A reforma trabalhista de 2017 não entregou o que prometeu

Qual o impacto da reforma trabalhista que entrou em vigor em novembro de 2017? Do ponto de vista da geração de empregos, foi um fracasso

Créditos: © Marcello Casal Jr Agência Brasil

Por Tiago Oliveira e Marcelo Weishaupt Proni

O editorial do jornal O Globo publicado em 15 de setembro de 2024, intitulado “Efeito da reforma trabalhista de 2017 é positivo”, distorce os fatos comprovados por inúmeros estudos feitos por especialistas em Economia do Trabalho. Em vez de atribuir a progressiva redução da taxa de desemprego no período recente (caiu de 8,8% no 1º trim/2023 para 7,9% no 1º trim/2024 e 6,9% no 2º trim/2024) ao crescimento econômico e à elevação do consumo das famílias – estimulada pelo aumento da massa salarial e pelos programas de transferência de renda –, o texto insiste no poder mágico da flexibilização dos direitos trabalhistas, que pretensamente é capaz de convencer as empresas a criar empregos formais. Assim, tenta refutar a constatação de que a reforma da legislação trabalhista promovida pelo governo Temer não entregou o que prometeu (redução do desemprego e da informalidade) com base em argumentos superficiais que contrariam os indicadores empíricos.

Reforma trabalhista de 2017.
Créditos: © Marcello Casal JrAgência Brasil

Qual o impacto da reforma trabalhista que entrou em vigor em novembro de 2017? Do ponto de vista da geração de empregos, foi um fracasso: a taxa de desemprego era de 11,9% no 4º trim/2017 e se manteve no mesmo patamar no 4º trim/2018 (11,7%) e no 4º trim/2019 (11,1%). Ou seja, passados dois anos desde a implementação da reforma e ainda antes do eclodir da crise pandêmica, a taxa de desemprego mantinha-se praticamente inalterada. Devemos lembrar que a taxa de desemprego no Brasil havia atingido um nível bem inferior a esse antes da grave recessão econômica de 2015-2016 (6,6% no 4º trim/2014).

Ao mesmo tempo, o contrato de trabalho intermitente (a grande aposta dos reformadores) não havia emplacado: de 7 mil vínculos de emprego em dez/2017 passou a 155 mil vínculos em dez/2019 (o equivalente a apenas 0,4% dos celetistas). A proporção de trabalhadores assalariados informais, ou seja, sem carteira de trabalho assinada, no total do emprego, tampouco diminuiu, como previam os reformadores. Ao contrário, na comparação entre o quatro trimestre de 2016 e o de 2019, a informalidade avançou em todos os setores: no setor privado de 23,5% para 26,0%, no setor público de 18,5% para 22,0% e no trabalho doméstico de 68,2% para 72,1% (ver gráfico 1). Ademais, não houve ganho significativo no que se refere ao rendimento médio real dos empregados: R$ 2.843 no 4º trim/2017, R$ 2.875 no 4º trim/2018 e R$ 2.879 no 4º trim/2019.

Gráfico 1: Distribuição percentual dos empregados sem carteira de trabalho assinada por setor de atividade.

Brasil, 4º trimestre de 2016 ao 4º trimestre de 2023

Fonte: IBGE. PNAD Contínua.

Não é a primeira vez que esse tipo de argumento é apresentado para defender a agenda de reformas neoliberais no campo do trabalho. Em editorial publicado em 17 de julho de 2022 (“Por que a reforma trabalhista de Temer deu certo”) O Globo já havia reproduzido a opinião de alguns defensores desse modelo de “modernização”, que alega ser necessário rebaixar o nível de proteção aos empregados registrados para aumentar o volume de contratações. Para comprovar a eficácia da reforma, diziam que 530 mil vagas formais haviam sido criadas em 2018, e comemoravam a recuperação do estoque de empregos formais em 2021 e 2022. Mas esqueciam de informar que, entre 2004 e 2013, esse saldo anual tinha sido sempre maior do que 1 (um) milhão de vagas formais (alcançando 2,630 milhões em 2010). De acordo com os dados do Caged e do Novo Caged, o saldo de vagas formais criadas no quinquênio 2018-2022 foi de 5,792 milhões, enquanto no quinquênio 2010-2014 esse saldo foi de 7,588 milhões. Ou seja, a reforma trabalhista não era necessária para estimular as micro e pequenas empresas a formalizar o contrato de emprego, pois o determinante principal da formalização das relações de trabalho sempre foi o crescimento econômico e a confiança empresarial na expansão da demanda.

Outro argumento que tem sido apresentado para defender a reforma trabalhista faz uma comparação entre a lenta recuperação do mercado de trabalho após a longa recessão de 2015-2016 e a rápida recuperação após a crise pandêmica de 2020. Em seu editorial de 2 de junho de 2024 (“Desemprego em queda é reflexo de reforma trabalhista”), O Globo afirma que a “hipótese mais provável” para explicar a diferença de desempenho na geração de empregos formais é justamente a reforma trabalhista do governo Temer. Além de reduzir os custos de contratação, remuneração e demissão, a explicação também reforça a importância de aumentar o livre arbítrio do empregador e fragilizar o poder de negociação dos empregados: “ao desestimular a indústria do litígio, a reforma reduziu a quantidade de processos na Justiça do Trabalho. Com menos chances de perder tempo e dinheiro com ações trabalhistas, as empresas se sentiram seguras para contratar mais empregados formais”.

Vejamos os dados. Em 2017, a taxa de desemprego permaneceu muito elevada (11,9% no 4º trim/2017 contra 12,2% no 4º trim/2016), ainda houve um saldo negativo de vagas formais e a proporção de empregos informais no total do emprego aumentou. Em 2021, a taxa de desemprego iniciou uma queda consistente (de 14,2% no 4º trim/2020 para 11,1% no 4º trim/2021), enquanto o saldo de vagas formais atingiu o recorde de 2,780 milhões, ainda que a informalidade não tenha retrocedido (ver novamente o gráfico 01). Também no que se refere ao rendimento médio real dos empregados há diferença expressiva: aumentou um pouco no primeiro período (de R$ 2.806 no 4º trim/2016 para R$ 2.843 no 4º trim/2017) e caiu bastante no segundo (de R$ 3.028 no 4º trim/2020 para R$ 2,679 no 4º trim/2021).

Portanto, não há dúvida de que as duas recuperações referidas apresentam características muito distintas. A crise pandêmica, em particular, atingiu de forma bastante desigual os diferentes segmentos do mercado de trabalho, penalizando especialmente os trabalhadores mais vulneráveis, que não tiveram a opção do teletrabalho ou de benefícios governamentais como os esquemas de redução de jornada de trabalho e salários, engrossando rapidamente e desproporcionalmente as fileiras do desemprego e da inatividade, o que provocou um “efeito composição” no mercado de trabalho que deve ser considerado para fins de análise. De todo modo, não é correto afirmar que o diferencial mais relevante entre os dois períodos tenha sido a flexibilização de direitos imposta pela reforma trabalhista realizada em 2017.

O mais relevante certamente foi a diferença na taxa de crescimento do PIB brasileiro (gráfico 2). Em bases anualizadas, observa-se que a lenta recuperação econômica que se seguiu à crise de 2015/2016 veio acompanhada por um também lento decréscimo da taxa de desocupação nos anos de 2018 e 2019. Na sequência da crise pandêmica, porém, o crescimento econômico muito mais robusto, impulsionado, primeiro, pelo enorme gasto público promovido pelo governo Bolsonaro (com a anuência do Congresso Nacional e do Banco Central) e, posteriormente, pelas políticas de estímulo à demanda patrocinadas pelo Governo Lula (com destaque para a política de valorização do salário mínimo), deram lugar a uma queda expressiva da taxa de desocupação: de 14,0%, em 2021, para 7,8% em 2023 (Gráfico 2).

Gráfico 2: Evolução da taxa de desocupação e da taxa de crescimento do PIB.

Brasil, 2012-2023.

Fonte: IBGE. PNAD Contínua e Sistema de Contas Nacionais.

Entretanto, retornando ao gráfico 1, observamos que a bem-vinda redução da taxa de desemprego no período recente não ocorreu em paralelo a uma redução do emprego informal: na comparação entre o quarto trimestre de 2021 e o mesmo trimestre de 2023, o emprego informal no setor privado manteve-se praticamente estável (26,5% contra 26,3%), enquanto no setor público e no trabalho doméstico houve aumento (respectivamente, de 21,9% para 25,1%, e de 75,4% para 76,4%). Ademais, cumpre ressaltar que o emprego protegido, ao contrário do que acreditavam os reformadores – para os quais o rebaixamento do custo do trabalho estimularia a formalização das relações de trabalho –, possui hoje uma participação relativa inferior à observada no período anterior à reforma: no 4º trim/2023 o emprego protegido representava aproximadamente 48% do emprego total, contra 51% no mesmo trimestre de 2016.

É indubitável que a reforma trabalhista de 2017 não entregou o que prometeu. Aliás, essa agenda neoliberal fracassou em diferentes contextos nacionais. Nas últimas décadas, em países abalados por crises econômicas, a flexibilização da legislação trabalhista foi adotada como solução para conter o desemprego, mas sem efeitos positivos evidentes sobre a geração de empregos e a formalização do contrato de trabalho. A experiência espanhola é um bom exemplo. Como certo, essas várias reformas, associadas à deterioração dos sistemas públicos de emprego e de programas de proteção ao trabalhador, acarretaram perda de relevância política do movimento sindical e provocaram aumento da precariedade no mercado de trabalho. Além disso, o impacto negativo sobre a massa salarial fragilizou a dinâmica econômica, ampliou as desigualdades e abalou a coesão social – propiciando assim terreno fértil para a disseminação de ideias xenófobas e extremistas, de raiz antidemocrática e antipopular.

O discurso que insiste em defender uma nova rodada de reforma trabalhista no Brasil não é prejudicial apenas para os trabalhadores sindicalizados. Ao prejudicar o crescimento econômico, acaba afetando o conjunto da força de trabalho e os setores empresariais que atuam no mercado interno. A melhor solução contra o desemprego e a informalidade continua sendo a sustentação de uma trajetória de crescimento econômico centrada na promoção do emprego pleno, produtivo, protegido e livremente escolhido.

Tiago Oliveira é Doutor em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP com estudos pós-doutorais no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal. É pesquisador do DIEESE e investigador colaborador do Observatório sobre Crises e Alternativas (CES/Universidade de Coimbra).

Marcelo Weishaupt Proni é Professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Coordenador associado do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT), ambos da UNICAMP.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

Clique aqui para ler o texto original.

Data original de publicação: 8 de outubro de 2024

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