Trabalho, gênero e feminismos | Revista Trabalho Necessário

Por Revista Trabalho Necessário

Editorial: ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO!

Esta frase é parte da música Sujeito de Sorte, composta por Belchior no ano de 1976, num álbum chamado Alucinação – o que expressa bem os sentimentos que tomavam grande parte da sociedade brasileira naquele duro contexto da nossa história. Reproduzida pelo rapper paulistano Emicida, em 2019, numa das faixas do seu disco AmarElo2, antecipava, sem saber, o ano que viveríamos a seguir.

A partir dela, então, é que iniciamos nossas reflexões neste primeiro número da Revista Trabalho Necessário do ano de 2021. E o fazemos porque a música traz em si, dialeticamente, uma denúncia e um anúncio: morremos em 2020. Mas não morreremos agora.

E do que morremos? Morremos, real e literalmente, pela pandemia da covid-19. No momento em que escrevemos esse editorial, são mais de 2,4 milhões de mortos no mundo3. Só no Brasil, temos mais de 240 mil mortes, o que nos coloca no 2º lugar entre os países com mais perda de vidas humanas. Morremos sem oxigênio nos hospitais de Manaus; morremos pela falta de leitos e equipamentos nas redes públicas de saúde, sucateadas e abandonadas por decisões políticas – em nível municipal, estadual e federal – que não reconhecem a saúde como bem público. Morremos pela negligência criminosa das autoridades da saúde de um governo que desde o início da pandemia escolheu deliberadamente minimizá-la, oferecendo “tratamento precoce e preventivo” com medicamentos ineficazes, fato comprovado por pesquisadores e pesquisadoras do mundo todo. Morremos porque, mais uma vez, este mesmo governo se atrasa em negociar e garantir financiamento para que nossos institutos públicos de pesquisa (especialmente Fiocruz e Butantan) pudessem se preparar para a fabricação de vacinas – estas, sim, o principal mecanismo de controle da pandemia de covid-19.

Mas não devemos pensar nesse número chocante de mortes como uma fatalidade. Há ainda a necessidade de compreender a relação da pandemia da covid- 19 com um modo de produção e reprodução que tem intensificado, de forma radical, a precarização da vida e a destruição da natureza.

Sob o capitalismo neoliberal, com a dominância do capital financeiro, nos últimos 40 anos, grande contingente da população mundial se tornou vulnerável e sem condições de enfrentar uma crise como a que a pandemia provocou. Contrariando a tese muito difundida, de que as doenças infecciosas não veem classe ou outras barreiras sociais, Harvey (2020: p.21) afirma que a covid assume características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça, uma vez que “a força de trabalho que se espera que cuide dos números crescentes de doentes, é tipicamente e altamente sexista, racializada e etnizada na maioria das partes do mundo”. Da mesma forma, o conjunto de trabalhadores(as) essenciais – no comércio e nos serviços, também atende a essa interseção.

Como esquecer que a primeira morte por covid registrada no Brasil foi de uma empregada doméstica (mulher, negra), cuja patroa havia retornado contaminada de uma viagem à Europa e não a dispensou do serviço? Como não pensar na morte do menino Miguel (também negro), em Recife, morto pela neglicência criminosa da patroa de sua mãe que, também empregada doméstica, saiu para passear com o cachorro da casa, enquanto seu filho (que não pode ir para a escola em função do lockdown) ficava sob a “responsabilidade” de alguém que não o reconheceu como digno de seus cuidados?

Mas há ainda os milhares de jovens – na sua maioria homens, negros e das periferias das grandes cidades – que se expõem sistemática e cotidianamente nos serviços de entrega por plataformas, sem qualquer proteção trabalhista, acrescida agora pelo risco de contaminação pela covid. Há escolha dada a eles é: ir para a rua e correr o risco de se contaminar (e à sua família), ou ficar em casa com fome.

Assim, é preciso que se diga que essa morte que a covid escancara e exacerba numericamente, não é, nem no mundo nem no Brasil, uma novidade. Ao contrário, ela explicita uma condição histórica de desigualdade que, no caso de um país de capitalismo periférico como o nosso, carrega ainda as marcas de um passado colonial-escravista. Marcas que estruturam as relações sociais/institucionais que nos permitem compreender como e por que morremos pela violência estatal/policial nas favelas e periferias, por LGBTfobia, por feminicídio.

No caso específico das mulheres (em especial, as mulheres negras e indígenas), a pandemia e o isolamento social foram ainda mais penosos: são elas que constituem o segmento de trabalhadores que mais rapidamente perderam o emprego e engrossaram a fila para recebimento do auxílio emergencial4. Auxílio duramente conquistado, mas limitado tanto no valor quanto na duração e abrangência. Para aquelas que estavam/estão em home office restou a sobrecarga de cuidados com os filhos em casa, sem aula (ou em aula remota), os cuidados das pessoas idosas ou enfermas, além do acúmulo das tarefas domésticas.

Além disso, a violência doméstica também aumentou na pandemia e afetou ainda mais essas mesmas mulheres. Segundo o documento Gênero e covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta, publicado pela ONU Mulheres em março de 2020, “enfrentar uma quarentena é um desafio para todos, mas para mulheres em situação de vulnerabilidade pode ser trágico”. Os números levantados pelas organizações Think Olga e Think Eva5, sobre a violência doméstica contra meninas e mulheres confirmam o alerta: só no Rio de Janeiro, nos primeiros meses de quarentena houve um aumento de 50% nos casos de violência contra as mulheres no ambiente doméstico. O mesmo se pode dizer sobre os casos de feminicídio. Matéria do jornal Extra6, de 27/12/20, reportava que só na véspera do Natal, seis mulheres de regiões diversas do país, com idades variando entre 23 e 74 anos, foram vítimas de feminicídio – mortas pelos maridos, ex-companheiros ou namorados, em casa (ou próximo), muitas vezes perto dos filhos, com motivações como ciúmes, não aceitação do término do relacionamento, ou por discussões.

Estes dados e reflexões que reúnem o que chamamos a denúncia da morte que sofremos em 2020 talvez possam obscurecer o seu duplo/contrário, e que tem a ver com a resistência e com as lutas travadas – e por travar – e que, por isso nos permitem anunciar que “nesse ano eu não morro”.

É como anúncio de resistência (e, portanto, de vida) que enxergamos a greve dos trabalhadores por aplicativo, em julho de 2020 (o Breque dos Apps, como a nomearam), quando esse coletivo não formalmente organizado em sindicatos7 conseguiu trazer à público a discussão sobre a centralidade do trabalho. Ao se tornarem essenciais à garantia de isolamento que a pandemia impunha à sociedade (ou àqueles que puderam se isolar e proteger-se), denunciaram as péssimas condições de trabalho a que estavam expostos e reivindicavam condições mínimas para trabalhar. O que será da organização deste segmento ainda não está dado, seja pela permanência ou mesmo aprofundamento da crise pandêmica, seja pela sua capacidade de articulação com outros movimentos e entidades da classe trabalhadora para a constituição de ações coletivas.

Também elencamos no rol de lutas que anunciam que estamos vivos, as ações dos sindicatos em defesa do emprego e de condições de trabalho que permitam a proteção fundamental dos trabalhadores no cenário da pandemia. Essas ações incluíram desde a entrada na Justiça para que as empresas cumprissem as medidas definidas pela OMS, até greves e paralisações, além da adoção de novas formas de comunicação com os trabalhadores. Dentre essas últimas destacam-se as assembleias virtuais e as lives, como tentativa de manutenção e fortalecimento da organização coletiva (CAMPOS, 2020; PESSANHA e RODRIGUES, 2020).

É importante destacar ainda uma série de ações solidárias levadas a cabo por ONGs e movimentos sociais – de mulheres/feministas; negros; sindicais; dos trabalhadores sem-terra; dos trabalhadores sem teto, dentre outros. Desde o início da pandemia estes grupos sociais reuniram recursos para distribuição de cestas básicas, material de higienização, além da ampliação da rede de informação e orientação para acesso ao auxílio emergencial e outras políticas que, apesar de reconhecidamente limitadas quanto à sua abrangência, tornaram-se fundamentais para a existência da população mais vulnerável.

O ano de 2021 nos apresenta um cenário tão ou mais difícil do que o que vivemos em 2020: a economia em recessão impacta profundamente e por longo tempo o mercado de trabalho, fazendo aumentar a taxa de desemprego, da subocupação, do trabalho intermitente e informal. No setor público, a ameaça da Reforma Administrativa é cada vez mais uma realidade próxima, estendendo a condição da precarização e instabilidade para grande parte da classe trabalhadora brasileira.

No campo da educação, vemos se agudizarem as desigualdades no acesso e no aproveitamento dos(as) discentes, seja em função da manutenção do ensino remoto e/ou híbrido – que também aumenta o risco de adoecimento dos(as) docentes por acúmulo de tarefas e pela piora das condições de trabalho; seja pela realização de um arremedo de ENEM, que exacerba a exclusão da classe trabalhadora e seus filhos à Educação Superior, fragilizando ainda mais a educação como bem público e como direito de todos/as.

Por tais condições – e apesar delas, consideramos que o papel da academia e de seus e suas pesquisadoras, em especial aqueles e aquelas que estão na Universidade Pública, é também denunciar, a partir do conhecimento produzido, as condições e mazelas da existência humana e, junto com outras forças sociais, pensar e propor a transformação destas condições.

Nesse sentido, temos o prazer de trazer no número 38 da Revista Trabalho Necessário as questões da temática Trabalho, Gênero e Feminismos. Organizado por Tatiana Dahmer Pereira e Maria Cristina Paulo Rodrigues, integrantes, respectivamente, do TEIA (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social/ESS-UFF) e do NEDDATE (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados em Trabalho-Educação/FEUFF), o presente número reafirma a urgência desse debate na esfera acadêmica, assim como a importância da articulação entre os vários campos das Ciências Humanas e Sociais, comprometidas com a emancipação humana.

Que as reflexões aqui reunidas possam contribuir para o estabelecimento de uma agenda de pesquisa e de ação que reforce o sentido da universidade socialmente referenciada. E que 2021 nos encontre atentos e fortes!

Fevereiro de 2021

Maria Cristina Paulo Rodrigues, Lia Tiriba e José Luiz Cordeiro Antunes

Editores da Revista Trabalho Necessário

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