VIOLÊNCIAS NO BRASIL

TATIANE VALÉRIA CARDOSO DOS SANTOS, THIAGO DE OLIVEIRA MACHADO, MARCIO DE SOUZA E INEZ STAMPA (ORG.)

PREFÁCIO POR VALERIA FORTI
Não obstante o “peso” intrínseco à responsabilidade decorrente do
aceite ao convite para prefaciar este livro do tipo coletânea, o qual,
indubitavelmente, chegará ao público enriquecendo o pensamento
crítico nas ciências sociais e humanas, cabe-me evidenciar, aqui, que
ora a minha maior emoção é o profundo agradecimento e a imensa
alegria diante desse convite. Até porque se trata de uma publicação
que evidencia a grandeza intelectual e o decorrente compromisso
profissional de tantos/as ex-alunos/as e/ou colegas, além de, simulta-
neamente, confirmar a significância que pode ser atribuída ao ensino
institucionalizado como um importante meio para a captação crítica
da realidade social e, portanto, um possível vetor na construção de
uma forma de sociabilidade cuja qualidade será distinta da que expe-
rimentamos, uma vez que fundamentada em valores verdadeira-
mente humanizantes e democráticos, em prol da igualdade social e,
conseguintemente, distante dos enormes problemas sociais abor-
dados em diversos capítulos deste livro.
As substanciais argumentações e conclusões dos capítulos da
presente coletânea: “Violências no Brasil”, que é fruto de parce-
rias interinstitucionais — UERJ, PUC-Rio, Fiocruz, TJ/RJ, UFF — e
cuidadosamente organizada por Thiago Machado, Tatiane Valéria
dos Santos, Márcio de Souza e Inez Stampa, relevam a fecundidade
das análises acadêmicas ofertadas pelos seus autores, intelectuais
críticos e comprometidos com a alteração da complexa realidade de
um país como o nosso, de economia periférica e dependente, que se
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voltam à pesquisa visando não apenas ao conhecimento dessa reali-
dade, mas, por meio disso, à contribuição profissional em prol das
reais necessidades sociais, ou seja, buscam contribuir para alter-
nativas profissionais competentes em favor da alteração do que se
mostra necessário, inclusive e especialmente, procurando qualificar
o campo das políticas sociais brasileiras. Portanto, um compromisso
cuja ousadia e relevância são essenciais, particularmente na atuali-
dade capitalista, em que o neoliberalismo e o conservadorismo moral
são ingredientes constitutivos do recrudescimento da exploração
da força de trabalho e alicerçam o avanço da extrema-direita — do
neofascismo — em diferentes cantos do mundo, inclusive no Brasil,
tradicionalmente um país já tão marcado por uma sociabilidade cujo
alicerce do conservadorismo moral viabilizou as violações à classe
trabalhadora, especialmente aos seus segmentos mais pauperizados.
A esse respeito, é oportuno mencionar o alarmante número de
cidadãos brasileiros sem habitação ou sem residência digna e até
sem o mínimo necessário à alimentação saudável, ou seja, sem as
condições mais primárias de sobrevivência: alimentação e abrigo.
Segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), divul-
gada em 7 de agosto de 2024, a população em situação de rua cresceu
38%, entre 2019 e 2022, atingindo 281.472 pessoas. Ao que se acres-
centa que, na análise do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE),
entre 2012 e 2022, o crescimento desse segmento populacional foi
de 211%, tendo a população brasileira apenas crescido 11% entre o
período de 2011 a 2022 (IPEA, 2022).
Em face do exposto, lembremos que, se arrefecidos, não foram
transpostos os danos decorrentes da tragédia sanitária sem prece-
dentes no Brasil, pavimentada por uma retórica negacionista e fomen-
tadora do ódio. Um período em que milhares de vidas foram ceifadas
e cujas inúmeras implicações em curso ainda são notáveis. Pode ser
afirmado que nesse período nos deparamos com um verdadeiro estí-
mulo ao anti-intelectualismo — ao culto do vulgar, do irracionalismo
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e do senso comum —, o que, além de negar a realidade, foi capaz de
suscitar em muitos uma espécie de “crença cega” em desvalores,
ocasionando um enorme retrocesso civilizatório, que intentou não
negligenciar nesse processo nem os mais recônditos espaços da vida
em sociedade, uma espécie de corrosão do que havíamos arduamente
conquistado de mais humanizante em nossas relações sociais. Quanto
a isso, Duarte argumenta que:
É amplamente reconhecido o fenômeno do avanço político
ideológico da direita em muitos países nas últimas décadas. No
Brasil esse fenômeno tem se apresentado de muitas formas,
das quais destaco uma que tenho chamado de obscurantismo
beligerante. Trata-se da difusão de uma atitude de ataque ao
conhecimento e à razão, de cultivo de atitudes fortemente
agressivas contra tudo aquilo que possa ser considerado amea-
çador para posições ideológicas conservadoras e preconcei-
tuosas. Essa atitude vai além da defesa de posições de direita,
caracterizando-se pela disseminação de um ambiente de hosti-
lidade verbal e física a qualquer ideia ou comportamento consi-
derados ‘esquerdizantes’, ‘vermelhos’ ou ‘imorais’ (Duarte,
2018, p. 139).
Ou seja, referimo-nos a um período que desnudou e aprofundou
nossas mazelas sociais; escancarou, inclusive, o aludido arraigado
conservadorismo moral implantado e semeado em significativo
contingente do nosso povo. Conservadorismo esse que, aliado aos
preceitos neoliberais, vem servindo à efetivação ampliada de inúmeras
violências em terras brasileiras, o que, sem embargo, pode ser consta-
tado se apenas nos voltarmos aos números de feminicídios e de mortes
de jovens residentes na metrópole do Rio de Janeiro, especialmente
nas favelas cariocas. Conforme pesquisa de Bueno et al. (2024), publi-
cada em 7 de março de 2024 no Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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(FBSP), entre 2015 e 2023, 10,6 mil mulheres foram vítimas de femi-
nicídio e, segundo dados noticiados pelo Universo Online (Uol), em
referência ao Instituto Fogo Cruzado, a região metropolitana do Rio
de Janeiro registrou ao menos 601 crianças e adolescentes baleados
nos últimos sete anos. Desse total, 286 foram atingidos em ações poli-
ciais — o que representa 47,5% (Perez; Neves, 2023).
Não é difícil captarmos que o capitalismo, em seu “triunfo”
mundial, conjugando relações internacionais e internas, vem defi-
nindo não apenas o nosso campo econômico, mas as distintas dimen-
sões da nossa vida social. Dessa maneira, a subsunção do trabalho
à lógica da produção capitalista — um tipo de produção em que o
trabalho incorpora forma abstrata, pois capturado para a finalidade
precípua de lucro —, ao lado da ampliação do pauperismo da classe
trabalhadora, assegura ao capital financeiro o comando da divisão e
do destino da riqueza social. A nossa formação social é regida pela lei
geral da acumulação do capital. Conseguintemente, uma formação
social em que a riqueza socialmente produzida é monopolizada por
uma das suas classes fundamentais, de maneira conexa com a condição
de pauperismo da outra: a produtora da riqueza social. Uma realidade
que impõe uma lógica que avilta as condições de trabalho e da vida
em sociedade, uma vez que tem a inerência da desigualdade social.
Todavia, o cenário atual constitui um processo que vem recrudes-
cendo as contradições daí decorrentes. A profunda crise capitalista
em curso vem se manifestando em graves óbices na vida social da
maior parte dos brasileiros. São evidentes os efeitos do declínio de
importantes índices econômicos, da informalização e informatização
do trabalho e da desproteção social em geral, o que viola as condi-
ções de trabalho e traz decorrências severas à vida dos trabalhadores,
tais como a insegurança alimentar, o desabrigo e, pela ausência de
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alternativas, até a busca de sobrevivência por meios ilícitos1. Enfim,
considerando o significado dessa atividade na constituição e confor-
mação do mundo humano, podem ser observadas sérias repercus-
sões no processo de formação do gênero humano.
A esse respeito, cabe-nos apreciar que:
As novas relações flexíveis de trabalho promovem mudanças
significativas no metabolismo social do trabalho, tendo em
vista que alteram a relação ‘tempo de vida/tempo de trabalho’ e
alteram os espectros da sociabilidade e auto-referência pessoal,
elementos compositivos essenciais do processo de formação do
sujeito humano-genérico. São as relações flexíveis do trabalho
que instauram a nova condição salarial que põem novas deter-
minações no processo de precarização do homem que trabalha
(Alves, 2011, p. 8).
Dessa maneira, entre os distintos horizontes que podemos
vislumbrar, isso até nos leva à hipótese de um futuro muito sombrio,
pois, por assim dizer, “submetido à mercadoria”. Uma realidade em
que o “sujeito”, em última instância, é o mercado. Daí o porquê da
imprescindibilidade da pesquisa e das consequentes formulações
críticas que pavimentem a práxis e um trabalho profissional compro-
metidos com o “novo”, que contribua para a construção de uma
organização social diferente. Portanto, uma sociedade em que não
mais seja proeminente a racionalidade que, em prol da valorização
do capital, minimize a proteção social aos trabalhadores, degrade o
1 A esse respeito consultar: forti, Valeria; menezes, Juliana; menezes, André.
Trabalho e reprodução social no contexto (ultra)neoliberal: reflexões sobre
condições de vida e ilicitude do comércio das drogas em terras brasileiras. In:
barbosa, Rosangela Nair de C.; almeida, Ney Luiz T. de. (Org.). Labirintos da
precarização do trabalho e das condições de vida. Curitiba: VRV, 2023, p. 317-342.
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trabalho e banalize valores caros à vida social. Uma sociedade em
que não mais se identifiquem como vítimas nem se protejam apenas
as pessoas comumente pertencentes às suas camadas privilegiadas,
que sofrem atentados em suas vidas privadas, especialmente em seus
patrimônios. Diferentemente disso, que sejam superadas as diversas
violações aos direitos humanos, tais como a exploração do trabalho,
o desemprego, o subemprego, a desregulamentação do trabalho, os
baixos salários, as violações decorrentes dos crimes financeiros e da
repressão policial, o desrespeito aos povos originários, à criança, ao
jovem, ao idoso, à raça e etnia, à diversidade de gênero, à possibili-
dade de ter ou não alguma crença religiosa, enfim, em que seja consi-
derada impertinência e, em decorrência, haja a busca de meios para a
superação de tudo que avilte a nossa condição humana, a exemplo de
questões abordadas e problematizadas nos capítulos desta coletânea.

Clique aqui e acesse o pdf do livro.

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