Trabalhadores que sobreviveram ao desastre da Vale em Brumadinho lutam pela sobrevivência

Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

Por Laura Scofield | Agência Brasil

Mais de três anos depois do rompimento da barragem, trabalhadores enfrentam desconfiança da mineradora e de outros empregadores pelo trauma sofrido

Mais de três anos depois do rompimento da barragem de Brumadinho, Edivaldo Moreira, técnico de manutenção da Vale, que atua na mina de Jangada, localizada a cerca de 6 km da mina do Córrego do Feijão, conta que só conseguiu diminuir a “dor” e a “revolta” com a tragédia a que sobreviveu com auxílio de medicamentos psiquiátricos e terapia. “Eu adoeci aqui [na Vale], eu não tinha problema antes”, diz. 

As imagens do dia 25 de janeiro de 2019 continuam vivas em sua cabeça. “É como se tivesse um telão nas minhas costas passando sempre esse filme de tudo acontecendo. Foi tudo muito rápido, sabe? As pessoas ficando para trás, as pessoas caindo, e, quando você volta, você já não vê mais nada. É cena de terror, cena de filme de guerra. Isso fica. Por mais que eu esteja no momento de descontração, de alegria, de prazer, essa imagem fica sempre. Como se fosse contínua, ela só rebobina, roda 24 horas.” 

O técnico já pensou em largar o emprego na Vale, mas diz ter preferido “continuar para ajudar alguém que talvez precise de ajuda e me ajudar também”. Edivaldo só não pisa na unidade de Feijão, onde a barragem se rompeu — como são bem próximas, os trabalhadores geralmente atuam nas duas minas. “Uma vez eu precisei descer, porque o bombeiro me chamou para coletar informação. Nesse dia a gente viu uma movimentação de bombeiros e de pessoas da Vale, eles haviam encontrado uma parte do corpo de um colega nosso da oficina. Não voltei mais.” 

Edivaldo conta também que ficou com medo de sair da empresa e não encontrar trabalho, como aconteceu com Renato Cassimiro, que atuava na área de elétrica para a CBE Engenharia, uma terceirizada que prestava serviço para a Vale no dia do rompimento. De acordo com o Relatório de Análise de Acidente de Trabalho, de setembro de 2019, dois trabalhadores da CBE morreram no colapso da barragem. “Os meus amigos morreram lá e eles não fizeram nada para mim direito”, explicou Cassimiro, que decidiu sair por insatisfação e medo. “Uma empresa que não preza pelo seu funcionário não preza por ninguém, não”, explicou.

“Depois que eu saí da empresa, eu fui caçar emprego e estava difícil, porque as empresas ficavam me perguntando sobre o acidente. Eles achavam que eu não estava bem, entendeu? A gente passa por psicólogo quando vai fazer entrevista, aí eles falavam: ‘Não, mas você [se] acidentou, você deve estar… Você está com trauma ainda?’. Eu falava que não, mas eles [continuavam]: ‘Você acha que está bem para estar trabalhando?’. Eu falava que sim, mas não conseguia a vaga”, conta Cassimiro. “Eu mandava currículo, as empresas faziam entrevista e não me chamavam, aí eu ficava estranho. É estranho, né? Você ter um perfil bom e não conseguir emprego”, desabafa.

Cassimiro, que só conseguiu se salvar da lama por ter corrido muito — “se eu tivesse parado, eu tinha morrido” —, voltou a trabalhar no final de 2021. Com o que recebeu quando saiu da empresa comprou uma casa e, entre 2020 e 2021, viveu com a esposa e a filha de 2 anos do auxílio emergencial da pandemia de covid-19. As memórias do dia da tragédia continuam constantes: “Eu vi a lama, os trem tudo, as pessoas morrendo. Tanto que eu não consigo dormir direito, é muito pesado”. 

Assédio moral


“Quem não morreu, [mas] morreu por dentro, não pegou quase nada [de indenização] e [ficou] só sendo chantageado, sendo cobrado das coisas”, diz Ronnie Silva, que por mais de 20 anos foi técnico de ferrovias e infraestrutura da Vale. Ele não estava no momento do rompimento da barragem, mas contou ter chegado logo após e ajudado nos resgates.

O advogado Luciano Pereira, do Sindicato Metabase de Brumadinho, denuncia: “Em muitos casos houve uma verdadeira expulsão desses trabalhadores por parte da Vale”. E explica: “Eles [trabalhadores] voltaram para a empresa em uma condição de atingidos e vítimas do rompimento da barragem. O local onde trabalhavam deixou de existir e as tarefas às quais eles estavam vinculados também, e eles não tiveram uma realocação que viabilizasse a permanência”.

Mais de três anos depois do rompimento da barragem de Brumadinho, Edivaldo Moreira, técnico de manutenção da Vale, que atua na mina de Jangada, localizada a cerca de 6 km da mina do Córrego do Feijão, conta que só conseguiu diminuir a “dor” e a “revolta” com a tragédia a que sobreviveu com auxílio de medicamentos psiquiátricos e terapia. “Eu adoeci aqui [na Vale], eu não tinha problema antes”, diz. 

As imagens do dia 25 de janeiro de 2019 continuam vivas em sua cabeça. “É como se tivesse um telão nas minhas costas passando sempre esse filme de tudo acontecendo. Foi tudo muito rápido, sabe? As pessoas ficando para trás, as pessoas caindo, e, quando você volta, você já não vê mais nada. É cena de terror, cena de filme de guerra. Isso fica. Por mais que eu esteja no momento de descontração, de alegria, de prazer, essa imagem fica sempre. Como se fosse contínua, ela só rebobina, roda 24 horas.” 

O técnico já pensou em largar o emprego na Vale, mas diz ter preferido “continuar para ajudar alguém que talvez precise de ajuda e me ajudar também”. Edivaldo só não pisa na unidade de Feijão, onde a barragem se rompeu — como são bem próximas, os trabalhadores geralmente atuam nas duas minas. “Uma vez eu precisei descer, porque o bombeiro me chamou para coletar informação. Nesse dia a gente viu uma movimentação de bombeiros e de pessoas da Vale, eles haviam encontrado uma parte do corpo de um colega nosso da oficina. Não voltei mais.” 

Tamás Bodolay/Agência Pública
“Eu adoeci aqui [na Vale], eu não tinha problema antes”, afirma o técnico de manutenção da Vale, Edivaldo Moreira, sobrevivente da tragédia de Brumadinho
Edivaldo conta também que ficou com medo de sair da empresa e não encontrar trabalho, como aconteceu com Renato Cassimiro, que atuava na área de elétrica para a CBE Engenharia, uma terceirizada que prestava serviço para a Vale no dia do rompimento. De acordo com o Relatório de Análise de Acidente de Trabalho, de setembro de 2019, dois trabalhadores da CBE morreram no colapso da barragem. “Os meus amigos morreram lá e eles não fizeram nada para mim direito”, explicou Cassimiro, que decidiu sair por insatisfação e medo. “Uma empresa que não preza pelo seu funcionário não preza por ninguém, não”, explicou.

“Depois que eu saí da empresa, eu fui caçar emprego e estava difícil, porque as empresas ficavam me perguntando sobre o acidente. Eles achavam que eu não estava bem, entendeu? A gente passa por psicólogo quando vai fazer entrevista, aí eles falavam: ‘Não, mas você [se] acidentou, você deve estar… Você está com trauma ainda?’. Eu falava que não, mas eles [continuavam]: ‘Você acha que está bem para estar trabalhando?’. Eu falava que sim, mas não conseguia a vaga”, conta Cassimiro. “Eu mandava currículo, as empresas faziam entrevista e não me chamavam, aí eu ficava estranho. É estranho, né? Você ter um perfil bom e não conseguir emprego”, desabafa.

Cassimiro, que só conseguiu se salvar da lama por ter corrido muito — “se eu tivesse parado, eu tinha morrido” —, voltou a trabalhar no final de 2021. Com o que recebeu quando saiu da empresa comprou uma casa e, entre 2020 e 2021, viveu com a esposa e a filha de 2 anos do auxílio emergencial da pandemia de covid-19. As memórias do dia da tragédia continuam constantes: “Eu vi a lama, os trem tudo, as pessoas morrendo. Tanto que eu não consigo dormir direito, é muito pesado”. 

Assédio moral
“Quem não morreu, [mas] morreu por dentro, não pegou quase nada [de indenização] e [ficou] só sendo chantageado, sendo cobrado das coisas”, diz Ronnie Silva, que por mais de 20 anos foi técnico de ferrovias e infraestrutura da Vale. Ele não estava no momento do rompimento da barragem, mas contou ter chegado logo após e ajudado nos resgates.

Silva permaneceu no emprego por mais de um ano depois do acidente — “era o meu sonho, minha vida”. Ficou auxiliando os bombeiros nas buscas que duram até hoje (ainda há seis desaparecidos), já que o trabalho que antes exercia naquela mina foi extinto. Segundo ele, quando a demanda nas operações de resgate ficou menos intensa, passou a ser pressionado para que se demitisse. “A gente já não tinha lugar, eles estavam largando a gente. O que dava pra entender é que eles queriam que você picasse mula e pedisse pra sair”, diz.

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“Todo dia vinha gerente e falava: ‘Ah, mas tem muita gente à-toa’. Uai, não tinha nada pra gente fazer. A gente estava sofrendo tipo uma lavagem cerebral, sabe? Aquilo estava ficando chato demais. Eu perguntei: ‘Você quer que eu faça o quê?’. Aí eles [lembravam que] ‘não tem ferrovia mais’. Mas não fui eu que acabei com a ferrovia, uai, foi a barragem, foi eles mesmo. No final, nós tava muito jogado, até hoje a turma está muito chateada…”

O advogado Luciano Pereira, do Sindicato Metabase de Brumadinho, denuncia: “Em muitos casos houve uma verdadeira expulsão desses trabalhadores por parte da Vale”. E explica: “Eles [trabalhadores] voltaram para a empresa em uma condição de atingidos e vítimas do rompimento da barragem. O local onde trabalhavam deixou de existir e as tarefas às quais eles estavam vinculados também, e eles não tiveram uma realocação que viabilizasse a permanência”.

Em retorno à reportagem via assessoria, a Vale afirmou, por e-mail, que “reafirma seu compromisso com a Reparação Integral dos danos causados pelo rompimento da barragem”. “Após o rompimento e a paralisação das atividades minerárias da Vale em Brumadinho, a empresa realizou uma série de treinamentos e reestruturação organizacional, a fim de melhor realocar os empregados lotados em Brumadinho em funções novas ou existentes”.   

A mineradora afirmou que 235 empregados aceitaram a pecúnia e foram desligados, “sendo cinco por iniciativa da companhia”. “Tanto no desligamento por vontade do empregado ou da empresa, os termos do acordo foram cumpridos e os trabalhadores receberam, em parcela única, o valor correspondente aos seus ganhos até o final do período de estabilidade, além dos demais direitos trabalhistas já assegurados pela CLT”, diz a Vale.

Psicofobia e desemprego

Mesmo fora da empresa, os trabalhadores que sobreviveram ao desastre têm de enfrentar o preconceito de outros empregadores, como relatou Cassimiro. “As pessoas chegam e [me] falam que vai procurar emprego, e, por estar muito abalado, as empresas recusam contratar essas pessoas, por achar que eles podem trazer um transtorno, um distúrbio lá”, corrobora Adilson Souza, líder comunitário do bairro Parque da Cachoeira, um dos mais afetados pela lama de rejeitos.

Naiana Andrade, mestre em saúde pública pela UFMG com pesquisa sobre os trabalhadores sobreviventes de Brumadinho, ouviu diversos relatos de psicofobia, que é o preconceito contra portadores de transtornos mentais. Ela explica que a psicofobia revitimiza as vítimas do rompimento: “Você [o trabalhador sobrevivente] passou por todo o trauma de ver seus amigos morrerem, ter que correr contra o tempo, a lama por um triz de te alcançar…  Foram momentos de desespero e as imagens ficam até hoje martelando na cabeça deles, os barulhos, as perdas dos amigos, o pessoal gritando socorro. Tudo isso pode levar a uma situação traumática. Porém a gente não pode isolar ou não dar oportunidade a uma pessoa que tem, ou que você acha que tem, transtorno mental”. No caso dos sobreviventes, a exclusão ocorre pela suposição, já que “eles não levaram nenhum laudo quando eles foram fazer o processo”. “Isso já é um preconceito”, explica Naiana, que ressalta que tais condições não impedem as pessoas de trabalhar. 

Nesses casos, porém, “é muito difícil fazer a prova que eles não foram contratados por preconceito”, adverte o advogado sindicalista, que também já ouviu “muitos relatos de trabalhadores que sentiram isso”. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) conduz campanha pela criminalização da psicofobia desde 2011.

A questão é crucial no momento porque, com o fim da estabilidade, os que continuam na Vale não sabem se serão demitidos. No dia 25 de janeiro passado, acabou o prazo de três anos de estabilidade dos sobreviventes, como Leandro Borges, operador de máquinas e de caminhões, que continuou na Vale depois de ter sido soterrado pela lama e ficado um ano afastado em função de lesões nos ossos e músculos. Um dos motivos de ele ter escolhido ficar na empresa, onde diz viver o luto “todos os dias”, foi a garantia do plano de saúde para a família: sua esposa descobriu um câncer de mama pouco depois do acidente. Agora, “com questão da estabilidade, que acabou, o que vai acontecer daqui pra frente ninguém sabe, não. É uma interrogação”.

Borges foi encontrado pelos colegas Elias Nunes e Sebastião Gomes quase sem vida. Juntos, conseguiram chamar atenção dos bombeiros e ele se salvou. Nunes, que continua na empresa, também não sabe se vai continuar. “Nunca falaram nada. A gente está trabalhando como antes.” Ele atua na reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem e auxilia os bombeiros na busca pelos seis desaparecidos. “O que me mantém é isso, essa vontade de tentar fechar este ciclo e de tentar ajudar a reparar essa degradação. Isso que mantém a gente firme, e primeiramente Deus”. “O nosso trabalho é muito importante”, avalia ele, que só se permite pensar em sair “depois que [os bombeiros] encontrarem todos [os desaparecidos]”.

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Fonte: Agência Pública

Data original de publicação: 03/03/2022

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