Um tempo só para si: gênero, pandemia e uma política científica feminista
Por Bárbara Castro e Mariana Chaguri para DADOS – Revista de Ciências Sociais | IESP-UERJ
Ao longo das últimas semanas, diferentes equipes editoriais de publicações científicas têm noticiado a queda acentuada na quantidade de submissões de artigos assinados por mulheres (seja em autoria individual, ou coletiva) após a implementação de medidas de isolamento social em diversas partes do mundo*. O extraordinário da pandemia do novo coronavírus nos coloca diante do ordinário das assimetrias das relações de gênero tanto na rotina de trabalho nas universidades, quanto na dinâmica da produção do conhecimento científico. Se cotidianamente, mulheres na ciência lidam com ambientes mais ou menos hostis no que se refere ao assédio moral ou sexual, além de enfrentarem uma sobrecarga de trabalho administrativo em posições menos prestigiosas da burocracia universitária, por exemplo, as ações para o enfrentamento da disseminação da Covid-19 incidiram exatamente na ambiguidade da posição social de mulheres: entre a casa e a universidade; entre o trabalho de cuidado e o trabalho intelectual.
Quando a própria casa ganha ainda mais centralidade na trabalho acadêmico de mulheres, discussões sobre desigualdades de gênero frequentemente passam a evocar imagens de situações nas quais as atividades da vida doméstica se confundem com as demandas e exigências do trabalho como docentes e pesquisadoras. Crianças, companheiros ou outros membros da família produzem constantes interrupções nas rotinas profissionais de mulheres, tornando tarefa impossível a concentração duradoura que é exigida para a leitura e análise de textos, preparação de aulas, levantamento e tratamento de dados, redação e correção de artigos científicos, entre tantas outras tarefas.
Se antes, em alguns momentos do dia, a casa poderia ser o refúgio das acadêmicas para que trabalhassem tranquilas – algo que o cotidiano dentro do espaço físico da universidade muitas vezes não possibilita -, ela agora aparece como um espaço perturbador ao desenvolvimento e progressão da carreira.
A sobrecarga de trabalho para as mulheres que são mães é evidente e deve ser reconhecida pela comunidade científica – incluindo as agências de fomento -, o que, no entanto, não diminui a importância de observar que as associações diretas entre gênero e maternidade acabam por reforçar uma leitura naturalista sobre as desigualdades de gênero na ciência. Em carta dirigida à revista Science, colegas correta e corajosamente apontaram para a penalização adicional que as mães cientistas estão vivenciando neste momento. No entanto, gostaríamos de pontuar que argumentos que fazem equivaler cientistas homens a pares mulheres sem filhos acabam por invisibilizar algumas das inovações teóricas e normativas mais potentes do campo de estudos feministas e de gênero: as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres presentes em nossa sociedade não derivam da natureza biológica do homem ou da mulher, ao contrário, são socialmente construídas, o que nos permite pensar na subversão e superação dessas relações de poder.
Associar a desigualdade de gênero unicamente à maternidade, tem como efeito social, político e prático, a redução da multiplicidade de relações de poder que constituem a vida social das mulheres, limitando o alcance de reivindicação pela igualdade de gênero a somente uma dessas facetas. Em tempos de isolamento social, observamos que ajustes são negociados com as pessoas que se convive em casa: dias e horários são fixados para cada tarefa doméstica, atividades em família, atenção à aprendizagem de filhos em idade escolar ou tempos de silêncio absoluto. A organização racional dos usos dos espaços e tempos da casa se tornou um imperativo para uma quarentena bem-sucedida, adicionando mais um trabalho às mulheres, que ao negociarem constantemente regras de administração do espaço doméstico, se percebem exaustas.
A sociologia das feministas materialistas francesas ajuda a compreender o que se passa: separação e hierarquização das tarefas entre homens e mulheres, concentração das responsabilidades domésticas e do cuidado sobre elas, acúmulo dessas atividades com as do trabalho remunerado, o que Daniele Kergoat e Helena Hirata (2007) definem como divisão sexual do trabalho. Para além disso, é produtivo pensarmos no debate sobre os tempos sociais. Nos anos 1970, o movimento feminista francês denunciava a “dupla jornada” das mulheres trabalhadoras, que somavam o trabalho produtivo, remunerado, ao reprodutivo, não remunerado. Neste momento, já era comum ouvir a defesa do trabalho em tempo parcial ou em regime de horários flexível como forma de conciliar as duas atividades e garantir a maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Mas seria suficiente assegurar formas de maior participação das mulheres no mercado de trabalho para combater as desigualdades de gênero?
Em meados dos anos 1980, Monique Haicault cunhou a ideia de “carga mental” para descrever o constante cansaço sentido pelas mulheres que se inseriam no mundo do trabalho. Haicault teve larga experiência de pesquisa com mulheres que trabalhavam a domicílio na indústria têxtil, sobrepondo espaços e tempos de trabalho. Mas, foi quando ela deslocou seu estudo para outro contexto, o de mulheres trabalhando em fábricas, fora de casa, que ela pôde perceber como a distinção de espaços sociais era simplesmente de ordem simbólica. Quando estão nas fábricas, as mulheres planejam a vida doméstica, pensam sobre as compras da semana e do mês, as contas a pagar e as tarefas que têm para cumprir. A casa as acompanha na fábrica. A carga mental não está, portanto, na justaposição ou somatória de atividades, mas na sua sincronicidade, na sua simultaneidade.
“A carga mental é feita, portanto, de ajustes perpétuos, da viscosidade do tempo que raramente é ritmado e muito mais frequentemente imanência, onde se perde o corpo e a cabeça para calcular o incalculável, para recuperar o atraso do tempo com o tempo, para tentar gerenciar com o tempo, o tempo perdido. A carga mental está cheia desses pequenos censores que dizem de maneira simples e tão frequente: ‘Não tenho tempo’ (Haicault, 1984, p. 275, tradução livre)”
Décadas antes, em palestra intitulada “Profissões para mulheres” realizada em 1931 na London and National Society for Women’s Service, Virginia Woolf observava que independentemente de suas respectivas profissões, mulheres precisariam matar o “anjo da casa”, uma espécie de faceta da socialização feminina “[…] imensamente compreensiva. […] imensamente encantadora. […] absolutamente altruísta. […]” (Woolf, [1931] 2019, p.47). Ela reivindicava que as mulheres precisavam de um espaço exclusivo para seu próprio trabalho. Adicionaremos que ter um espaço só para si é o que as permite ter um tempo só para si e, portanto, desenvolver suas habilidades, imaginar e criar – características chaves da inovação científica.
A realização de trabalhos que exigem alta concentração não combina com uma rotina de interrupções. Pesquisas em andamento apontam para as percepções distintas de produtividade de homens e mulheres que atuam em home office: elas avaliam que rendem menos, por serem interrompidas o tempo todo por outras pessoas e responsabilidades; eles avaliam que rendem mais, pois trabalham concentrados e sem interrupção de outras pessoas e tarefas domésticas. A casa não é espaço apenas de relações privadas, é também produtora e reprodutora de normas, regras e valores sociais, bem como hierarquias, disputas e conflitos de gênero.
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Fonte: DADOS Revista de Ciências Sociais
Data original da publicação: 22/05/2020