Concentrações urbanas: a solidariedade como contraponto ao lucro degradante

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Por Jonas Jorge da Silva | IHU
Data original de publicação: 17/08/2024

Se o cenário de fim do mundo insiste em despontar no horizonte de nossas grandes cidades, com o capital passando a se especializar em catástrofes para redobrar a sua lucratividade, experiências de solidariedade em nossas periferias ou como as vividas recentemente nas enchentes do Rio Grande do Sul precisam ser fortalecidas, articuladas e praticadas de modo cada vez mais orgânico. Para Carolina Freitas, este é o contraponto necessário entre aqueles que só almejam explorar e lucrar e os que usam a cidade para sobreviver, existir e reproduzir suas comunidades.

Carolina Freitas é cientista social, mestre e doutoranda em planejamento urbano e regional pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Também é especialista em Economia Política pelo CLACSO. Foi colaboradora do Centro de Estudos Periféricos do Instituto das Cidades da Unifesp e assessora na comissão de política urbana na Câmara Municipal de São Paulo. É autora do livro Mulheres e Periferias como Fronteiras: o tempo-espaço das moradoras do Conjunto José Bonifácio (FAUUSP, 2021).

No último dia 10 de agosto, foi a convidada da série de debates Questões do Antropoceno para discorrer sobre o tema Concentrações urbanas e desigualdades: mobilidade, moradia e trabalho. A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.

Série de debates ‘Questões do Antropoceno’, com o tema ‘Concentrações urbanas e desigualdades: mobilidade, moradia e trabalho’

Atualmente, segundo dados da ONU, 54% da população mundial vive em regiões urbanas e a projeção é que esta porcentagem chegue a 66% até 2050. Segundo Carolina Freitas, além do ritmo acelerado dessas concentrações, chama a atenção a estimativa da ONU de que até 2040 ao menos metade do crescimento urbano se dará de forma similar ao das favelas.

Isto quer dizer que as favelas, uma marca da origem da urbanização nos países do chamado Sul Global, representam uma tendência generalizada, estendendo-se também para regiões centrais do capitalismo, como, por exemplo, Europa e Estados Unidos. É nesse sentido que o estudioso urbano Mike Davis, que nos deixou há dois anos, já apontava para um devir favela do mundo, com sua obra Planeta favela (2006).

Freitas também citou Henri Lefebvre, um autor francês muito referenciado em estudos urbanos, que considerava que o espaço urbano é resultado de uma sobrevida do capitalismo, sendo uma solução encontrada para as suas próprias crises. Ou seja, o capitalismo vai sobrevivendo à base de um ajuste espaço-temporal. Nos termos de um outro importante estudioso, David Harvey, a produção desse espaço urbano cria condições para que o capitalismo possa resolver as suas crises de sobreacumulação, de superprodução.

A ideia de expansão do capitalismo para todo o espaço terrestre, por meio da produção do espaço, ocorre tanto por meio da agricultura, da extração de recursos do espaço subterrâneo, do espaço submarino e do espaço atmosférico quanto por meio da construção pesada, da construção de infraestruturas, da construção civil, representando essa urbanização mundializada que vivemos hoje. Para Freitas, a construção, esse setor que foi se especializando ao longo da história do capitalismo, é uma atividade econômica que possui um lucro maior do que outros setores da economia, pois explora muita mão de obra, ou seja, trabalho vivo, além do que chamamos de fatores de produção.

Além disso, vale-se da especificidade de que a terra construída não é apenas uma mercadoria, é também uma fonte de renda. Nesse sentido, a renda da propriedade da terra é um sobrelucro, uma espécie de tributo que os proprietários auferem só por conta da condição de proprietários. Com isso, os preços das propriedades se tornam muito especulativos, gerando expectativas quanto ao seu valor futuro.

Para demonstrar como a questão imobiliária está muito relacionada com as crises financeiras mundiaisFreitas citou a crise vivida em 2008, quando houve uma combinação explosiva de desemprego e eclosão de empréstimos para financiamento habitacional, as hipotecas nos Estados Unidos. Quando se vislumbrou que não havia liquidez nessas hipotecas, que as famílias pobres ou de classe média baixa não conseguiriam pagar o endividamento, a crise assolou toda a cadeia da economia que, sendo internacionalizada, espalhou-se pelo mundo.

A contradição está no fato de que ao mesmo tempo em que o capitalismo resolve suas crises de sobreacumulação por meio da produção do espaço imobiliário, também é este mesmo espaço imobiliário, como foi possível ver em 2008, que provocará crises.

Freitas destacou que a influência dessa dinâmica imparável de construção sobre o meio ambiente fez com que, a partir de 2021, a massa antropogênica, ou seja, produzida por força humana (metais, asfalto, concreto, cascalho, tijolos, entre outros), tenha ultrapassado o peso da massa de origem animal. As criações humanas alcançaram o peso de 1.1 teratonelada na superfície do planeta terra.

Em relação ao Brasil, lembrou que o país fez uma opção por um modelo rodoviarista e pela indústria automobilística. O rodoviarismo, a construção de estradas, o uso privilegiado de automóveis individuais é o que marca o processo de modernização e urbanização atual. É a chamada infraestrutura cinza que caminha na contramão da infraestrutura verde, que poderia possibilitar a implantação de elementos naturais para a absorção, drenagem e captação de gás carbônico em nossas cidades.

Na avaliação de Freitas, as mudanças climáticas vão influenciar no acirramento do padrão periférico de crescimento urbano. Um processo que se iniciou, a partir dos anos 1950, com a migração em massa das regiões norte e nordeste para as grandes capitais do sudeste. Embora chamado de crescimento desordenado, na verdade, seguiu a lógica da renda diferencial, ou seja, os preços das terras urbanas nas regiões mais servidas por infraestruturas, mais centralizadas do ponto de vista do trabalho, da riqueza, sempre foram inacessíveis para a maior parte da população migrante, que precisou se instalar em regiões mais distantes das áreas mais ricas da cidade.

Nessa dinâmica, uma das marcas das grandes cidades brasileiras passou a ser a autoconstrução. Em São Paulo, por exemplo, com os mutirões autogeridos aos fins de semana nos bairros da periferia, sem qualquer subsídio, apoio ou promoção por parte do Estado. Assim, as grandes cidades foram construídas de forma gratuita, pois os bairros mais populosos foram construídos pelos próprios trabalhadores.

Na sequência, chega o Estado com a coleta de lixo, com o asfaltamento, com o saneamento básico, luz elétrica etc. Por fim, os capitais privados se apropriam de todo esse trabalho coletivo dos próprios moradores e da infraestrutura urbana construída pelo poder público.

Para Freitas, trata-se de uma invasão do capital privado em uma série de regiões periféricas das grandes cidades, produzindo um novo mercado imobiliário, com empreendimentos residenciais para a classe média baixa e a população assalariada com alguma condição para o financiamento habitacional. É a entrada de capital privado no que chamamos de periferias consolidadas.

Esse padrão periférico de urbanização também estabelecerá os marcos da mobilidade. Será uma mobilidade permanentemente crítica, pois a classe trabalhadora reside muito longe desses lugares com infraestrutura e trabalho. É o que o sociólogo brasileiro Lúcio Kowarick chamou de espoliação urbana. Não se trata apenas de uma urbanização de baixos salários, ocorre também um roubo extra do tempo de vida da classe trabalhadora. São pessoas que gastam muitas horas no deslocamento até o trabalho, pois moram em regiões em que não há oportunidades próximas de emprego.

A articulação entre o grande capital, o setor de construção e o automobilístico, combinado com as companhias que em conluio com o Estado operam as linhas de ônibus, está muito interessada na permanência desta lógica de funcionamento da vida urbana. E mesmo um programa como o Minha Casa, Minha Vida, que supostamente almeja resolver o problema de déficit habitacional, acaba promovendo muito mais um novo alavancamento da indústria da construção do que o atendimento das reais necessidades das populações pobres nas grandes cidades.

Série de debates ‘Questões do Antropoceno’, com o tema ‘Concentrações urbanas e desigualdades: mobilidade, moradia e trabalho’

Carolina Freitas considera que todos esses problemas clássicos, como a precariedade da questão habitacional, a questão da mobilidade urbana, as péssimas condições de trabalho, entre outros, avolumam-se ainda mais com a crise climática. Há muita divulgação de cidades inteligentes, cidades globais, de grandes negócios futuristas, e que essas cidades possuem uma tecnologia adequada para os novos desafios ambientais. É algo falacioso, já que tudo se concentra na financeirização dessas políticas ambientais, dessas certificações ambientais, sendo utilizadas pela própria indústria da construção.

Apesar de todo o movimento empreendido, desde os anos 1970, em torno da reforma urbana, da democratização das cidades, do direito à moradia e da função social da propriedade privada, pouco se incidiu sobre as desigualdades presentes nas grandes concentrações urbanas. Além disso, surgem novos desafios com o capitalismo plataformizado e o exacerbamento da precarização dos trabalhadores.

Prevê-se que a segregação socioespacial, que sempre foi clássica no Brasil, irá se aprofundar com a emergência climáticaFreitas avalia que teremos cada vez mais feudos urbanos, com condomínios fechados, em lugares seguros e protegidos por muros, ao mesmo tempo em que os lugares de maior risco serão cada vez mais destinados a pessoas pobres, negras, trabalhadores precarizados que não encontram outra alternativa, tendo que morar nas encostas e em lugares alagadiços onde a morte é mais certa.

Apesar do pessimismo gerado por todo este cenário, é preciso apostar nas lutas comunitárias, nas lutas urbanas, na solidariedade de classe contra esse fim do mundo que se avizinha. Para Freitas, as experiências de solidariedade, de ajuda mútua, como acontecem nos territórios periféricos das grandes cidades, também vistas no caso das enchentes no Rio Grande do Sul, com a criação de movimentos de atingidos pelas enchentes, significam um contraponto fundamental a uma espécie de capitalismo das catástrofes.

Há um capital que está se especializando na desgraça, na tragédia, na catástrofe ambiental, como uma aposta para redobrar a sua lucratividade. O contraponto, portanto, está naqueles que usam a cidade para sobreviver, para existir, para reproduzir as suas comunidades. Nota-se uma nova expressão da luta de classes contra esse fim do mundo presente no que chamamos de Antropoceno.

Sendo assim, um caminho possível é apostar as nossas fichas nas experiências de solidariedade, em sua unidade, em sua articulação cada vez mais orgânica. Enfim, nas soluções que surgem nos momentos de crise, quando a solidariedade se estabelece. Carolina Freitas está convencida de que é necessário prestar atenção nas pessoas que são mais atingidas pelas catástrofes atuais, pois delas virão as alternativas a esse fim de mundo.

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