Com a palavra, os escravistas!

Por Laís Maranhão Santos Mendonça[1]Raissa Roussenq Alves[2]Renata Queiroz Dutra[3]


[1] Analista de Políticas Sociais. Doutoranda em Políticas Públicas na Escola Nacional de Administração Pública – Enap.

[2] Doutoranda em Direito na Universidade de Brasília.

[3] Professora Adjunta de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília. Presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET.

A repercussão midiática do resgate de mais de 200 trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravos em cadeias produtivas de luxuosas vinícolas brasileiras garantiu o horror público da semana passada. Sim, os bons vinhos e champanhas brasileiros são produzidos sob violência, humilhação e condições degradantes. Mais: como parte de um script do trabalho análogo ao escravo no Brasil, tais práticas têm por alvo a trabalhadores retirados de regiões diversas do país, afastados de seus laços comunitários e familiares, e tornados vulneráveis, em diversas dimensões, ao empregador que os transportou. Também sem destoar nem dos demais casos de escravidão contemporânea, o caso em tela desdobra-se como continuum histórico da escravidão colonial: são homens negros, nordestinos e pobres aqueles que têm sua humanidade negada pela exploração máxima do trabalho[1].

Mas estamos falando da elite brasileira e, assim sendo, o horror não tem limites. O Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves vem a público para externar, em nota, o entendimento de que não tem responsabilidade sobre o ocorrido e, nesse ínterim, acresce ao cenário dantesco duas sínteses da relação do seu setor produtivo com o fato: primeiro, que se trata de problema relacionado às cadeias de terceirização, pelas quais os produtores não poderiam ser responsabilizados. Segundo, que essa é a consequência da escassez de mão de obra decorrente da recusa dos trabalhadores do sul em prestar-lhe serviços, fato logicamente decorrente dos programas “assistencialistas” do governo que em nada contribuiriam para o desenvolvimento do país.

Nessa peça, explicitam-se, a um só tempo, duas verdades que, por algum tempo, geraram constrangimento no debate público, mas que cada vez mais perdem o verniz da hipocrisia: 1) o papel da terceirização no encobrimento e na desresponsabilização dos elos mais fortes das cadeias produtivas pelas violações de direitos por meio das quais asseguram seus lucros[2]; 2) a demanda da classe proprietária brasileira de que os pobres sejam miseravelmente pobres e desassistidos de qualquer condição de cidadania como o mais potente regulador de mercado de trabalho disponível.

A escravidão nas vinícolas gaúchas escancara, mais uma vez, a mentalidade escravocrata que constituiu o Brasil como nação, e que continua a imperar em muitos setores da sociedade. Em um país forjado pela mão de obra negra escravizada, ainda se acredita que os trabalhadores – em sua maioria negros, assim como a população brasileira –, devem estar disponíveis para qualquer atividade econômica, independentemente da sua vontade, da sua disponibilidade e das condições de trabalho. Não à toa, os direitos sociais no Brasil, especialmente os trabalhistas, são alvos constantes de precarização, como visto com mais intensidade nos últimos anos.

Falas como a do vereador Sandro Fantinel (Patriota) sobre a origem baiana dos resgatados[3] – um estado de população majoritariamente negra e historicamente atrelado ao “mito da preguiça baiana” –, e sua sugestão de que sejam substituídos por trabalhadores argentinos, deixa ainda mais evidente o caráter racial do evento. Não é possível ignorar que as distinções historicamente construídas entre as regiões do país, polarizadas a partir de uma ideia de Norte e Sul, estão atreladas a uma racialização de suas respectivas populações, e que isso tem consequência direta na atribuição e garantia de direitos[4].

A relação que a nota do Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves faz entre a ausência de força de trabalho no mercado de trabalho local e a existência de um suposto “sistema assistencialista” no Brasil, por meio do qual “uma larga parcela da população com plenas condições produtivas” sobreviveria, revela a concepção que a organização de empresários tem sobre as condições às quais devem ser submetidos os trabalhadores brasileiros. A ideia contida nesse trecho da nota é a de que a assistência social, em seus programas e benefícios (em especial os de transferência de renda como o Programa Bolsa Família), ocasiona falta de mão de obra e que este suposto déficit se relaciona diretamente ao resgate de trabalhadores em condições análogas às de escravos. Ou seja, o que se quer dizer, em palavras mais explícitas, é que os trabalhadores aceitariam quaisquer condições de trabalho se não recebessem benefícios sociais do Estado. O argumento se torna ainda mais absurdo quando consideramos que os programas de assistência social, como o Programa Bolsa Família, existem em todo território nacional, inclusive na Bahia.

Apenas a título de informação e, para deixar ainda mais explícito o absurdo dessa relação, o atual programa de transferência de renda brasileiro (substituto do Bolsa Família, que deve ser retomado em breve), chega, em fevereiro de 2023, a 21,8 milhões de famílias, sendo o valor médio recebido por família de R$ 606,91 [5]. Tal valor corresponde à metade de um salário mínimo e é a média paga para as famílias beneficiárias como um todo. Mesmo que apenas uma pessoa da família estivesse empregada e recebesse, como manda a lei, o salário mínimo referente ao ano de 2022 (R$ 1.212,00), a renda da família ainda seria o dobro do recebido, em média, pelas famílias beneficiárias do programa de transferência de renda. E, vale lembrar ainda, que somente têm direito ao recebimento do benefício aquelas famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, ou seja, com renda per capita de até R$ 105,00 ou entre R$ 105,01 e R$ 210,00, respectivamente [6]. Nessas condições, não é difícil imaginar a escolha do trabalhador que se deparasse com a possibilidade de, no mínimo, duplicar a renda de sua família.

Além disso, é falacioso que o Programa Bolsa Família, que foi o programa de transferência de renda nacional do Brasil até outubro de 2021, tenha desestimulado o trabalho. Em primeiro lugar, o Programa tinha mecanismos que garantiam o acesso ao benefício por até 2 anos, caso a renda da família ultrapassasse o limite de elegibilidade ao programa, ou ainda de retorno garantido para quem se desligasse voluntariamente. Os dados da PNAD de 2019 sugerem exatamente o contrário: a maioria dos beneficiários trabalha, sendo que 57% estavam empregados e 13% buscavam emprego; e o Programa não era a principal fonte de renda das famílias já que, para 71% delas, o benefício correspondia a menos de 25% da renda. [7]

Uma das funções de programas de transferência de renda (como o Bolsa Família) é justamente conferir o mínimo de dignidade às famílias para que possam afastar-se, ao menos, de situações de insegurança alimentar. Por outro lado, a ideia de um salário mínimo, como dispõe a própria Constituição Federal, é suprir as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, que, obviamente, não se restringem à alimentação.

Ainda que houvesse relação entre o recebimento de benefícios sociais no Brasil e a ausência de oferta de força de trabalho local, o que , repetimos, é contestado pelos dados, essa circunstância diria  muito mais sobre as condições de trabalho e o salário oferecidos pelas empresas supostamente “reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho” (como referido na nota) do que sobre os trabalhadores que não aceitariam tais condições.

O esforço de confrontar, com números, dados e racionalidade, argumentos sofríveis, que orbitam entre o cinismo, o racismo e o ódio de classe, pode parecer vão, um exercício de dizer o óbvio. Entretanto, em um país em que as elites monopolizam a discussão pública e, cada dia mais, perdem a vergonha de expor seu desprezo pela grande maioria da população, em especial pelas minorias subalternizadas, é preciso dar nome às coisas, denunciar, indignar-se e não permitir que o mal seja banal.

Os argumentos apresentados pelos escravistas de Bento Gonçalves representam grande parte da elite brasileira. Eles são um autorretrato de sua concepção sobre acesso a direitos e cidadania, que, no Brasil, não pode ser dissociada do racismo estrutural, pilar fundante da sociedade brasileira.

Como escravistas que são (e assim devem ser chamados), não permitem esconder como pensam: que compete à parcela (branca) da população a humanidade, enquanto aos demais resta o lugar do outro, cuja negação define e reforça os primeiros, como verdadeiros sujeitos do direito, da riqueza e do poder.


[1] ALVES, Raissa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: trabalho escravo contemporâneo sob a ótica da população negra. Belo Horizonte, Letramento : Casa do Direito, 2019.

[2] Consultar: FILGUEIRAS, Vitor. Terceirização e trabalho escravo: coincidência? Disponível em Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência? (reporterbrasil.org.br)

[3] Disponível em:  https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/02/vereador-gaucho-diz-que-baianos-vivem-na-praia-e-incentiva-contratacao-de-argentinos.ghtml

[4] Exemplo é o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 1.323.708/PA, no qual se discute a “Constitucionalidade da diferenciação das condições de trabalho necessárias à tipificação do trabalho como degradante em razão da realidade local em que realizado e o standard probatório para condenação pelo crime de redução a condição análoga à de escravo”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6163329&numeroProcesso=1323708&classeProcesso=RE&numeroTema=1158

[5] Dados publicados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome em notícia disponível no link: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/programa-de-transferencia-de-renda-do-governo-federal-inicia-pagamentos-de-fevereiro-nesta-segunda-feira .

[6] Informações publicadas no site do referido Ministério no link: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/auxilio-brasil#oque .

[7] Análise constante em artigo disponível no link: https://www.worldbank.org/pt/news/opinion/2021/06/17/estudos-descartam-que-beneficio-social-provoca-efeito-preguica-nos-mais-pobres .

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