Trabalho por aplicativo, um PL equivocado I
Algo assim só poderia vir de uma crise econômica como a de 2008, com uma tendência à estabilizar-se como profissão depois que ela passasse.
Por Luiz Alberto Melchert | Jornal GGN
Antes de analisar o PL da regulamentação dos profissionais dependentes de aplicativos, é preciso entender como essa modalidade de trabalho começou. A sugestão aqui é assistir “A Noite dos Desesperados”, filme ganhador de três Oscares, com direção de Sidney Polac e com Jane Fonda no papel principal. Essa história baseou-se em “But, They shoot horses, dont They?” de Horace McCoy, brilhantemente traduzido por Érico Veríssimo com o título “Mas… Não se matam cavalos?” Trata-se dos concursos de dança em que os desempregados concorriam por saber quem seria capaz de dançar por mais tempo, em troca de comida, um banheiro e nos caraminguás para o vencedor. A ideia da Uber é semelhante, induzir o motorista a guiar até não aguentar mais em troca de um valor vil, correndo todos os riscos, desde o carro ao sustento de sua família. Algo assim só poderia vir de uma crise econômica catastrófica como a de 2008, com uma tendência à estabilizar-se como profissão depois que ela passasse.
A ideia era brilhante para transformar os trabalhadores no que Karl Marx considerava como lumpen que, em alemão, significa o que não se enquadra na sociedade constituída pelos capitalistas e os trabalhadores. São aqueles que, ao deixar o emprego formal, viram-se numa categoria à parte, nem autônomo, por não ter uma profissão que justifique o status, nem trabalhador. Pode-se dizer que é o que vive de bico e, por acostumar-se a essa situação, não se vê na condição anterior de assalariado. No Brasil, há particularidades inerentes à concorrência desleal dos taxistas, já estudada em outro espaço. A ideia se espalhou criando concorrentes para a Uber, enquanto ela própria tornou-se concorrente de empresas como a Ifood, sempre no ramo de micrologística urbana. Foi essa logística que trouxe outros negócios igualmente desumanos como as black kitchens, mas isso é uma outra história.
O fim da crise e a consequente melhora no nível de emprego causaram efeitos interessantes nos serviços baseados em aplicativos. Ao mesmo tempo em que todos os governos do mundo pressionam pela regulamentação, visto que esse enorme contingente deixou de contribuir para a previdência social, os trabalhadores não querem ser descontados além do que já entregam aos seus exploradores. Em New York, por exemplo, ainda antes da pandemia, já se tinha imposto um ganho mínimo de US$15,00 aos motoristas. Além de visar um piso para a arrecadação previdenciária, a medida visava a reduzir o número de prestadores de serviço, que já alcançara os cento e cinquenta mil, prejudicando o já caótico trânsito da cidade. Deu certo. Como era de se esperar, a Uber perdeu o interesse na quantidade e pulverização, preferindo a produtividade e a dedicação exclusiva, evitando assim o desembolso pela baixa produtividade. Em semanas, o número de motoristas caiu para quarenta e cinco mil, desafogando o trânsito, enquanto a demanda por transporte manteve-se suprida.
Aqui no Brasil, o fim da crise e a mudança de governo trouxeram uma melhora significativa no nível de emprego. O número de Ubers com dedicação integral caiu, ao mesmo tempo em que os demais passaram a escolher corridas. O número de desistências chega às oito ou dez nos horários de pico. Como se isso não bastasse, atitudes como adicionar paradas tornaram-se entraves à aceitação. Desde 2022 que vem tramitando o PL 1561/2022, prevendo que operadoras de aplicativos garantam um mínimo ao motorista. Ao mesmo tempo, as centrais sindicais, fortalecidas pelo nível de emprego e pela mudança de partido no poder, começaram a pressionar pela celeridade da regulamentação. Foi quando o Governo apresentou, em 4 de março, uma nova proposta que também garante um mínimo ao prestador de serviço, incluindo a contribuição previdenciária, ao mesmo tempo em que nega o vínculo empregatício, o que parece um tanto contraditório. Enquanto alguns deles se sentem prejudicados pela perspectiva de queda no ganho, outros mostraram não ter entendido o projeto. Por ele, sendo a empresa obrigada a garantir R$32,00/h, a empresa deverá inteirar o valor até que chegue ao estipulado. Se um profissional fizer, por exemplo, R$20,00/h, a empresa deverá desembolsar outros R$12,00, descontando 7,% como contribuição previdenciária, pelo que ela paga outros 20% à Previdência social. Se o profissional fizer R$33,00/h ou acima, a empresa não terá nada a repor, pagando os encargos sobre o valor auferido.
É de se esperar que as empresas não vão querer os maus profissionais porque sua baixa produtividade induzirá um desembolso bastante significativo. Provavelmente, os que usam o carro para ganhar um dinheiro extra na ida ou na volta do trabalho também não atingirão o mínimo, estando fora muito rapidamente. Se o comportamento for semelhante ao de New York, é de se esperar que dois terços dos prestadores de serviço estarão fora das empresas em pouquíssimo tempo, trazendo um descontentamento com que o Governo ainda não contou.
Existe solução mais aprimorada? Provavelmente, mas fica para a próxima matéria.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
Fonte: Jornal GGN
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Data da publicação original: 12 de março de 2024