Entre a perda do emprego e o risco de contaminação: trabalhadoras domésticas remuneradas e a pandemia de Covid-19
Por Cristina Pereira Vieceli
“Dia 16 de junho foi comemorado o Dia Internacional das Trabalhadoras Domésticas. A data foi escolhida um ano após a adoção da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua 100a seção no ano de 2001. A Convenção busca equiparar os direitos da ocupação domésticas com as demais categorias de trabalho, assegurando emprego digno, regulamentação da jornada de trabalho, remuneração decente, entre outras garantias.
Atualmente, 29 países ratificaram a Convenção, entre eles o Brasil, que o fez em fevereiro de 2018. Foi uma grande vitória, fruto de intensa luta da categoria brasileira, ainda que o momento tenha sido de perdas para a classe trabalhadora, com aumento do desemprego e a ampla Reforma Trabalhista, implementada através da Lei n. 13.467 de 2017. Essa lei flexibilizou diversos direitos garantidos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e regulamentou formas de trabalho precárias como o intermitente.
Este ano, em comemoração ao dia internacional das trabalhadoras domésticas, a OIT realizou uma webconferência em que alertou para os impactos da coronacrise na categoria doméstica. A instituição estima que existam 67 milhões de trabalhadoras domésticas no mundo. E, apesar dos esforços para promover o trabalho decente, 75% da categoria é informal. No contexto da crise pandêmica, essas trabalhadoras estão suscetíveis a perderem o emprego e ficarem sem nenhuma garantia trabalhista, como o seguro-desemprego e auxílio-doença.
Em estudo publicado em junho, a OIT estimou – com base nas medidas tomadas pelos países relacionadas ao distanciamento social e nas características da ocupação doméstica – que 72,3% da categoria no mundo está sendo severamente impactada pela crise.
As trabalhadoras domésticas, portanto, são uma das principais categorias afetadas pela pandemia. Isso ocorre por consequência das características do vírus: altamente contagioso, impondo o distanciamento social e fechamento das escolas, restaurantes e diversos serviços ligados aos cuidados. Essa imposição intensifica os trabalhos voltados à reprodução social – conforme venho descrevendo nas últimas colunas – o que impacta, principalmente, as mulheres. No caso específico das trabalhadoras domésticas, há tanto o risco de demissão, como também, para as que não perderam o emprego, de contaminação pelo vírus, além do distanciamento de sua família e rede de apoio.
Dentre as trabalhadoras que permanecem empregadas, o risco de contaminação é alto, tanto relacionado ao transporte, quanto à execução das atividades. O perfil da categoria doméstica é marcado por fortes relações de raça, classe e gênero. Normalmente, as trabalhadoras são mulheres pobres pertencentes a grupos raciais e étnicos marginalizados. Por conseguinte, para trabalhar na casa de seus empregadores, essas trabalhadoras devem se deslocar utilizando transporte público e correndo o risco de se contaminarem. Ademais, muitas trabalhadoras exercem a atividade em mais de um domicílio, o que aumenta a probabilidade de contágio.
Além disso, o exercício de suas atividades exige muitas vezes o contato direto com pessoas idosas, crianças e pessoas doentes, o que coloca em risco de contaminação tanto da trabalhadora como do empregador. Outras atividades que colocam as trabalhadoras em risco e que são normalmente exercidas são as compras no supermercado e passeios com animais domésticos, o que as expõe a lugares públicos. O trabalho doméstico requer a utilização contínua de produtos de limpeza, o que pode afetar as vias respiratórias das trabalhadoras, se essas não se protegerem com equipamentos de proteção individual.
A OIT alerta ainda para a maior vulnerabilidade principalmente entre as trabalhadoras migrantes, que estão perdendo o emprego e correm o risco de serem deportadas aos países de origem. Muitas estão vivendo nas ruas, sem possibilidade de acesso aos benefícios sociais e distantes de suas famílias.
Em pesquisa realizada na Colômbia acerca dos impactos da pandemia sobre a categoria1, algumas trabalhadoras relataram que, por receio de contágio por parte dos empregadores, foram obrigadas a se transformarem em residentes. Esse formato de trabalho, além de isolar as trabalhadoras de sua família e amigos, as torna mais suscetíveis ao assédio moral e sexual. A ocupação já é marcada pela vulnerabilidade às relações abusivas, o que pode ocorrer por diversos fatores, em que pese as relações de gênero, raça e classe, mas também por ser um trabalho realizado no ambiente doméstico e privado. Essa característica dificulta muito a fiscalização e aumenta as chances de diversas formas de violência2.
A questão da violência doméstica é agravada no período pandêmico. Desde que iniciou a pandemia todos os países que coletaram dados sobre violência contra mulheres relataram seu aumento de forma acelerada3. Isso ocorre por diversos motivos, entre os quais a questão da mobilização do medo, a insegurança no trabalho, incertezas em relação ao futuro e a intensificação da convivência familiar. Além disso, o isolamento oportuniza aos abusadores encontrarem pretextos para isolar suas vítimas, principalmente mulheres e crianças, e exercer diversas formas de violência, tanto moral, patrimonial, sexual e física. Esta situação coloca em risco ainda maior as trabalhadoras domésticas remuneradas.
No caso do Brasil, segundo dados da PNAD-C do IBGE havia 6,23 milhões de pessoas empregadas como domésticas no país, o que nos coloca como o país com maior número absoluto de trabalhadoras domésticas no mundo. É uma ocupação de grande importância para a manutenção dos cuidados, saúde e limpeza dos domicílios brasileiros e de extrema importância como forma de trabalho para as mulheres negras. Do total de pessoas ocupadas como domésticas no país, 93% eram mulheres e 65% negras.
As empregadas domésticas brasileiras estão muito vulneráveis durante a crise pandêmica. Segundo Nota Técnica produzida pelo Dieese4 com base nos dados da PNAD-C, do total das trabalhadoras domésticas no Brasil, somente 27% possuía carteira de trabalho assinada em 2018, o que as coloca em uma situação de grande suscetibilidade à perda do emprego sem garantia à direitos trabalhistas. Essas trabalhadoras recebiam em 2018 uma remuneração média de R$858,42, o que equivale a 90% do salário mínimo da época. Essa remuneração, portanto, não as permite fazer uma poupança, situação que se agrava considerando que 45% das domésticas eram chefes de domicílio. Além disso, a média de idade das domésticas brasileiras é alta, em torno de 46,5% possuía mais de 45 anos, o que as coloca em situação de maior risco ante a doença.
Considerando a gravidade da situação e a importância do trabalho doméstico remunerado como forma de emprego principalmente para as mulheres brasileiras, é necessário que sejam tomadas ações a fim de proteger a renda das trabalhadoras e suas famílias, a saúde e proteção do trabalho durante o período da pandemia. Nesse sentido, o Ministério Público do Trabalho emitiu a Nota Conjunta 04/2020, apontando diversas diretrizes a serem tomadas por empresas, empregadores e empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas. O documento orienta a dispensa das trabalhadoras, assegurando a garantia de emprego e renda durante o período da pandemia, à exceção dos casos em que o serviço é indispensável. Para estes, os empregadores devem garantir a saúde da trabalhadora oferecendo equipamentos de proteção individual e álcool gel para higienização. As medidas devem ser estendidas a todas as trabalhadoras domésticas, sejam elas mensalistas ou as que recebem remuneração por jornada diária, as chamadas diaristas.
Diversos países estão adotando medidas para a proteção ao trabalho das domésticas, como é o caso da Argentina, em que as trabalhadoras receberam suporte de renda, e na França, onde o governo subsidiou 80% dos salários das trabalhadoras, garantindo a manutenção de seus contratos5.
Com relação aos organismos internacionais, a ONU Mulheres, em parceria com a Cepal, lançou o documento “Trabalhadoras Remuneradas do Lar na América Latina e no Caribe frente à crise do Covid-19”, em que elencam 13 recomendações a serem adotadas pelos países com o objetivo de diminuir os efeitos da crise. Entre as medidas relacionadas estão a garantia de emprego, elaboração de protocolos de saúde e segurança, garantia de acesso à saúde, fomento à formalização do trabalho, promoção de um sistema de proteção e diálogos sociais e formação digital e financeira6.
O relatório aponta também para a necessidade da disseminação e impulso à ratificação das Convenções 189 e 190 da OIT. A primeira Convenção, conforme colocado anteriormente, foi ratificada no Brasil em 2018 e garante diversos direitos às trabalhadoras domésticas, como segurança e saúde no trabalho, proteção ao trabalho infantil, condições dignas de emprego, acesso à informação e à justiça, entre outras. Já a Convenção 190, que ainda não foi ratificada pelo país, trata sobre a proteção contra o assédio sexual e moral no trabalho. Essas são ferramentas de extrema importância que devem ser reivindicadas pelas organizações das trabalhadoras domésticas e apropriadas por toda a sociedade.
Cabe à população apoiar a luta das trabalhadoras domésticas em suas organizações sindicais, por condições dignas de emprego e renda. Essa luta deve ser transversal também à garantia da renda mínima universal, que deve ser bandeira de todas as categorias de trabalhadoras e de toda a sociedade que vise a manutenção do bem estar e da vida.”
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Fonte: DMT
Data original da publicação: 05/07/2020