataforma e aos usuários do teu trabalho? Quem define o valor das corridas e o percentual retido à plataforma? Como é feito o controle do teu trabalho para fins de pagamento das atividades desenvolvidas?
Certo. A primeira foi? (…) Quem controla as minhas atividades é o iFood, inclusive, com o poder de bloquear o meu trabalho, se ele assim achar que não tá satisfatório, né. Então, quem controla a minha atividade é a plataforma, mas ninguém. Eu tenho apenas autonomia de ligar, né, no horário que for melhor pra mim e de desligar no horário também que eu quiser. Posso dar pausa, na hora que eu quiser também, do trabalho, né. Mas sempre que a gente dá pausa, a gente percebe que não toca da mesma forma. Então, quando você fica ligado direto, né, mesmo quando você tem que resolver alguma coisa, você deixa ligado, porque, se ele tocar, você para e vai atender. Porque, se você desligar para resolver outra coisa, você percebe que ele já não tá mandando mais aquela rota da mesma forma. Então, quem controla é a plataforma. (…) A plataforma, ela tem um serviço de avaliação. Assim que eu entrego a mercadoria ao cliente, né, eu tenho que pegar esse código com o cliente e informar a plataforma esse código. Aí a plataforma entra em contato com o cliente, né, pra ver se realmente eu entreguei, né. Eu também tenho um mecanismo onde eu avalio o cliente, né. Se ele foi gentil comigo, se ele não foi gentil, se ele foi grosseiro, né. E a plataforma também, ela avalia o meu tempo de retirada, o meu tempo de entrega, né, e a rota que eu fiz, né. Se eu fizer uma rota, vamos supor, se tiver uma rota preestabelecida pra mim entregar e tem um tempo preestabelecido pra mim entregar, se eu for pra um lado contrário fazer um outro trabalho, né, pra depois entregar essa rota, ela vai identificar. E ela me manda uma advertência, né. Então, é controlado dessa forma. E aí ela me dá um relatório do que eu fiz, né. Ela não me dá um relatório das rotas, mas me dá um relatório de cada valor e o horário do que eu fiz e vai computando na plataforma. E aí, quando chega na quarta-feira, é pago esse valor. Eu posso consultar todo dia o meu saldo, né. A qualquer minuto que eu quiser, eu posso consultar o meu saldo, quanto eu já acumulei na plataforma pra receber em toda quarta-feira dessa semana. (…) Isso é uma coisa restrita à plataforma, né. A gente não pode definir. Por isso que a gente sempre fala que nós não somos o empreendedor, porque o empreendedor, ele coloca o preço no seu produto, ele precifica o seu produto, né, o seu trabalho, e ele oferece às empresas esse preço, não é verdade? Aí, se a empresa não aceitar esse preço, a gente pode negociar esse preço, né. Agora, onde eu não posso negociar e onde eu não posso colocar o meu preço, eu não sou empreendedor, não é verdade? Então, eu tenho que aceitar o preço que a plataforma coloca, não é isso? Então, quem precifica é ela, quem dá valor ao meu trabalho é ela. Então, por isso que a gente sempre ia na tecla: “como é que você diz que não tem vínculo empregatício com você, se é você que decide, né, o preço do meu trabalho, os locais onde vou retirar?” Não é? As empresas das quais eu tenho relação de retirar ou de levar também é decidido por eles, não é? Então, quem decide tudo isso, essa questão financeira, precificação, rota, entrega, é a plataforma. (…) O controle é feito rota a rota, né. Cada rota que eu faço, assim que eu finalizo, já computa na tela já. Finalizei rota, 5,40. Pronto, tá lá, 5,40. Finalizei próxima rota, R$ 8,00, né. Aí já vai lá. Aí já vai passar a R$13,40, né. Finalizei outra rota, R$10,00. Aparece na tela imediatamente, né, 23,40. Então, a cada rota, né, vai estabelecendo o valor. E aí eu vou acumulando, né. E eu vou acompanhando aquele valor. Então, quem estabelece realmente é a plataforma também.
MARIA CELESTE MARQUES: Considerando que se trata de um segmento profissional majoritariamente masculino, como você vê a possibilidade de uma maior abertura da atividade para outros gêneros? As plataformas digitais de entrega e de transporte têm fornecido alguma orientação sobre discriminação de gênero no ambiente de trabalho?
Assim, na plataforma, a gente não percebe nenhuma discriminação por questão de gênero, mesmo porque o que a plataforma quer são pessoas dispostas a trabalhar, principalmente, quando é um trabalho muito arriscado, né. E, assim, historicamente, as mulheres são seres mais, vamos supor, cuidadosos, né, e mais e mais, vamos supor, resistente a serviços, digamos, perigosos, né. Mas, com essa modernização da sociedade, com um novo pensamento, é, digo assim, essa revolução feminina, né, que acontece a cada dia e continua, porque essa revolução das mentalidades, né, tanto de gênero, né, etnia, ela não para de evoluir, né, a gente vê muito mais mulheres hoje trabalhando, né. Tenho realmente amigas que trabalham, mulheres que trabalham como entregadoras. Dentro da plataforma, eu não vejo essa discriminação, né. Talvez, esteja na hora de entregar ou na hora de retirar numa loja, né. Talvez, esteja essa discriminação, né, mas nunca vi nenhuma delas me relatando essa questão dessa discriminação, né. Eu acho que acontece mais um desconforto, quando tá no meio daquele monte de homem, né, lá no nosso ponto, onde ficam os motoqueiros, né. Você sabe que, às vezes, as nossas conversas masculinas são meio pesadas, mais para homens entre si. Às vezes, fica desconfortável para elas. Então, às vezes, a gente tem que dá um “peraí e tal, tem menina na área.” É uma coisa, eu diria, cotidiana da sociedade, né. Mas, dentro da plataforma, eu não vejo essa discriminação, inclusive, as que trabalham, gostam de trabalhar, é porque gosta de moto mesmo. Quem trabalha com entrega tem de gostar de moto. Não adianta você trabalhar com moto sem gostar de andar de moto, porque não vai dar certo, né. Mas eu não vejo assim, essa discriminação. O aplicativo, você colocou lá, né, botou todos os seus dados, ele tem um tempo de resposta, se vai aceitar ou não o seu registro. E todas as meninas que tentaram fazer o registro nenhuma delas foram rejeitadas não. (…) Assim, a gente tem um WhatsApp, onde o iFood manda sempre algumas orientações e tudo mais, né. Agora, ele nunca mandou nenhuma orientação sobre essa questão de discriminação. Nem de gênero, nem de etnias, né. Agora, ele tem uma coisa chamada “ciclos”, né. Então, cada ciclo, ele trabalha sobre um tema, né. E, agora sobre essa questão do Dia da Mulher, né, ele pediu que a gente fizesse um projetinho aí pra gente poder fazer uma comemoração com as mulheres que são entregadoras, né. Mas, dentro da plataforma mesmo, eu nunca vi nenhuma propaganda ou nenhuma campanha pra diminuir a discriminação, né. Agora, eu não tenho notícia da discriminação, né, mas é aquela coisa, né, quem vive que sente, né. Às vezes, você até, vamos supor, exerce discriminação, não é? E, pra você, não é discriminação, mas, pra pessoa, é, né. Então, eu acho que o mais adequado pra responder isso seriam as motogirls, né. Porque é aquela coisa, né, eu posso escrever um livro sobre parto, né, e falar sobre parto aqui, escrever, sei lá, um best seller, mas eu nunca, nunca, na minha vida, vou ter a, vamos supor, a propriedade de uma mulher que realmente deu à luz, né. Não tem como, né. Então, é isso que a gente sempre fala, né, é complicado. Eu não tenho notícia dessa discriminação, mas seria realmente uma pergunta para fazer para as motogirls, né.
Eu acho que a gente tá olhando quase todo tempo, porque você coloca muitas rotas das quais o endereço você não conhece. Você vai colocar o Google Maps, o Easy, que são apps de localização, né, de GPS, e você vai tá andando e acompanhando aquele GPS pra que você possa chegar no endereço, né. Porque, antigamente, você tinha que olhar num livrinho, né, que era fornecido das rotas, né, mas hoje não. Hoje, você liga o Google Maps, coloca o endereço, né, e o iFood tem realmente uma tecla dentro do aplicativo, que você aperta e já vai direto pro Maps, que já te encaminha direto pra rota, né. Então, quase todo tempo, você tá olhando pra tela do celular.
PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA: Algumas pesquisas têm indicado que o faturamento diário de entregadores de aplicativos negros (pretos e pardos) é menor que o dos entregadores brancos. Isso se deveria a alguns fatores, como, por exemplo, obstáculos enfrentados no momento de entrar em prédios e condomínios fechados – exigência de apresentar documentos de identificação etc. –, o que “atrasaria” a entrega, e reduziria o número de “corridas”. Você já se sentiu discriminado, devido à sua cor de pele, em seu trabalho? Se sim, como aconteceu? O aplicativo te deu algum suporte, nessa situação?
Eu, eu realmente nunca me senti discriminado, né. Apenas uma vez, em uma portaria, que eu realmente cheguei, né. O outro entregador realmente branco tava lá, né. Ele entrou. Não foi pedido a ele a identificação. E, na hora que eu cheguei, a mim, foi pedido a identificação, né. Eu também fingi que não vi, né. E entreguei o meu documento, né. Ele anotou lá. E eu subi e entreguei, mas realmente magoou. Mas não quis criar caso pra não demorar mais tempo, né. Então, realmente essa discriminação, ela realmente, ela existe, né. Não só na entrega, mas no cotidiano, na vida. A gente sabe que as pessoas que têm o dito biotipo, né, tido como bonito, pra sociedade, elas têm um trânsito bem melhor na sociedade, né. É muito mais fácil você ver uma pessoa extremamente bonita que nasce pobre sendo abordada num shopping por uma agência de modelo, né, e tenha uma carreira brilhante apenas pela beleza do que uma pessoa dita feia, dentro da sociedade, ter essa mesma mobilidade. Isso não é difícil em qualquer profissão, né, tanto como professor numa sala de aula, não é? O professor que vai dar aula a meninos de primeiro ano, né. E, vamos supor, né, você é um professor negro e tem um biotipo que assusta, né, porque não é um biotipo adequado, né, ao que o pessoal é… “Ah, não vou deixar o meu filho com essa pessoa”. Então, você sente essa discriminação em todos os ambientes que você vai, né. Agora, na minha interpretação, vai do jeito que você encara essa discriminação, né, porque o problema está em quem discrimina, né, e não em quem é discriminado. Mas a gente precisa enfrentar isso de frente, né. A gente precisa continuar trabalhando, a gente precisa levar as nossas vidas, né. E você vê que, quanto mais você tenta bater de frente, no momento ali, a coisa fica cada vez pior, porque você não encontra, no meio ou ao redor, muitas vezes, apoio para combater essa discriminação, né. Porque as pessoas exercem essa discriminação e elas acham normal. E as outras que tão em volta chegam e acham normal também, apoiando exatamente o discriminador. Então, muitas vezes, é melhor você fazer aquela cara de paisagem, né, e continuar. Mas é uma discriminação que realmente existe.
RENATA QUEIROZ DUTRA: Quando observamos os diferentes comandos que recaem sobre os entregadores e os motoristas por meio dos aplicativos, podemos perceber que consumidores podem fazer exigências e avaliações do seu trabalho. Como você se sente em relação às avaliações dos consumidores pelo seu trabalho? Na sua percepção, que consequências elas geram na sua relação com a plataforma e na sua percepção do seu trabalho?
É, realmente a avaliação do cliente, ela é uma coisa que pesa muito, porque, dentro da plataforma, você tem uma coisa que é uma evolução da sua conta, não é? Porque a conta, ela sempre aparece lá, se você está com 0%, 20%, 30%, 70%. E quem tá com 100% de avaliação recebe mais rotas, né. Então, mesmo dentro dessa questão, que eu já tinha falado antes da discriminação, isso é uma coisa óbvia, né. Porque, se você tem empatia com a pessoa, né, se você gosta do visual e tudo mais, você vai dar uma avaliação positiva, né. E a avaliação positiva dentro da plataforma, ela é importantíssima pra você receber mais rotas, né. Então, a gente se sente realmente discriminado. Tanto que a gente desenvolveu alguns mecanismos de mandar mensagens pros clientes, né: “Boa noite” ou “eu estou responsável pela sua entrega, né. Se você puder avaliar o meu trabalho, né, pra que a gente possa melhorar essa parceria, eu agradeço.” Então, a gente manda essas mensagens e tudo o mais. E é difícil porque o cliente hoje ele não quer só receber a mercadoria, mas ele quer ser paparicado, né. E nem todo dia você tá com a paciência necessária pra isso, porque nós somos humanos, não é? E o que que acontece? Você não tem obrigação de ir até o apartamento do cliente, não é? A sua entrega é até a portaria, né, até a portaria do prédio. Mas as pessoas não querem descer, não querem sair do controle, não quer sair do filme. E isso causa muito atrito entre cliente e entregador, né. Porque tem entregador que fala: “Eu não vou subir realmente. Não é minha obrigação subir.” Tem muitos prédios que não têm elevador. São quatro andares. E aí cria esse atrito entre cliente e entregador. E, se o entregador não sobe, né, não entrega na porta do apartamento dele, ele avalia negativamente o entregador, sendo que a própria plataforma manda mensagens, pra gente, dizendo que a gente não é obrigado a ir até a porta do apartamento. Apenas até a porta do bloco. A gente acaba se sujeitando a ir até o apartamento pra não ter realmente o que a gente chama do deslike, né. E aí vai até o apartamento, dá uma “boa noite”, né, sorri pra ver se a gente consegue realmente essa avaliação positiva, porque ela conta demais na evolução da sua conta dentro do aplicativo, né, que, quanto mais porcentagem você tem dentro do aplicativo, mais rotas ele manda pra você.
CONSIDERAÇÕES FINAIS DE WELLIGTON ARAUJO: As considerações finais, eu acho que é uma coisa bem simples, né. As pessoas têm que entender o seguinte: Eu posso ser o homem mais rico do mundo, eu posso ter a empresa mais rica do mundo, mas eu sou um ser humano e as pessoas que prestam serviço pra mim também são seres humanos. E a forma inumana só existe porque os homens de dinheiro não querem dividir. É muito difícil. O coração duro do homem cria condições de trabalho para o outro homem, né, eu digo, para o ser humano, por pura falta de empatia, por pura falta de amor. Seria maravilhoso que a humanidade evoluísse, não só na sua forma de ganhar dinheiro ou nas suas invenções tecnológicas, mas que ela conseguisse evoluir no sentido de querer o bem-estar pra si e para o próximo. Querer o bem-estar para o próximo é dividir realmente. De que adianta um homem só, no planeta, ter 200 bilhões de dólares, ser ovacionado, estar em várias revistas como o grande empresário do momento, se existem milhões de pessoas passando fome. Eu posso viver quinhentas vidas, que eu vou viver, comer muito bem, mas a minha fortuna, se ela servir só para os meus quintais ou para dentro da minha janela, ela é vazia, ela não me fez evoluir. Eu não preciso evoluir só tecnologicamente. Eu preciso evoluir como ser humano. E evoluir como ser humano é entender que eu posso ter mais. Eu posso ter mais estudo, eu posso ter mais dinheiro, eu posso ser mais inteligente, mas eu nunca, nunca vou ser melhor que outro ser humano. E, se nós não entendermos isso, nós vamos nos escravizar cada dia mais. E essa questão dos aplicativos, das novas profissões que surgem no mundo, elas estão sinalizando pra isso. A humanidade não está evoluindo de maneira adequada, porque ela não aprendeu a repartir. E a criação das novas profissões, dos apps e as plataformas, é uma forma nua e crua da gente ver isso, não é verdade? Porque não podemos ver as coisas de maneira macro. Temos que ver as coisas como um todo. E, se não começarmos a nos ver como seres humanos, realmente a crueldade que é afligida ao ser humano, através da falta do básico, né, porque ninguém está falando de luxo, não é dar luxo a ninguém, mas você ter uma sociedade tão evoluída com empresas que tenham um rendimento maior do que PIBs de país e a gente olhar para o lado e ter gente passando fome, é muito triste você ver que a sociedade realmente fracassou, né.
Participantes:
Daniela Muradas Antunes: Professora de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogada.
Guilherme Leite Gonçalves:Professor de Sociologia do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
José Ricardo Ramalho: Professor Titular do Departamento de Sociologia e do PPGSA da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Magda Barros Biavaschi:Desembargadora aposentada do TRT da 4ª Região. Docente-Pesquisadora do CESIT/UNICAMP. Membra da AJD, da ABJD e do Grupo Prerrogativas.
Maria Celeste Marques: Professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ).
Noa Piatã: Professor de Direito do Trabalho na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado.
Philippe Oliveira de Almeida: Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ).
Renata Queiroz Dutra:Professora de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB). Presidente da ABET (2022-2023). Integrante da REMIR.
[1] Idealizadora e coordenadora do projeto “Trabalhadores de Apps em Cena”. Professora na pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário (CEPED/UERJ). Professora Substituta de Direito do Trabalho na UERJ (2017/2019). Autora do livro A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Advogada.
[2] BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.
[3] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 1ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2018, p. 14.
[4] BARBOSA, op. cit., p. 100.
[5] https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/trabalhadores-de-apps-em-cena-por-daniele-barbosa/
Clique aqui e leia a matéria completa
Fonte: Grupo Gente Nova
Data original de publicação: 01/04/2022