Para abrir diálogo com o precariado feliz

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Por Stefano Rota | Outras Palavras

Simonetta, uma motorista da Amazon que contribuiu para a redação de La fabbrica del soggetto. Ilva 1958 – Amazon 2021 [A fábrica do sujeito], deu o seu testemunho em duas apresentações do livro em Gênova, nos meses de julho e novembro de 2023. Sem meias palavras, Simonetta disse basicamente que se sente à vontade na Amazon, que trabalha num ambiente amigável e respeitoso, onde cada um toma em consideração os problemas dos colegas, e onde os padrões de segurança no trabalho são muito elevados.

Desnecessário dizer que essas declarações causaram perplexidade entre os presentes. Pelo menos parte deles esperava uma declaração que fosse crítica às formas de neo-taylorismo digital, o domínio impessoal e onipresente do algoritmo na gestão do trabalho na Amazon. Em outras palavras, a leitura mais comum que encontramos nas revistas e nas publicações que abordam de forma radicalmente crítica a economia das plataformas, as quais subscrevo.

Nada disso. Simonetta é feliz em seu trabalho na Amazon.

Diante da compreensível dificuldade em aceitar o discurso de Simonetta por parte do público que ali se encontrava, tentei refletir sobre a verdade que aquele discurso enuncia, tomando como ponto de partida um filme lançado no ano passado, Nomadland, da realizadora Chloé Zhao.

A desencantada mulher de meia-idade que protagoniza o filme de Zhao vagueia sozinha pelos vastos espaços do Mid West num van, parando para trabalhar nos armazéns da Amazon, mas sempre pronta a partir novamente rumo ao próximo estacionamento, onde encontrará amigos que estão, como ela, perpetuamente em movimento. Não há qualquer tensão ou reivindicação particular: o que a Amazon oferece a Fern, a protagonista do filme, é nem mais nem menos do que ela própria precisa para o tipo de vida – nômade – que escolheu ou foi forçada a escolher.

Onde está, então, este hiato entre a nossa leitura e as vidas de milhões de pessoas que aceitam o emprego na Amazon ou numa das inúmeras plataformas tal como ele é, apesar das tentativas (algumas bem sucedidas, muitas outras não) de introduzir formas de organização sindical de base e autogeridas para negociar um tipo diferente de relação laboral? Antes de tentar dar a minha própria resposta a esta pergunta, gostaria de acrescentar um outro elemento que, espero, facilite a compreensão do que, embora com dúvidas, gostaria de argumentar.

Em 2020, um amigo sindicalista esteve na linha da frente da luta para exigir o reconhecimento dos ciclo-entregadores da Just Eat como trabalhadores salariados. A empresa, aceitando a reivindicação, introduziu também na Itália o modelo Scoober já aplicado em outros países. Desde 2021, os ciclo-entregadores têm um horário de trabalho e um salário fixo com base no que esse modelo prevê. Foi apresentado como um sucesso da luta, uma mudança de direção em um setor, o da economia das plataformas, que necessita de regras claras e justas para os trabalhadores, que impeçam a selva do trabalho por demanda como incentivo à exploração e à autoexploração. 

Os problemas surgiram quando este acordo foi apresentado aos trabalhadores: uma grande parte não ficou nada satisfeita com o resultado, afirmando que preferia muito mais a forma de trabalho anterior. Os que mais se opuseram foram sobretudo os trabalhadores migrantes e os mais jovens.

Aqui chegamos ao ponto de partida do qual gostaria de articular o meu ponto de vista. A Amazon, mas mais geralmente a economia das plataformas, parece enviar implicitamente uma mensagem a todos os trabalhadores atuais e potenciais (e não apenas aos trabalhadores, na verdade): “esqueçam os antigos padrões, as hierarquias, os procedimentos, os contratos, as carreiras. Aqui, o trabalho é smart”. A experiência de trabalho anterior não importa (é melhor não ter nenhuma, como afirmam as agências de trabalho temporário), nem a sua origem ou seus planos para o futuro, supondo que você os tenha. A economia das plataformas vive de um presente perpetuamente flexível e competitivo, tudo é decidido na hora, tudo é on-demand (Relatório da OIT). 

Só importa o que é feito, a forma como se faz depende de cada um. Se o armazém fica a dezenas ou centenas de quilômetros de distância e só é acessível de carro e o alojamento é proibitivo, se chove e fazer as entregas de bicicleta se torna problemático e perigoso, se está embaixo no ranking e não consegue encomendas, organize-se, encontre uma solução, a plataforma não é feita para intervir nestas questões. Os “pequenos turcos” de memória benjaminiana são pagos para treinar a plataforma a fazer outra coisa.

Parece-me que aqui está em jogo algo importante. Definiu-se um novo regime de veracidade, com base no qual nos reconhecemos (nos subjetivamos) e produzimos verdades. Que enunciados encontramos neste sistema, para além do descrito? Tentarei identificar alguns. O trabalho e o mundo que o contém são cada vez mais cyber, o trabalho e o jogo aproximam-se até o ponto de se sobreporem, utilizam-se das mesmas ferramentas e a mesma linguagem (gamificação do trabalho). Os velhos esquemas centrados nas relações de mercado de duas faces perdem o seu sentido (two-sided market), somos lançados para a multilateralização (multi-sided economy), somos simultaneamente trabalhadores e consumidores, controlados e controladores, fornecedores e utilizadores de dados. A função do controlador onividente que distribui castigos e méritos com base no seu julgamento inquestionável é despersonalizada. O algoritmo que o substitui não faz juízos de valor, avalia assepticamente. E o faz com base no princípio de que todos controlam cada um, e este, por sua vez, contribui para o controle, punição ou elogio de todos os outros, através de votos, likes, críticas (estamos, portanto, no reino do anopticon descrito por Umberto Eco). 

Se estes enunciados definem, pelo menos parcialmente, a forma como a economia de plataforma torna um modo de trabalho “verdadeiro”, reconhecível, “dizível”, o discurso de Simonetta, tal como o dos riders da Just Eat, torna-se igualmente reconhecível, igualmente verdadeiro, no âmbito da relação sujeito-vida-trabalho que os conota. Entram em jogo as estruturas econômicas, as arquiteturas sociais, institucionais e culturais, as normas, as fronteiras materiais ou imateriais que subdividem os espaços, criando formas de inclusão, exclusão, inclusão por exclusão (De Genova) ou inclusão diferencial (Mezzadra, Neilson). Numa palavra, o dispositivo. Por outro lado, os vivos e as suas existências, os percursos individuais e coletivos, as prioridades, as escolhas, na organização de um tempo de vida e de trabalho que se estrutura sem descontinuidades. “Quando todo o tempo da vida é tempo de produção, quem mede quem?”, perguntava-se Negri, num livro de quarenta anos atrás. As formas de subjetivação são dadas no seio da rede que o dispositivo desdobra, não a precedem, não entram nela já pré-constituídas. O sujeito é, então, uma “função derivada” (Deleuze), define-se num jogo de relações de forças que o veem como um objeto de conhecimento, como um sujeito “identificado” e dizível com base em relações de poder, como um sujeito ético que se forma em relação a si próprio (Foucault). 

É com base nestas relações que se criam as condições de possibilidade para a formulação de discursos sobre como se experimenta uma determinada forma de trabalhar, de viver, de imaginar. São as relações que delineiam os itinerários que cada um de nós seguiu para chegar onde está, aquelas com as quais Stuart Hall nos recorda que devemos “chegar a um acordo”, porque é com base nelas que nos dizemos a nós próprios. 

Por estas razões, vale a pena não seguir o caminho cômodo e bem pavimentado, mas muito curto, que nos faz reduzir a heterogeneidade do “sujeito produtivo das plataformas” a dois conjuntos: os que compreenderam (poucos) e os que ainda não compreenderam (muitos). O segundo conjunto seria então descritível como uma massa de trabalhadores que ainda não atingiu o nível de consciência de classe que os transformará em proletariado, e que assim os colocará inevitavelmente, num futuro próximo, na historicidade do seu destino. 

Um segundo caminho, menos cômodo e certamente mais longo, leva a nos atermos ao que considero um conceito-chave para embarcar numa viagem cognitiva que deve ter a indagação como elemento central. Trata-se de um conceito foucaultiano que Pierre Macherey expõe em O sujeito produtivo: de Foucault a Marx. Falando das “instituições de sujeição” na sociedade industrial, Macherey diz que estas têm, para Foucault, um duplo papel, o da “extração-segregação-exploração e o da inclusão-formação-adaptação”. Para melhor descrever esta passagem, o filósofo retoma as palavras do próprio Foucault: “a primeira função [da subjugação] era subtrair tempo, fazer com que o tempo dos homens, o tempo da sua vida, se transformasse em tempo de trabalho. A segunda função era transformar os corpos dos homens em força de trabalho. A função de transformar os corpos em força de trabalho corresponde à transformação do tempo em tempo de trabalho” (itálico meu).

Uma outra passagem do belo livro de Macherey ajuda a tornar ainda mais nítido o ponto que me parece bastante central. Os itinerários seguidos por cada um de nós têm como referência obrigatória o sistema de normas que os tornou possíveis, visíveis, reconhecíveis. Aí, no desenrolar desses itinerários, cria-se “uma segunda natureza […] que não seria ‘natural’, […] mas produzida, criada, construída do zero […]”. Ao instituir esta segunda natureza, o poder das normas “é conotado pela capacidade exorbitante que tem de produzir aquilo a que se aplica, isto é, os sujeitos produtivos cuja sujeição assume consequentemente a aparência de uma autossujeição”.

Se o tempo total é tempo de trabalho, é porque o corpo autossujeitado é força de trabalho. O sujeito produtivo das plataformas responde plenamente a este padrão. Não é possível desligar a sujeição do trabalhador da segunda natureza do vivo. Por isso, a compreensão das atitudes de trabalho do sujeito produtivo das plataformas só pode ser entendida se for colocada no contexto mais amplo que relaciona o corpo com o tempo, as normas com os valores, a extração com a inclusão.

A centralidade da vida como um continuum produtivo é resumida – mais uma vez por Macherey – num imperativo: não é importante o que você faz, é importante o que você é. O poder das normas confronta-nos sempre com a obrigação de dizer quem somos, o quanto estamos dispostos a permitir que seja extraído das nossas vidas, ou que preço podemos pagar pela nossa inclusão.

A pesquisa operária dos anos 1960 marcou um momento fundamental no processo de desenvolvimento da consciência analítico-política de como as transformações no mundo produtivo e reprodutivo tinham de ser lidas à luz de uma nova “composição de classe”, de uma nova subjetividade, que necessitava de novas chaves de interpretação, de novos instrumentos de investigação. Tornara-se então claro que o novo sujeito da produção, o operário-massa da fábrica fordista, tinha esmagado as formas consolidadas de representação do mundo dominantes até a década anterior, centradas em valores e classificações que o novo modelo social e produtivo, no seio do qual aquele sujeito se impunha, tornara inúteis.

Esse modo de investigação deve ser retomado, revigorado e atualizado, se é verdade que a exploração da força de trabalho baseada no tempo da fábrica assume hoje o traço do extrativismo dos corpos no tempo da vida. É uma mudança que torna a investigação mais complicada, multiplica os espaços onde ela deve ser efetuada, faz explodir os pontos cardeais que permitiram uma navegação heurística no mundo rigidamente estruturado da fábrica e da sociedade fordista. É o que se depreende também dos testemunhos que deram forma e substância a A Fábrica do Sujeito: a distância entre os dois primeiros e o último parece sideral, apesar de apenas 60 anos os separarem.

Para chegar à conclusão deste artigo, tentando não deixar demasiados assuntos por tratar, tento definir a esfera geopolítica e social em que se situa o sujeito produtivo das plataformas. Trata-se do “quarto mundo” de que fala Robert JC Young no seu Postcolonial remains. É um mundo sem fronteiras predefinidas, que se articula ao longo de uma teia de faixas que atravessam os continentes, ligando áreas geograficamente distantes. O que os une é uma forma de “invisibilidade política” dos seus habitantes – muito mais numerosos e articulados do que o conjunto dos trabalhadores das plataformas –, não porque sejam objetivamente invisíveis, mas porque nos recusamos a vê-los, a re-conhecê-los, ou, o que é a mesma coisa, porque pensamos que já sabemos o que há para saber, com as ferramentas de que dispomos. 

Como nos ensinou a pesquisa operária dos anos 1960, corrigir a presbiopia que nos impede de ver o que está demasiado perto significa afiar as ferramentas que utilizamos. Significa devolver à investigação uma função ativista, que é o que, com os nossos meios limitados, nos propusemos promover com aquele produto editorial e que acreditamos que deve expandir-se. Ativismo significa voltarmos a respirar, pois vivemos numa época em que “respirar é tão difícil como conspirar”.

Referências

N. De Genova, Inclusione attraverso l’esclusione, Transglobal, 24.10.2015, https://associazionetransglobal.jimdofree.com/2015/10/24/inclusione-attraverso-l-esclusione/

G. Deleuze, Michel Foucault: As formações históricas, aula 5, N-1 edições e Editora Filosófica Politeia, São Paulo, 2018 https://editorapoliteia.com.br/arquivos/as_formacoes_historicas_5.pdf 

U. Eco, Secondo diario minimo, Bompiani, Milano, 1994

M. Foucault, Do governo dos vivos, WMF Martins Fontes, São Paulo, 2014

International Labour Organization, World Employment and Social Outlook. The role of digital labour platforms in transforming the world of work, Report, 2021 https://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/2021/WCMS_771749/lang–en/index.htm

S. Hall, Politiche del quotidiano, Il Saggiatore, Milano, 2006

P. Macherey, Il soggetto produttivo, da Foucault a Marx, Ombre Corte, Verona, 2013

S. Mezzadra, B. Neilson, Border as a Method, or the Multiplication of Labor, Duke U. P., Durham, 2013

A. Negri, Macchina tempo. Rompicapi, liberazione, costituzione, Feltrinelli, Milano, 1982

R.J.C. Young, Postcolonial remains, New Literary History n. 43, 2012

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Fonte: Stefano Rota | Outras Palavras

Data original de publicação: 21 de dez. de 2023

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