Venda de escavadeiras na ‘cidade pepita’ segue mesmo com denúncias de uso ilegal
Por Isabela Harari | Repórter Brasil
Comércio esfriou após aumento de apreensões de maquinário em terras indígenas e unidades de conservação, mas escavadeiras de grandes marcas ainda são vendidas em Itaituba (PA)
MESMO COM O AUMENTO de operações de fiscalização contra garimpo ilegal, revendedoras de grandes marcas internacionais como Hyundai, John Deere e Caterpillar continuam vendendendo retroescavadeiras em Itaituba (PA), a “cidade pepita”, um importante polo de mineração no país.
O uso de maquinário pesado eleva a produtividade do garimpo na Amazônia. Uma escavadeira realiza em 24 horas o mesmo trabalho que 3 homens levariam cerca de 40 dias para executar. Assim, lojas com as máquinas, peças e oficinas mecânicas se espalham pela rodovia Transamazônica, a BR-230, no entorno da cidade considerada um dos epicentros da atividade ilícita na Amazônia.
Em 2023, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) destruiu 83 máquinas pesadas usadas na mineração ilegal em 12 unidades de conservação na bacia do Tapajós. O levantamento foi feito pelo órgão responsável pela gestão das áreas protegidas.
Apreensões de escavadeiras pelo ICMBio
Além das máquinas apreendidas em 2023, o órgão ambiental estima que mais 40 escavadeiras foram destruídas desde o início deste ano. “A garimpagem está muito mecanizada, são escavadeiras com um poder de destruição incrível. O tanto de maquinário que foi destruído, imagina o que essas empresas estão lucrando”, ressalta Ronilson Vasconcelos, coordenador da Unidade Especial Avançada do ICMBio em Itaituba.
Denúncias e compromisso contra garimpo ilegal
Além da intensificação das fiscalizações, o relatório “Parem as máquinas” do Greenpeace, publicado em abril de 2023, mostrou que 176 escavadeiras estavam sendo usadas em garimpos ilegais em terras indígenas Yanomami, Kayapó e Munduruku nos dois anos anteriores. Antes disso, em 2022, uma investigação da Repórter Brasil já havia alertado para 157 ocasiões onde equipes de fiscalização apreenderam ou destruíram máquinas em áreas protegidas nos cinco anos anteriores.
Com a divulgação dos estudos, a Hyundai, empresa sul-coreana que liderava o ranking de equipamentos em terras protegidas, se comprometeu a promover “ações para se tornar ainda mais confiável em cada área da ESG [sigla em inglês para ambiental, social e governança]”.
Entre os compromissos assumidos pela Hyundai está a suspensão do contrato entre sua distribuidora oficial no Brasil, a BMC Máquinas, e uma revendedora em Itaituba, a BMG Comércio de Máquinas.
Procurada pela Repórter Brasil, a BMC Máquinas confirmou a rescisão do contrato com a revendedora de Itaituba em maio de 2023 e afirmou que não forneceu mais nenhuma máquina ou peça para a BMG após transcorrido um período de 90 dias previsto na rescisão.
Um ano depois, a reportagem esteve em Itaituba e um funcionário da BMG afirmou, sob anonimato, que máquinas da Hyundai ainda estão disponíveis na loja. Quem passa na frente do estabelecimento não vê mais os produtos expostos de forma explícita como antes. Mas “as máquinas novas estão atrás da loja”, disse o funcionário. A BMG chegou a fechar as portas, mas reabriu em outro endereço no ano passado.
A presença de maquinário da Hyundai na loja mesmo após a rescisão do contrato é confirmada pela própria distribuidora oficial da marca no Brasil. Procurada, a BMC Máquinas contou ter recebido informação recente de um cliente sobre um equipamento da Hyundai no pátio da BMG em Itaituba. Após rastrear sua origem pelo seu número de série, a distribuidora identificou que se tratava de uma máquina vendida originalmente para uma companhia de terraplanagem em Minas Gerais. Posteriormente, o equipamento teria sido vendido, já usado, para a BMG.
“A BMG hoje vende peças para máquinas Hyundai que são adquiridas de fornecedores não autorizados pela Hyundai ou pela BMC. Não temos como proibir ou interferir nesta atividade. A BMC interrompeu por completo a venda de máquinas para garimpo, seja ele legal ou ilegal. O resultado disso foi a queda de nosso market share [participação no mercado] na região, pois os concorrentes seguem fornecendo”, informou a distribuidora.
A BMC disse ainda que interrompeu a venda para garimpo em Mato Grosso, Rondônia, Pará, Goiás e Maranhão. E que essa interrupção impactou em uma queda de 15% a 20% de participação no mercado. A manifestação completa pode ser lida aqui.
A BMG não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
“O poder público tem uma função na hora de prevenir e punir a criminalidade. O setor privado também deve ter essas responsabilidades. Não adianta você falar de ESG quando o produto vendido está sendo usado para cometer crimes”, pondera Jorge Eduardo Dantas, coordenador da Frente de Povos Indígenas do Greenpeace.
Outro resultado do estudo do Greenpeace que mostrou a utilização de maquinário pesado no garimpo ilegal foi a instauração de inquérito civil pelo Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) em junho de 2023 para investigar a relação entre a venda de máquinas da Hyundai, suas representantes e o garimpo ilegal em Itaituba e Jacareacanga.
A procuradora Thais Medeiros da Costa, que instaurou o inquérito, não descarta a investigação de outras multinacionais: “a depender do que nós consigamos com a Hyundai pode ser um paradigma a ser aplicado às outras empresas”.
Redes sociais e BMG
A rescisão do contrato entre a Hyundai e a BMG foi formalizada em maio de 2023. Um ano depois, no entanto, a empresa ainda se apresenta como revendedora da multinacional.
O novo endereço da loja em Itaituba pode não ostentar o logo da empresa, mas seus canais em redes sociais estão recheados de menções à Hyundai. Uma postagem no Facebook no final de maio de 2024, por exemplo, diz que a BMG representa a Hyundai em Itaituba. Em outro post, de novembro de 2023, a logomarca da sul-coreana aparece em um convite para uma feira de máquinas e equipamentos.
Manutenção no garimpo
O trabalho no garimpo desgasta as escavadeiras, então quem não tem condições de trocar a antiga por uma nova, aposta na manutenção ou na troca de peças.
“Tem todo um comércio por trás do garimpo, no pós-venda [das máquinas]. As peças de reposição movimentam o comércio, não é somente a escavadeira”, conta Vasconcelos, do ICMBio.
As revendedoras de máquinas zero quilômetro também fornecem peças das marcas oficiais, além de serviços de manutenção – parte da garantia dos equipamentos.
Além dos mecânicos, é possível encontrar serviço de manutenção oferecidos pelas revendedoras dos equipamentos. Funcionários de duas lojas visitadas pela Repórter Brasil, a Sotreq e a Deltamaq, revendedoras da Caterpillar e John Deere respectivamente, disseram sob anonimato oferecer o atendimento aos clientes diretamente nas áreas de garimpo. A manutenção acontece ali, segundo eles, porque não vale a pena custear a logística de transporte.
A reportagem procurou ambas as revendedoras e perguntou se elas possuíam algum mecanismo para averiguar a legalidade do garimpo onde a manutenção era realizada. A Sotreq não respondeu às perguntas encaminhadas por email e a Deltamaq afirmou que a própria John Deere responderia sobre o caso.
A multinacional norte-americana informou que a máquina é propriedade do cliente e que não tem autoridade para interferir no uso dos equipamentos sem a autorização deles. Também declarou que “agir de forma intrusiva, como bloquear seu funcionamento” seria uma violação de privacidade e de segurança e um desrespeito à Lei Geral de Proteção de Dados. A resposta completa da empresa pode ser lida aqui.
Procurada, a Caterpillar não se manifestou. O espaço segue aberto para o posicionamento das empresas.
Redução nas vendas
Vendedores dos equipamentos em Itaituba dizem que um “clima de velório” tomou conta da cidade após a intensificação das fiscalizações.
O comércio de máquinas esfriou a partir de 2022, quando o combate ao garimpo se intensificou na região, mas ainda é possível ver algumas escavadeiras enfileiradas em frente às lojas de Itaituba.
“O fluxo está um pouco mais parado, ficou estagnado devido às operações”, disse um funcionário de uma loja de locação de equipamentos que não quis se identificar.
O prefeito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB), estima que as lojas estão vendendo 30% do que costumavam comercializar. “Queimaram muitas coisas [retroescavadeiras], mas hoje já diminuiu a queimada porque eles [garimpeiros] estão procurando trabalhar direito ou estão parando”, ressaltou.
“Na época de garimpo [com menos apreensões] tinha gente que comprava duas máquinas de uma vez”, lembrou um vendedor. Funcionários ouvidos pela Repórter Brasil contaram que era difícil conseguir uma máquina para pronta entrega: “a escavadeira chegava da fábrica já reservada, nem parava na loja”.
“Isso porque a produção de ouro ilegal não parou”, alertou uma fonte que pediu para não ser identificada. Para Vasconcelos, do ICMBio, “se ficar um tempo sem fiscalizar, eles [garimpeiros] voltam com tudo. É um comércio muito vantajoso”.
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Por Isabela Harari | Repórter Brasil
Data original de publicação: 08/07/2024