Trabalho escravo alimenta mudança do clima, alerta sociedade civil na COP26
Por Leonardo Sakamoto | Repórter Brasil
“Trabalho escravo é frequentemente encontrado em setores destruidores do clima. Em muitas partes do mundo, modelos de desenvolvimento baseados no extrativismo e no agronegócio voltados para a exportação estão piorando a vulnerabilidade à escravidão moderna ao monopolizar a terra e recursos naturais, poluindo o solo, o ar e a água, destruindo ecossistemas e causando migração.”
O alerta está em documento assinado por 58 organizações da sociedade civil e universidades que atuam nos cinco continentes, como a Anti-Slavery International e o Freedom Fund, enviado a Alok Sharma, presidente da COP26, e Patricia Espinosa, secretária-executiva da ONU para mudanças climáticas.
Elas pedem que a cúpula das Nações Unidas trate da relação entre a mudança climática e a escravidão contemporânea, recomende aos governos que reconheçam as ligações entre ambas e a migração induzida pelo clima e garantam condições decentes para os trabalhadores do setor de energia renovável, muitas vezes vítimas desse tipo de exploração.
Kevin Bales, responsável pela cadeira de escravidão contemporânea na Universidade de Nottingham, no Reino Unido, e considerado um dos maiores especialistas mundiais no tema, afirma que há um perverso ciclo vicioso, em que escravizados são levados a destruir florestas e ecossistemas, o que contribui com as mudanças climáticas, que, por sua vez, trazem secas, inundações e desertificação, aumentando a vulnerabilidade social e gerando refugiados ambientais. Ou seja, levando mais pessoas a se tornarem vítimas do trabalho escravo.
Uma análise dos relatórios de fiscalização do governo federal mostra que, no Brasil, atividades econômicas que contribuem para a emissão de gases de efeito estufa e, portanto, para as mudanças climáticas, como desmatamento, produção de carvão e pecuária bovina, têm tido historicamente a maior incidência de pessoas submetidas a formas contemporâneas de escravidão. Sim, parte da destruição dos biomas brasileiros é feita com mãos cativas.
Conexão entre trabalho escravo e desmatamento
Jonas perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas fortes chuvas amazônicas, debaixo de uma tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Trabalhava com motosserra, transformando a floresta em cercas para o gado do patrão, a partir de árvores tão grossas que dois homens adultos não conseguiam abraçá-las. Passou fome, experimentou dengue e durante dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. Participei da libertação de Jonas anos atrás. Ele tinha apenas 13 anos.
Jonas me disse que não queria ficar sempre naquele lugar. Um dia ele iria pegar a estrada. Queria ser motorista de caminhão. Talvez para conhecer o Brasil, que está além das cercas da fazenda. Ou fugir da infância do barulho de motosserras que derrubavam a Amazônia e, junto com ela, seu futuro. Nosso futuro.
Existe uma conexão intrínseca entre destruição da floresta amazônica e trabalho escravo. O exemplo do município de São Félix do Xingu, no Pará, é representativo disso: ele é um dos campeões nacionais em área desmatada e, ao mesmo tempo, campeão nacional em número de operações de resgate de trabalho escravo e um dos campeões em número de rebanho de gado.
Seja no desmatamento para a abertura de pastos, seja na produção de carvão vegetal para abastecer usinas de ferro gusa, seja na extração de madeira de baixo valor para a construção civil ou de alto valor para a exportação, os empreendimentos estão conectados a redes de produção globais. E, não raro, financiados por empresas brasileiras e estrangeiras que se justificam dizendo que fazem o ‘business as usual’, ou seja, são apenas negócios.
Quase 57 mil pessoas foram resgatadas oficialmente do trabalho escravo pelo governo brasileiro desde 1995, quando o Brasil instituiu seu sistema de combate à escravidão, de acordo com o Radar SIT – Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, mantido pelo Ministério do Trabalho.
Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, destaca que esse tipo de exploração da mão de obra encontra sua faceta mais violenta quando atua para a abertura de novas áreas visando à criação de gado, à extração de madeira ou à produção de carvão.
E isso continuou acontecendo mesmo durante a pandemia de covid-19, em um contexto em que o presidente da República deu um salvo conduto a grileiros, desmatadores, pecuaristas ilegais e garimpeiros ao atacar a fiscalização ambiental realizada pelo Ibama e o ICMBio.
Uma operação, em março deste ano, resgatou 66 pessoas do trabalho escravo contemporâneo em uma carvoaria em Brasilândia, Estado de Minas Gerais, por exemplo. O grupo estava em condições tão desumanas que usavam folhas de livros escolares descartados no lixo como papel higiênico.
Esse foi só o terceiro resgate de trabalhadores em carvoarias só em Minas Gerais em 2021, depois vieram outros. A atividade foi a segunda atividade que mais usou escravizados em 2020 e está ligada diretamente à demanda por ferro gusa, matéria-prima do aço, que leva carvão em seu processo de produção.
Bolsonaro culpou indígenas, vítimas do desmatamento
A imprensa internacional reproduziu à exaustão as imagens de queimadas, etapa do processo de desmatamento, não só na Amazônia, mas também em outros importantes biomas, como o Cerrado e o Pantanal. Isso levaria qualquer governo civilizado a sentir vergonha com medo de se tornar um pária internacional. Mas aqui foi diferente.
Nos dois discursos que fez na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2019 e 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não apenas afastou a responsabilidade pelos crimes contra o meio ambiente dos quais é acusado, como acusou as populações indígenas pelas queimadas. Ou seja, culpou as vítimas. E, na Assembleia Geral deste ano, torturou dados, pinçando apenas um mês (agosto) para afirmar que o desmatamento caiu na Amazônia.
Mas não disse que a Amazônia Legal perdeu 10.476 km² de floresta entre agosto de 2020 e julho de 2021, meses em que é medida a temporada do desmatamento. Isso é 57% maior que o número da temporada passada, a pior medição da última década, de acordo com o Imazon.
Bolsonaro tem defendido teorias conspiratórias de que países ricos querem invadir a Amazônia e toma-la do Brasil, o que ajuda algumas fileiras das Forças Armadas nas quais essa paranoia ganha corpo. E para evitar que essa “invasão” aconteça, ele apoia um desenvolvimento predatório para ocupar de forma rápida e violenta a região. Desenvolvimento predatório que desmata, mata, polui e escraviza.
No Brasil, essa narrativa usa a pobreza, que é decorrente do desenvolvimento predatório, para justificar a própria necessidade de desenvolvimento predatório. Como se a derrubada de mais floresta fosse a única opção para tirar as pessoas da miséria, quando é o contrário.
Uma operação do governo, em 2019, resgatou 17 trabalhadores escravizados que atuavam na derrubada de mata nativa e carregamento de toras em caminhões, em Pimenta Bueno, no Estado de Rondônia. A equipe chegou a eles por causa da denúncia da morte de um trabalhador esmagado por uma árvore.
A mãe e o irmão do falecido foram dois dos 17 resgatados na frente de trabalho, de acordo com relatos dos auditores fiscais à coluna. Ela – que atuava como cozinheira do grupo – afirmou que precisava do serviço e, por isso, continuou ali, no mesmo local, mesmo após seu filho ter sido esmagado.
‘Passar a boiada’ até nos direitos trabalhistas
Desde o início do atual governo, houve forte atuação para enfraquecer os órgãos e sistemas de controle e monitoramento, o que beneficiou grupos de apoiadores do governo ligados ao extrativismo ou à produção agropecuária.
No dia 22 de abril de 2020, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na hoje icônica reunião com o presidente da República (cujo vídeo foi divulgado por ordem do STF em meio às denúncias de Sergio Moro de que Bolsonaro estaria interferindo na Polícia Federal), afirmou que o governo precisava aproveitar que as atenções da imprensa estavam voltadas à tragédia da covid-19 para mudar normas ambientais. Usou a expressão “passar a boiada”.
O mesmo padrão de boiada também foi empregado para questões trabalhistas. Apenas por uma confluência de fatores favoráveis é que a Medida Provisória 1045, que instituía uma nova Reforma Trabalhista, precarizando as relações de trabalho e dificultando até operações de fiscalização de trabalho escravo, acabou sendo bloqueada no Senado após ser aprovada na Câmara. Mas o rosário de projetos que atacam leis trabalhistas continuou sendo desfiado pelos deputados, em propostas que tramitam nas comissões e no plenário.
Ao mesmo tempo, multinacionais escapam da regulamentação ambiental e social de seus países-sede e vão poluir e superexplorar trabalho na periferia do mundo, onde governos pobres ou corruptos estão mais abertos a aceitar investimentos danosos ao meio ambiente e aos trabalhadores.
Há no Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas uma lenta discussão para obrigar empresas a mudarem de comportamento, trocando princípios voluntários em direitos humanos por regras obrigatórias, os chamados princípios vinculantes. A discussão, contudo, segue como uma ideia bonita num horizonte distante, uma vez que muitos países – incluindo os que ignoram as mudanças climáticas e os que batem no peito se autoproclamando heróis no clima – ainda resistem.
Existem alguns mecanismos para garantir que empresas andem na linha, por exemplo, o desinvestimento de fundos que se dizem responsáveis – processo ativado pelo barulho produzido através da imprensa e da sociedade civil. Mas, segundo a análise dos próprios responsáveis por esse debate no Alto Comissariado da ONU, tudo ainda é incipiente e depende das empresas adotarem, por pressão ou consciência, mudanças internas. (…)”
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Fonte: Repórter Brasil
Data original da publicação: 09/11/2021