Vida além do trabalho: o que esperar agora
Exame do vendaval provocado por uma pauta inesperada, mas muito sensível e popular. Pressionada, a direita divide-se. Surge uma brecha, em cenário desfavorável. Mas os sindicatos e a esquerda hesitam. Como avançar?
por Maria J. Pereira, Eduardo R. Pereira e Mateus dos Santos
Em consonância com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais sem redução salarial, de autoria da deputada federal Erika Hilton (PSOL), diversas organizações dos movimentos sindical, popular e estudantil realizaram manifestações em dezenas de cidades na tarde do feriado nacional de Proclamação da República, dia 15 de novembro, pelo fim da chamada “escala 6×1”. As manifestações de rua levantaram as pautas da precarização do trabalho e do direito ao tempo de descanso e lazer.
As manifestações em torno do fim da escala 6×1 chamam atenção por diversos fatores. Em primeiro lugar, destacam-se o apelo social e o conteúdo desta pauta na conjuntura atual. As manifestações de dimensão nacional ocorreram justamente no terceiro governo de Lula da Silva (PT), que é notavelmente mais favorável à ação coletiva e à conquista de novos direitos – ao contrário de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), que atacaram frontalmente a legislação social e trabalhista.
No entanto, ainda que o contexto apresente possibilidades políticas e econômicas de atuação, há certa continuidade na desmobilização dos trabalhadores. À título de exemplo, o balanço de greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) demonstra que, em relação à 2022, houve redução do número de greves em 2023, primeiro ano do governo Lula, tendência que permanece até o final de 2024.
Em segundo lugar, observa-se que, embora a redução das jornadas de trabalho seja uma pauta histórica do movimento sindical, ela ressurge a partir das reivindicações do movimento Vida Além do Trabalho (VAT) — que se destacou nas redes sociais durante o último período eleitoral no Rio de Janeiro — e das discussões provocadas no interior do Congresso Nacional por uma parlamentar que, embora tenha a defesa dos trabalhadores e das trabalhadoras em seu histórico de atuação, não tem relação direta com o sindicalismo. Até então, o sindicalismo brasileiro não apresentava a redução da jornada de trabalho como pauta central em diálogos junto ao governo federal, em mecanismos tripartites criados recentemente, e tampouco como bandeira de luta para a atual conjuntura.
Em terceiro lugar, tem-se o fato de o sindicalismo, a partir da cúpula — isto é, das centrais sindicais —, se posicionou de maneira dúbia. Em carta conjunta assinada pelas direções, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical (FS), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) se posicionaram favoráveis às mobilizações de rua, mas não apresentaram uma defesa explícita do projeto em discussão, mencionando vagamente o histórico da luta sindical brasileira pela “redução gradual, viável, respeitando os acordos em cada categoria e que esteja em consonância com um projeto de desenvolvimento com justiça social”.
Em nota própria, a CUT não se posiciona sobre a PEC, mas aponta que levaria a pauta da redução da jornada de trabalho ao encontro dos líderes nacionais do G20, realizado no Rio de Janeiro. Já o presidente da FS, também em nota própria, critica a PEC por aquilo que chama de “ausência de proposições concretas” e aponta que a redução da jornada de trabalho é uma proposta necessária, embora não faça proposições concretas sobre o tema. Também nesse sentido, em entrevista à CNN Brasil, uma liderança histórica da FS diz temer os impactos da PEC. Na mesma matéria, o presidente da UGT diz ser favorável ao conteúdo do projeto.
Em quarto lugar, ressalta-se que a pauta do trabalho foi e está sendo reivindicada num contexto em que se debate o seu abandono nas plataformas políticas e eleitorais alinhadas à defesa da democracia. Diante da última eleição nos Estados Unidos, por exemplo, muito se discutiu na mídia e no campo acadêmico sobre a ausência de propostas relacionadas ao trabalho por parte dos democratas, seja no âmbito da geração de emprego ou do acesso a direitos. No caso do Brasil, retomar as discussões sobre a jornada de trabalho pode fortalecer o debate sobre a garantia de outros direitos sociais, como o lazer, o acesso à cidade, a cultura, a educação, a qualificação profissional etc. Exemplos de esforços nesse sentido são as leis de passe livre e a Política Nacional de Cuidados, que podem e devem estar articulados à regulamentação da jornada de trabalho.
No município de Campinas (SP), que acompanhamos mais de perto, era notável que, em meio às lojas abertas no feriado, vendedores, estoquistas e atendentes se enfileiravam nas portas dos estabelecimentos comerciais enquanto a manifestação de rua passava, demonstrando apoio e reproduzindo as palavras de ordem que eram ecoadas nas ruas, como: “trabalhar menos e viver mais: quatro por três e trinta horas semanais” ou “trabalhador, preste atenção, a jornada 6 por 1 só é boa pro patrão”.
A manifestação em Campinas foi realizada na rua 13 de Maio, uma importante via comercial que, mesmo aos finais de semana e feriados, costuma ter pessoas trabalhando, consumindo ou passeando. Notamos que a concentração de centenas de manifestantes foi mediana para os parâmetros de outras manifestações que já ocorreram na cidade, elemento importante que precisa ser avaliado tanto pelas organizações que constroem o ato, quanto por análises futuras.
Neste sentido, em quinto lugar, tem-se um tensionamento criado no interior da própria direita. Muitos parlamentares têm sido pressionados para assinarem a favor da PEC, causando fissuras nos partidos de direita, grande parte deles situada na oposição ao governo federal. Até a redação deste texto, a PEC foi assinada por 16 parlamentares, dos 44, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB); dois, dos 14, do Podemos; 32, dos 59, do União Brasil; 14, dos 50, do Partido Progressista (PP); 13, dos 14, dos Republicanos; e 5, dos 93, do Partido Liberal (PL) de Bolsonaro. A divisão da direita nos interessa, uma vez que as organizações de esquerda e o campo progressista podem atuar com maior força diante desta contradição. O atual contexto não será revertido somente com a discussão, mobilização e mesmo uma possível aprovação da PEC — que, caso ocorra, poderá apresentar uma versão final rebaixada se comparada à atual proposição, tendo em vista tensionamentos e divergências entre Executivo e Legislativo.
Interessante destacar que pudemos apreender essa tensão no grupo de WhatsApp criado para planejar as manifestações em Campinas. O grupo tem mais de 680 pessoas que se organizaram antes, durante e depois do dia 15. Antes das manifestações foram divulgados o cancioneiro com as músicas que seriam cantadas durante o ato, os pontos de encontro, algumas recomendações de segurança e comunicação etc. Uma das principais pautas, senão a mais central, foi o esforço de um grupo de manifestantes de convencer o coletivo a cobrar os vereadores eleitos na cidade sobre seus posicionamentos acerca do fim da escala 6×1. Os integrantes do grupo enviaram mensagens para as contas no Instagram e no WhatsApp de diversos vereadores eleitos, e criticaram muito aqueles que não estavam se posicionando de forma favorável ao fim da escala.
Além disso, os integrantes do grupo conversaram sobre pautas que classificaram como “de esquerda”, dentre elas a especulação imobiliária na cidade. Há, portanto, a possibilidade de que outras pautas ganhem destaque localmente a partir do movimento pelo fim da escala 6×1, dentre elas a questão da moradia, mas não apenas. Houve também a menção a organizações como os sindicatos, mas não no sentido de atestar a presença deles, e sim como lembrança de cobrar a atuação dessas organizações. Uma pessoa integrante do grupo disse: “Temos que exigir das esquerdas através de seus partidos, sindicatos e movimentos sociais, que façam a organização e mobilização dos trabalhadores e precarizados em geral, a luta de conquista dessa pauta”. O foco em “trabalhadores e precarizados em geral” chama atenção, especialmente se considerarmos as críticas ao sindicalismo tradicional, que por vezes se limita a atuação em prol de determinadas categorias, ausentando-se de um esforço de representação mais geral dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Em sexto e último lugar, ressalta-se a ida da esquerda às ruas — ainda é cedo para dizer “retomada”. Desde o golpe de 2016 e de retrocessos que vieram logo em seguida, como a Reforma Trabalhista, muito tem sido falado sobre a necessidade de a esquerda estar presente nas ruas disputando “corações e mentes” da classe trabalhadora. A disseminação do discurso neoliberal e individualista do chamado “empreendedorismo” nas classes trabalhadoras, bem como o da austeridade fiscal por parte das entidades patronais, se chocam com a contradição real vivenciada pelas classes trabalhadoras. O imbricamento entre ideologia neofascista e neoliberal encontrou terreno fértil para prosperar neste solo, mas não é capaz de apresentar alternativas ao problema das jornadas extensivas e do avanço da precarização social do trabalho. O espraiamento da pauta do fim da escala 6×1 demonstra justamente um elemento possível de desgaste do projeto neoliberal.
Entretanto, é preciso ter atenção nas análises e expectativas. No grupo de WhatsApp que observamos, falou-se que com “os 20 centavos foi assim”, fazendo uma clara referência às manifestações das Jornadas de 2013. Ainda é cedo para dizer que o movimento é grande e forte, e tampouco que é pequeno ou fraco. Os desdobramentos em torno da PEC, nas ruas e no parlamento, darão as pistas do apoio popular à pauta, bem como de sua capacidade de pressão. Ademais, ainda há muito a se compreender sobre esses atos, tal como o perfil daqueles e daquelas que participaram e, não menos importante, dos e das que organizaram. No mesmo sentido, deve-se ter atenção ao jogo parlamentar e partidário, ao posicionamento das centrais e sindicatos e mesmo das organizações representativas do patronato.
Notícias mais atualizadas, até o dia 17 de novembro, apontam que dos 20 partidos com representação na Câmara dos Deputados, 19 têm parlamentares que apoiam o texto, que já conta com 231 assinaturas — número suficiente para dar início à tramitação. Até o momento, o presidente da República ainda não se manifestou diretamente sobre a PEC e apenas mencionou no encontro do G20, um dia após as mobilizações de rua, que os países participantes do grupo deveriam debater formas de “promover jornadas de trabalho mais equilibradas”.
Fonte: Outras Palavras
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Publicado 21/11/2024 às 16:27 – Atualizado 21/11/2024 às 16:29