O trabalho precário já invade o mundo do dinheiro
Por Gustavo Machado Cavarzan | Outras Palavras
“O mercado de trabalho no setor financeiro no Brasil é tradicionalmente um dos mais formalizados e grande parte dos/as trabalhadores/as está inserida na condição de empregados/as com carteira de trabalho assinada. Entretanto, em anos recentes é possível perceber uma maior fragmentação em suas formas de inserção. Entre 2012 e 2019, o número de empregados/as com carteira assinada no setor financeiro teve queda de 6%, passando de 969 mil para 907 mil. Ao mesmo tempo, o número de trabalhadores/as por conta própria apresentou elevação de 64%, saindo de 70 mil pessoas para 115 mil, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-C).
Tal fenômeno está vinculado a uma intensa reestruturação na forma de organização das empresas financeiras ancorada em alguns pilares: inovações tecnológicas, flexibilização das regras trabalhistas, regulamentações do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), além da própria conjuntura econômica e política do país e o papel que as instituições financeiras ocupam em tal conjuntura.
Historicamente, a reestruturação produtiva das empresas financeiras no Brasil ocorreu ancorada, principalmente, em ondas de inovação tecnológica cujo movimento geral parte, em suas fases iniciais, de transformações internas nas rotinas dos bancos. Mais recentemente, entretanto, têm sua dinâmica ditada pela externalização de etapas dessas rotinas para fora dos bancos, seja por meio da digitalização das transações financeiras, seja pela distribuição de produtos e serviços financeiros em estruturas externas aos bancos, como correspondentes bancários desde os anos 2000 e, mais recentemente, corretoras de valores, Fintechs e plataformas de serviços financeiros.1 É no bojo desse movimento que começa a tomar forma um ensaio de plataformização do trabalho no setor, tendência que explica, em parte, o aumento do número de trabalhadores/as por conta própria.
Inicialmente vale destacar a figura do Agente Autônomo de Investimento (AAI), profissional cuja atuação é regulamentada pela Instrução nº 497 da CVM. São trabalhadores/as autônomos ou “pjotizados” que atuam como prepostos de corretoras de títulos e valores mobiliário – cujo principal exemplo é a XP Investimentos – prospectando clientes e fornecendo informações sobre os produtos e serviços financeiros ofertados pelas corretoras. A regulamentação define que os AAIs devem trabalhar em regime de exclusividade, o que configura alto grau de subordinação desses trabalhadores/as, ainda que não sejam considerados empregados das corretoras.
A forma de atuação das corretoras – em geral por meio de atendimento digital em plataformas – mostra que, assim como ocorre em outros setores da economia, o modelo de empresas-plataforma chega ao setor financeiro, impulsionado por marcos regulatórios favoráveis e pela digitalização do setor. Como consequência, observa-se a redução do emprego na categoria bancária e a busca, por ex-bancários, de alternativas de inserção no mercado, mesmo que seja como autônomos: entre 2016 e 2020 o número de pessoas atuando como AAIs saiu de 6 mil para 14 mil, de acordo com o Boletim de Mercado da CVM.
Também é importante destacar a proliferação das Fintechs, empresasque operam com alto conteúdo tecnológico e exclusivamente por meio de plataformas digitais focalizadas em segmentos específicos dos serviços financeiros. “Fintech” não é uma classificação oficial de atividade econômica, mas um termo de mercado que une as palavras “finanças” e “tecnologia”. Estas empresas, em sua grande maioria, não são oficialmente classificadas como empresas do setor financeiro, estando muitas vezes inseridas no setor de tecnologia. Dessa forma, torna-se tarefa difícil mapear os trabalhadores/as a elas vinculados, bem como suas condições de trabalho. De acordo com o relatório “Distrito Fintech Report” 2020, foram mapeadas 742 empresas no Brasil atuando como Fintechs, que abrangiam cerca de 40 mil trabalhadores.
Assim, para além de informações quantitativas, não há dados acerca da forma de inserção desses trabalhadores/as, seus padrões de jornada ou remuneração. Entretanto, o modelo de funcionamento das empresas-plataforma indica que parte dessa força de trabalho atua como autônoma ou microempreendedora individual, como no caso da empresa “Franq”.
Em seu site, a Franq se define como “uma plataforma que fornece aos nossos parceiros, os Personal Bankers, as ferramentas para a divulgação desses produtos e serviços.” E acrescenta que Personal Bankers são “profissionais financeiros que possuem vasta experiência, mas que perdem espaço em um mercado que reduz agências e atendimento humano em função da chegada do atendimento virtual.”
Sobre o vínculo com esses profissionais, a Franq relata: “O Personal Banker é um cliente da Franq e contrata nossas plataformas por meio de uma licença de uso. Para isso, o ideal é que o Personal Banker tenha uma Pessoa Jurídica e seja empresa ou Microempreendedor Individual (MEI)”. Informa, ainda, que mais de 2.500 ex-bancários estão trabalhando em tais condições.
No entanto, a Franq – assim como outras plataformas similares – não é formalmente enquadrada como instituição financeira e, por isso, não tem autorização do Banco Central para ofertar produtos financeiros, como crédito, seguros ou investimentos, por exemplo. Sendo assim, em última análise trata-se apenas de um canal de distribuição externo de produtos dos tradicionais bancos atuantes no Brasil.
Se antes o banco distribuía estes produtos em sua agência bancária por meio de um contratado como assalariado formal, agora passa a distribuí-los, em parte, por meio de parcerias com empresas-plataformas que utilizam a força de trabalho de trabalhadores/as “pjotizados”. Muitas vezes, trata-se de trabalhador/a que antes estava formalmente vinculado ao banco e que, após perder o emprego, passa a operar como autônomo ou PJ vendendo, basicamente, os mesmos produtos.
Ao que tudo indica, parte significativa dos segmentos de trabalhadores/as que vem se expandindo no ramo financeiro fora do assalariamento formal está, em alguma medida, inserida nas cadeias de valor dos grandes bancos, sendo responsável por parcelas da geração de riqueza para estes conglomerados financeiros.
Entretanto, como em outros setores da economia, essas empresas se apresentam como simples plataformas tecnológicas que conectam profissionais com experiência no setor financeiro e clientes em busca de produtos financeiros e, desta forma, não mantêm relação de emprego com os/as trabalhadores/as, considerados por elas como “clientes”.
O conteúdo do trabalho, as rotinas, as ferramentas utilizadas, os conhecimentos necessários são muito similares entre os/as trabalhadores/as autônomos/pejotizados e os bancários formais. No entanto, as condições de trabalho são substancialmente diferentes. Enquanto a categoria bancária tem as proteções garantidas não só pela CLT, mas também por uma Convenção Coletiva de Trabalho Nacional, que é referência para a classe trabalhadora brasileira, os segmentos inseridos dentro dos ensaios de plataformização não estão, sequer, cobertos pelos direitos associados à condição de assalariado formal. Muito menos fazem jus às cláusulas econômicas e sociais garantidas anualmente pela organização sindical da categoria bancária, ainda que distribuam produtos e gerem valor na cadeia de atuação dos grandes bancos atuantes no Brasil.
Mesmo que o número de pessoas atuando fora do assalariamento formal ainda represente uma minoria dentro do setor financeiro, é de suma importância analisar o fenômeno, na medida em que o crescimento do modelo de empresas-plataforma parece ser uma tendência geral e, igualmente, no setor financeiro.
Nesse sentido, não é de se descartar a hipótese de que o trabalho autônomo ou “pjotizado” passe a ganhar cada vez mais relevância no setor através da adoção do modelo de negócios típico das plataformas – não só no segmento de investimentos, mas também no crédito, conta-corrente, pagamentos, cartões, seguros. As corretoras de valores, Fintechs e plataformas de serviços financeiros, portanto, configuram-se como a porta de entrada, ou como um laboratório de experimentação, de um processo de plataformização do trabalho no setor financeiro brasileiro, desestruturando um segmento de trabalhadores/as historicamente formalizado e organizado, com impactos nefastos para suas condições de trabalho e sua organização coletiva.”
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 09/12/2021