Greve das federais reflete década de desfinanciamento e demandas reprimidas
Por Ligia Guimarães | G1
O mês de março foi simbólico para alunos, professores e funcionários do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), instituição federal localizada no município de São Francisco do Conde, na região do Recôncavo Baiano (BA).
Uma cerimônia no pátio marcou a retomada das obras das salas de aulas do campus, iniciadas em 2014 e jamais terminadas por falta de recursos. “Faz dez anos que funcionamos em locais cedidos pela prefeitura”, explica a professora Clarisse Goulart Paradis, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-presidente do Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia (Apub).
De lá para cá, embora a universidade tenha se tornado uma comunidade acadêmica vibrante de alunos negros, quilombolas e africanos dos países de língua portuguesa, com cursos de graduação e pós-graduação, os reflexos da falta de recursos são visíveis.
“Não temos sala de aulas para nossos cursos de graduação e pós-graduação; muito antes da pandemia começamos a fazer um esquema híbrido e de rodízio de salas. Temos problemas muito concretos de falta de transporte público, falta de residência universitária, sendo que presença da universidade pressiona o preço dos imóveis”, diz Paradis, dando exemplos do que ela chama de cadeia de efeitos do desfinanciamento.
A retomada das obras dos dois prédios, que terão salas de aula e laboratórios previstos para ficarem prontos no ano que vem, é um dos primeiros sinais positivos de investimento após anos de retração. Entre 2014 e 2022, o valor investido por estudante pelo governo federal na Unilab caiu em 15,8%, de acordo com levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
A paralisação de professores e funcionários que acontece em ao menos 29 instituições federais de ensino superior desde 15 de abril, reflete a expectativa do segmento por uma recuperação de orçamento do setor, que viveu forte expansão nos dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva, seguida de redução orçamentária prolongada, especialmente nas gestões dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. O levantamento do Dieese aponta que, entre 2010 e 2022, o valor empenhado por estudante das universidades federais – ou seja, os recursos reservados pela União para investimento – encolheu em 68,7%.
Os relatos entre professores, funcionários e alunos apontam um acúmulo de demandas: alunos pagando insumos de laboratório ou interrompendo pesquisas, técnicos substituídos por trabalho terceirizado, falta de residência estudantil e políticas de assistência que integravam a política de expansão das universidades para além dos grandes centros.
Expansão interrompida
Nascida no auge do Reuni, programa do governo Lula em que o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público e abrir oportunidades a grupos excluídos, como quilombolas e indígenas, a Unilab é uma das 69 instituições federais que amargaram uma década de investimentos decrescentes, segundo o Dieese. A partir de 2003, foram criadas 14 universidades federais, dez delas voltadas para a interiorização do ensino superior público.
Em São Paulo, na Universidade Federal do ABC (UFABC), o valor real investido por estudante caiu 28,8% entre 2018 e 2022, no governo do presidente Jair Bolsonaro; já no período entre 2010 e 2021, a queda total foi de 72,7%.
O número de alunos, aulas e serviços prestados, no entanto, não parou de crescer. Entre 2010 e 2021, a relação de alunos matriculados na UFABC por docente subiu de 10,2 para 21; em relação aos funcionários, saltou de 10,8 para 22.
Em assembleia pública no dia 16 de abril, o professor Daniel Pansarelli, da Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional da UFABC disse que os custos da universidade dispararam em 2023, com a volta do funcionamento presencial e o reajuste das bolsas. A expectativa era de que o novo governo Lula retomasse o aumento das verbas, o que não aconteceu. “Recebemos para 2024 menos que o valor de 2023. A Lei Orçamentária Anual de 2024 não corrigiu as perdas que as universidades tiveram ao longo dos anos”, diz Pansarelli.
Nem mesmo universidades tradicionais e consolidadas como a Universidade de Brasília (UnB) escaparam dos cortes. Entre 2018 e 2021, o valor real investido por estudante na UnB caiu 18,8%, segundo o Dieese. Em valores nominais, o orçamento total de investimento da UnB apresentou redução de 40%, passando de R$ 34,2 milhões, em 2023, para R$ 20,5 milhões, em 2024, conforme divulgou a universidade em fevereiro.
“Este ano a situação é complicada. O orçamento para 2024 nos coloca no cenário de redução orçamentária e com recurso condicionado para a assistência estudantil”, disse a decana de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional, Denise Imbroisi. A estimativa é que haja um déficit de R$ 25,7 milhões no orçamento em 2024 para arcar com todas as despesas planejadas.
Em reunião com o presidente Lula este mês, a diretoria da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Márcia Abrahão Moura, defendeu a importância de valorização dos servidores técnicos-administrativos em educação e docentes, da retomada das políticas de assistência estudantil e destacou, nesse contexto, a autonomia das universidades federais seguindo o exemplo das universidades de São Paulo, onde há estabilidade orçamentária anual, além da garantia constitucional na nomeação de reitores.
No encontro, o governo propôs reajuste de 9%, a partir de janeiro de 2025 e de 3,5%, em maio de 2026. Para 2024, o governo já havia formalizado, para todos os servidores federais, proposta de reajuste no auxílio-alimentação, que passaria de R$ 658 para R$ 1 mil (51,9% a mais), de aumento de 51% no auxílio-saúde e no auxílio-creche.
Menos publicações, menos qualidade
Tanta imprevisibilidade se reflete nos indicadores de qualidade. Segundo a Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec), 29 universidades brasileiras caíram de posições na edição de 2023 do World University Rankings (CWUR). De acordo com a publicação, o principal fator para o declínio geral das instituições brasileiras é o desempenho em pesquisa, em meio à intensa competição global entre instituições bem financiadas.
Com processos de seleção bastante exigentes tanto para alunos quanto para professores, as federais são referência de qualidade no ensino superior do Brasil. Dados do Índice Geral de Cursos (IGC) 2022, medido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), apontam que, entre as universidades com nota máxima, 72% são federais.
“Quando são identificados problemas de financiamento nas universidades, toda a capacidade produzir pesquisa e conhecimento e de formar profissionais para o mercado de trabalho é comprometida”, alerta a supervisora do escritório do Dieese no DF, Mariel Angeli Lopes. “As universidades estão tentando de todas as maneiras fazer a zeladoria da melhor maneira possível, por conta própria, mas com recurso cada vez menor”, diz a economista.
A falta de recursos interfere diretamente na capacidade de realizar publicações relevantes, explica a economista do Dieese. “Sem laboratório muitas vezes você não consegue fazer as pesquisas de ponta. Fora a incapacidade de dar bolsas para os alunos, investir em viagens para congressos. Tudo isso influencia”.
Como muitos representantes das federais, Paradis, da Unilab, reconhece a disposição do governo em olhar para o problema das universidades federais, um avanço em relação às gestões anteriores. Para ela, no entanto, é fundamental garantir que o plano de democratizar o acesso ao ensino superior no Brasil seja concluído. “É importante que a democratização seja acompanhada do aumento da qualidade da universidade, não pode ser uma democratização inconclusa”.
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Por Ligia Guimarães | G1
Data original de publicação: 28/04/2024