‘Adeus, iFood’: entregadores tentam criar cooperativa para trabalhar sem patrão

Imagem: Pixabay

Por Mariana Schreiber | BBC News Brasil

Com a queda nos rendimentos e o aumento dos riscos provocados pela pandemia de coronavírus, entregadores de aplicativos se mobilizaram nas últimas semanas para pressionar grandes empresas como iFood, Uber Eats e Rappi a aumentar o valor das corridas e melhorar as condições de trabalho.

A segunda paralisação nacional do Breque dos Apps ocorreu no sábado (25) em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Vitória, Porto Alegre e Rio Branco, mas, em geral, com atos menores que os realizados no início do mês.

Enquanto a mobilização contra as plataformas perde fôlego nas ruas, parte dos entregadores tenta criar um caminho alternativo para melhorar de vida ­­— querem fundar uma cooperativa, com seu próprio aplicativo de entrega, para trabalhar “sem patrão”.

“A luta não é só por melhoria dentro do aplicativo. Até porque muito foi refletido internamente de que lutar por melhoria dentro do aplicativo não resolve nossos problemas, né? Os donos de aplicativos querem encher o bolso de dinheiro, não querem de fato melhoria do trabalho do entregador”, afirma Eduarda Alberto, entregadora do Rio de Janeiro que levou a ideia da cooperativa para dentro do movimento Entregadores Antifascistas junto com outro colega de trabalho, Alvaro Pereira.

“Então, eles (as grandes empresas) podem até fazer alguma coisa (atender alguma reivindicações) para calar nossa boca, mas a única possibilidade de melhora mesmo é com autogestão”, acredita ela, que é também estudante de Arquitetura e Urbanismo na UFRJ.

O processo de criar uma cooperativa para concorrer com grandes plataformas de entrega, no entanto, não é simples nem barato. Apenas o desenvolvimento inicial de um aplicativo enxuto do tipo custa cerca de R$ 500 mil, segundo pessoas do setor consultadas pela BBC News Brasil.

Para tentar transformar a ideia em realidade, os Entregadores Antifascistas contam com o apoio voluntário de advogados, economistas, programadores e estudiosos do cooperativismo de plataforma — conceito criado por Trebor Scholz, intelectual e ativista americano, para o fenômeno crescente no mundo de uso das ferramentas digitais por cooperativas. Uma das ideias por trás desse movimento é que os trabalhadores se apropriem da lógica da plataforma, usando os algoritmos em seu favor.

“A tecnologia não é neutra. As plataformas, do modo como são construídas, têm uma gestão algorítmica que acaba beneficiando as empresas”, afirma um dos apoiadores do movimento, o pesquisador em trabalho digital e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Rafael Grohmann.

Cooperativas na Europa são inspiração: Os Entregadores Antifascistas têm buscado inspiração em cooperativas de entrega que já existem no exterior, embora, em geral, sejam ainda iniciativas recentes que contam com cerca de 20 a 30 entregadores apenas. É o caso da Mensakas, criada em Barcelona a partir de um movimento grevista contra a Deliveroo (empresa de entregas forte na Europa) em 2017.

O grupo brasileiro está também em contato com a CoopCycle, uma federação que reúne 30 cooperativas do tipo, sendo 28 na Europa e duas no Canadá. Sediada na França, ela permite que cooperativas em diferentes cidades compartilhem serviços, como uso de um software e aplicativo comuns, com objetivo de baratear custos.

Eduarda Alberto conta que os apoiadores do movimento já realizaram a tradução do aplicativo da CoopCycle para o português e agora trabalham em como adaptar a plataforma para um sistema de pagamentos que opere no Brasil. Outra dificuldade está sendo incluir o serviço de motos no sistema da federação europeia, cujo aplicativo só opera com bicicletas.

“O primeiro desafio está sendo convencer a galera do Coopcycle a inserir motocicleta na própria plataforma deles, porque pouparia muito trabalho de desenvolvimento. Se não for viável, a gente vai desenvolver uma nova em cima do código aberto que eles liberam”, diz a entregadora.

“Eles só aceitam bicicleta por uma questão ideológica de desempenho ambiental que eu respeito muito, mas que surge dentro de uma realidade europeia muito diferente da brasileira”, ressalta.

Enquanto o aplicativo não sai do papel, Alberto acaba de criar com mais seis colegas do ramo o coletivo de entregas Despatronados. Assim, esperam ter uma rede de entregadores e clientes no Rio de Janeiro quando a cooperativa virar realidade. Desde terça-feira (21), quando o site entrou no ar, 36 pessoas se inscreveram interessadas em entrar no coletivo. Segundo Duda, a rede já tem 190 clientes cadastrados, que podem acionar a entrega pelo WhatsApp.

“Já levamos de potes de nozes a documentos para autenticar em cartório. Ainda estamos trabalhando somente com agendamento, enquanto o app está em desenvolvimento. Aí, ainda não conseguimos atender pedidos de restaurantes sob demanda”, contou à BBC News Brasil na sexta-feira (24).

Coletivo de mulheres e LGBTs tenta ter aplicativo desde 2018: Os Entregadores Antifascistas não são os primeiros a tentar usar a tecnologia da CoopCycle no Brasil e esbarrar em alguma dificuldade. O Señoritas Courier, um coletivo de entregas por bicicleta em São Paulo formado apenas por mulheres ou pessoas LGBT, não conseguiu usar a plataforma porque a federação só aceita cooperativas, conta a fundadora do grupo, Aline Os.

É ela que gerencia as entregas por meio do WhatsApp e o Instagram, atendendo a uma rede de clientes “com valores alinhados ao do coletivo, como marcas veganas ou que valorizem a economia feminista e a economia negra”.

“Faço tudo na mão. Em 2018, inscrevi o coletivo em vários editais de fomento para projetos sociais, tentando conseguir os recursos para um aplicativo, mas nenhum aceitou e continuamos atuando como um coletivo informal”, lembra ela.

Agora, o Señoritas Courier está avaliando fazer uma vaquinha online para levantar cerca de R$ 8 mil para os gastos de criar uma cooperativa, como contratação de advogado e contador e o pagamento de taxas de cartório.

“Esse ano, com o crescimento da quantidade de clientes e bikers por causa da pandemia, vimos que a cooperativa é uma saída interessante. Mas algumas integrantes ainda estão na dúvida, pois hoje elas têm algumas vantagens (menos impostos) atuando como MEI (microempreendedor)”, relata.

‘Campos de resistência’: Outro que tem colaborado com os Entregadores Antifascistas na criação da cooperativa é Rafael Zanatta, doutorando do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo e tradutor do livro Cooperativismo de Plataforma, de Trebor Scholz, para o português.

Ele reconhece que a concorrência com as grandes empresas de aplicativo não é algo fácil e diz que um caminho para as cooperativas é justamente buscar nichos de mercado, com empresas e consumidores mais preocupados com um consumo consciente, como fazem pequenos produtores de alimentos orgânicos no Brasil.

“O cooperativismo de plataforma não elimina a big tech (grande empresa de tecnologia), assim como hoje o associativismo (de pequenos agricultores) não elimina a big food (redes de supermercado). Mas acho que são campos de resistência, de tornar os mercados mais plurais, e de dar alternativa para o cidadão escolher”, afirma Zanatta.

“E elas podem também provocar debate interno (nas grandes plataforma). Essas empresas têm pavor de que grandes influenciadores comecem a gravar vídeos contra elas e defender uma cooperativa como alternativa. Então, isso pode provocar algumas decisões internas de melhorias das condições de trabalho para tentar antecipar esse movimento de crítica ou de saída”, reforça.

Em alguns casos, diante da dificuldade de concorrer diretamente com as grandes empresas, trabalhadores dessas plataformas também podem formar “cooperativas de consumo”, nota Zanatta. Segundo ele, motoristas de Uber nos Estados Unidos já atuam nesse modelo, usando a cooperativa para comprar com melhor preço combustível e pacotes de internet, assim como meio coletivo de negociar com a plataforma.

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Fonte: BBC News

Data original da publicação: 27/07/2020

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