As Greves como Fonte de Pesquisa: dos Boletins do DIEESE ao Balanço das Greves | Entrevista com Rodrigo Linhares – responsável pelo Sistema de Acompanhamento de Greves DIEESE
Por Patrícia Vieira Trópia e Bruna Gomes | Equipe ABET
O Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG) do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) é uma importante ferramenta de sistematização e divulgação das greves no Brasil. Os dados sobre greves produzidos pelo DIEESE foram e continuam sendo incontornáveis nas pesquisas sobre o sindicalismo brasileiro. O antigo Boletins do DIEESE, publicação que apresentava em sua última parte a relação mensal e os principais indicadores das greves, e o atual Balanço das greves são fundamentais para se compreender a dinâmica dos conflitos trabalhistas no Brasil.
O atual Balanço das greves, lançado anualmente, apresenta os principais indicadores das greves brasileiras segundo esferas pública – “funcionalismo público” e “empresas estatais” – e esfera privada.
De acordo com Rodrigo Linhares – técnico do DIEESE responsável pelo SAG e entrevistado pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – o levantamento realizado pelo Departamento acontece desde os anos de 1980 e foi facilitado pela inserção nos sindicatos das mídias eletrônicas e redes sociais a partir do final dos anos 2000.
Segundo Linhares, além das informações coletadas nos jornais sindicais e nos sítios eletrônicos da imprensa e das entidades, o SAG reúne também dados produzidos por outros relatórios do DIEESE, como o Sistema de Acompanhamento de Salário (SAS) e o Sistema de Acompanhamento de Contratações Coletivas (SACC).
Nesta entrevista à Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), Linhares relata sua rotina de trabalho, explica os métodos utilizados para o levantamento dos dados sobre greves e alguns critérios metodológicos para a tipificação dos movimentos grevistas e, finalmente, analisa o último ciclo grevista, em particular as greves de 2020, deflagradas em um ano marcado pela recessão econômica e pela pandemia da Covid-19.
Rodrigo Linhares sublinha a importância e a singularidade dos dados sobre greves no Brasil, onde a produção estatística de greves é iniciativa dos, e financiada pelos, próprios trabalhadores, diferentemente de outros países em que estes dados são governamentais.
O atual ciclo grevista, segundo Linhares, é marcado por algumas greves “políticas”, marcadas por “protestos contra mudanças na legislação, contra a implementação de medidas que derivam de determinada visão de política econômica” ou ainda em apoio a outras categorias, indicador importante para se compreender o movimento operário ou de trabalhadores/as brasileiro.
No atual ciclo grevista também surgem, paralelamente às questões salariais, pautas relativas às condições do exercício do trabalho – higiene, segurança, insumos, ferramentas.
Rodrigo Linhares afirma que para o DIEESE a greve é “o resultado de um jogo de expectativas em um conjunto de variáveis”, indicando que a análise grevista é – ou deveria ser – invariavelmente multicausal.
Ao final da entrevista, Linhares chama atenção para um aspecto importante para se compreender a dinâmica dos conflitos trabalhistas no atual ciclo grevista. A combinação entre contrarreforma trabalhista e cenário recessivo se expressou no ano de 2019 com o aumento de greves por desalento, greves deflagradas por categorias de trabalhadores/as informais, especialmente por terceirizados. Trata-se, segundo Linhares, de um tipo de greve deflagrada, “mas sem a esperança de uma volta à normalidade após a regularização dos atrasos. São tantas as irregularidades que só o que se espera é que, apelando a algum tipo de poder – o sindicato, a Justiça – a possibilidade de um prejuízo dessa dimensão seja afastada”.
Confira a seguir a entrevista realizada pela ABET com Rodrigo Linhares
ABET: Rodrigo Linhares, você é o responsável pelo SAG Sistema de acompanhamento de greves do Dieese. Poderia nos contar um pouco como é o seu trabalho? Como ocorre o levantamento das greves? Que fontes você consulta? As categorias em greve têm também a tradição de informar o DIEESE? Há recursos e financiamento para este levantamento?
Rodrigo Linhares: A relação do DIEESE com o movimento grevista dos trabalhadores é longa e está, inclusive, na história de sua fundação. O DIEESE é fundado em 1955, em meio a um período de grande agitação grevista e que resulta em um pacto intersindical que mantém a instituição até hoje.
As primeiras divulgações envolvendo informações a respeito das greves iniciam-se na década de oitenta, no fim do período ditatorial, e tentam abarcar, tentam acompanhar, o ressurgimento dessa prática na organização sindical brasileira. Os registros das greves vinham como parte de um periódico impresso – os boletins do DIEESE – e eram resultado de um trabalho de coleta realizado por toda a equipe técnica. Traziam já os indicadores que são essenciais até hoje – categoria profissional, localidade, número de grevistas, reivindicações.
Na década de 90, com a disponibilidade de recursos técnicos, é construída uma primeira versão de um banco de dados eletrônico de acompanhamento de greves. Todo o material impresso dos boletins é então cadastrado nesse sistema, que, em grandes linhas, é o mesmo até hoje – uma segunda versão é implementada no final na primeira década dos anos 2000.
A rotina de trabalho no Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG), até pouco tempo atrás, iniciava-se com a organização do material enviado por uma empresa de clipping, que selecionava notícias com as palavras “greve” e “paralisação” coletadas em jornais de todas as regiões do pais. Mais recentemente esse trabalho foi substituído pelas pesquisas feitas em sites de busca.
Paralelamente, as próprias entidades sindicais também começam a investir recursos em comunicação. Os antigos jornais sindicais, que chegavam pelo correio aos escritórios do DIEESE, transformaram-se em publicações em sítios eletrônicos e perfis de redes sociais. Essa implementação na comunicação aumentou bastante a capacidade de captação de informações. Muito provavelmente não teríamos notícias, antes dessa digitalização, de algumas das greves deflagradas em pequenos municípios no interior do país, longe das grandes capitais ou dos centros regionais. Hoje, no entanto, basta uma pequena nota redigida por uma organização sindical, com um pequeno número de acessos de leitores, para que isso chegue, através dos sites de busca, à nossa pasta de material a ser cadastrado. Além disso, muitos sindicatos, federações e confederações têm também sítios eletrônicos bem organizados, com um campo de busca onde se pode digitar “greve” ou “paralisação” e se chegar a mais informações.
Com esse material em mãos, o trabalho é, basicamente, de interpretação, de cotejamento – e de realização de mais buscas na internet. Os registros de greves, antes, tinham um caráter muito fragmentado. Muito frequentemente tinha-se, de uma greve, uma única notícia. Hoje, com a enorme quantidade de informações que temos à disposição, uma única notícia de uma greve pode levar à outras mais e é mais fácil cobrir uma mobilização do início ao fim, com os seus resultados. Houve um ganho não somente na abrangência da captação, mas também na qualidade do registro.
Esse trabalho é um trabalho de uma equipe de técnicos contratados pelo DIEESE. Ao lado do registro das greves há também o trabalho do registro dos reajustes salariais negociados nas datas-bases (o Sistema de Acompanhamento de Salários – SAS) e o trabalho com os documentos dessas negociações – as Convenções Coletivas de Trabalho e os Acordos Coletivos de Trabalho – realizado através de pesquisas feitas no Sistema de Acompanhamento de Contratações Coletivas (SACC), mantido pelo DIEESE, e também no Mediador, um sistema de informações mantido pelo antigo Ministério do Trabalho e Emprego, que hoje é parte do Ministério da Economia. Essa equipe de três técnicos – cada um responsável por um dos sistemas – têm também o apoio de estagiários, principalmente no cadastro das informações.
A principal publicação feita com os resultados do SAG é o Balanço Anual das Greves. Todos os recursos do sistema, os seus indicadores, estão presentes nesse estudo, que costuma ser divulgado nos primeiros meses do ano. Há uma exceção nos anos de 2014 e 2015, que não foram analisados no formato do balanço. Não houve divulgação. Isso porque, com o grande aumento no número desse tipo de protesto nesses anos, todo o trabalho esteve concentrado no registro desses movimentos. Mesmo assim não conseguimos acompanhar o ritmo dos grevistas. Houve então um atraso que inviabilizou a publicação dos estudos. Apesar disso, a série histórica de informações não apresenta, hoje, qualquer tipo de interrupção.
Além disso, cotidianamente, fornecemos relatórios que nos são solicitados por outros técnicos do DIEESE, em seu trabalho direto com as entidades sindicais, também por jornalistas e por pesquisadores acadêmicos.
Nossas fontes de informação são, portanto, tanto os grandes veículos de imprensa quanto as divulgações feitas por entidades sindicais em seus próprios sítios eletrônicos e mesmo em redes sociais. Esse é um trabalho financiado pelo próprio movimento sindical, através das entidades sindicais que se associam ao DIEESE.
ABET: Em alguns países, como os EUA, greves de menos de 1 dia e com número reduzido de trabalhadores não são contabilizadas. As metodologias sobre greves são heterogêneas. Quais seriam as principais metodologias que vocês utilizam para classificar ou tipificar as greves?
Rodrigo Linhares: Os indicadores do SAG foram concebidos conforme orientação da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No caso da duração da mobilização grevista, não registramos aquelas cuja duração seja inferior a uma hora. E mesmo assim é uma pena, porque entre algumas categorias, principalmente na indústria, é comum o protesto na forma de um atraso no início do expediente. Se esse atraso é de apenas meia-hora ou quarenta minutos, não podemos considerá-lo.
Em relação à adesão de trabalhadores, não há qualquer restrição. Esse assunto, por si só, seria motivo de uma longa discussão metodológica, dada as dificuldades que o cercam. A maioria dos registros do SAG não apresenta essa informação. E, muitas vezes, quando há informação, há divergências entre o que dizem os trabalhadores em greve, de um lado, e os empresários ou os governos (no caso dos servidores públicos, quando o empregador é o Estado), de outro lado. A própria avaliação da adesão ao movimento é objeto de disputa. Nesse caso, consideramos o que é informado pelos trabalhadores.
A única divergência entre a estatística de greves produzida pelo DIEESE e aquela acordada na OIT diz respeito às categorias profissionais. É uma divergência conceitual. Nossos manuais são uma espécie de simplificação das categorias profissionais relacionadas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que faz sentido, afinal essa é a lei que sustentou o que chamamos de “estrutura sindical” no Brasil. Aqui nós falamos em trabalhadores rodoviários ou químicos – nós os consideramos como partes de uma estrutura produtiva. A OIT fala em “gerentes e supervisores”, em “trabalhadores de escritório”. É uma concepção transversal. Por isso essa passagem conceitual de um modelo a outro nem sempre funciona bem.
Nesse tópico, no entanto, acho que tão interessante quanto as divergências de método são as divergências entre as instituições que produzem essas estatísticas. A impressão que temos é que, na maioria dos países, as greves são contabilizadas por órgãos governamentais – em alguns casos pela própria polícia. Iniciativas de produção estatísticas de greves organizadas pelos próprios trabalhadores são casos minoritários.
ABET: Surpreendeu o número de greves em 2020?
Rodrigo Linhares: Surpreendeu sim. Antes de se falar em uma pandemia da COVID-19, em meados de março, as perspectivas que tínhamos não eram de um ano com um grande aumento no número de greves, sequer de um ano com aumento de greves, mas havia uma expectativa de ao menos um incremento no protesto político, desacelerando a queda no número de mobilizações que vem desde 2017.
Chamamos de “políticas” as greves cuja pauta de reivindicação está além da simples relação empregador-empregado, quando é dirigida às esferas mais amplas que a simples negociação coletiva: protestos contra mudanças na legislação, contra a implementação de medidas que derivam de determinada visão de política econômica.
Muito da greve da Petrobrás, em fevereiro, se encaixava nessa categoria de protesto político. Foi um movimento que contou com grande adesão dos trabalhadores por um período também longo (20 dias), com atos públicos de grande comparecimento, e que repudiava publicamente os efeitos de medidas baseadas em visões privatizantes de política econômica – nesse caso, a dispensa de trabalhadores com o fechamento da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná.
No fim das contas, o protesto político acabou sendo mesmo importante em 2020. Mas além do “fator COVID-19”, que dificultou a deflagração de greves, houve uma oposição forte a esses movimentos. A greve dos Correios, que ocorreu no segundo semestre, nesse sentido, foi exemplar. As negociações com a empresa vinham sendo difíceis já há alguns anos, mas dessa vez a direção dos Correios apresentou, de forma totalmente intransigente, uma proposta que esvaziava o Acordo Coletivo, excluindo e rebaixando direitos estabelecidos muitas vezes há mais de uma década. Durante o julgamento do dissídio de greve, o plenário de juízes se dividiu, mas a maioria votou pela aprovação de uma proposta muito parecida com a da empresa. Alguns, entre os discordantes, afirmaram que aquele julgamento era escandaloso – nunca, até então, o Tribunal havia aprovado uma proposta que esvaziava o Acordo Coletivo de uma categoria. A direção já anuncia o projeto de privatização de alguns setores da empresa.
Também esperávamos um aumento das greves na educação pública, em especial nas redes municipais, pelo implemento do Piso Nacional do Magistério, que deveria ser reajustado em 12,84% – um percentual alto.
A declaração do estado de pandemia do novo coronavírus, já de início, desarticulou a paralisação que estava sendo construída pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e que, em anos passados, sempre teve grande adesão em todo o país. Outras greves de professores e do pessoal técnico-administrativo que estavam em andamento foram suspensas diante do fechamento das escolas.
Sempre insistimos em uma visão complexa do fenômeno greve – de que a greve não se alinha estritamente a nenhum indicador econômico, sendo mais bem descritas como o resultado de um jogo de expectativas em um conjunto de variáveis. O desemprego e a informalidade tendem a dificultar a deflagração de movimentos de protesto entre os trabalhadores, claro, mas isso não basta como uma explicação suficiente. Em 2020, surge o “fator COVID-19” em meio a esse conjunto de causalidades. E ele certamente não atuou em um sentido favorável à deflagração de protestos.
ABET: Que avaliação você faz dos ciclos greves no Brasil?
Rodrigo Linhares: Num primeiro olhar, a diferença mais marcante entre aquele ciclo de greves que se inicia no final da década de 70 e esse que vivemos agora está na pauta de reivindicações. O ciclo anterior tinha uma pauta mais simples, focada principalmente em questões salariais – o que classificamos como greves propositivas. Era um momento em que o projeto de desenvolvimento do regime ditatorial começava a se desfazer em meio ao descontrole inflacionário, o que atingia diretamente a remuneração dos trabalhadores.
O ciclo de greves que vivemos hoje, de forma diversa, tem uma pauta mais longa e mais complexa, com mais itens em reivindicação e combinando itens de caráter propositivo e defensivo. Isso quer dizer que, ao lado das questões salariais, que motivam a grande maioria das greves (em geral propositivas), foram surgindo outras pautas ligadas, por exemplo, às condições do exercício do trabalho – higiene, segurança, insumos, ferramentas (de caráter defensivo).
Há uma avaliação apressada que tende a atribuir a greves defensivas um caráter negativo – partindo de uma situação considerada “normal”, é uma luta contra um rebaixamento qualquer. Não é assim necessariamente. Não é assim sempre. O caráter defensivo das greves que vimos surgir em 2012, 2013, tem muito de um desvendamento. São questões historicamente acobertadas, ocultadas, que começam a emergir. Quando professores paralisam suas atividades exigindo reajuste salarial e, ao mesmo tempo, denunciam o péssimo estado de conservação das escolas, sem água potável, com banheiros sem condições de uso e com o telhado que dá sinais preocupantes – isso não nos parece necessariamente negativo. Pelo contrário, é a pauta de um movimento mais amadurecido. Ou, ao menos, de um movimento que tem condições de exercitar um olhar mais amplo – diferente daquela corrida desesperada contra perdas salariais imensas que a hiperinflação infligia aos trabalhadores na década de 80.
Mas, assim como aquele ciclo anterior de greves pode ser periodizado em momentos diferentes, também esse ciclo atual não permaneceu o mesmo. A partir de 2015, 2016, os sinais preocupantes que vinham da gestão econômica e dos conflitos políticos são vistos também através das lentes das greves. Agora começamos a perceber o caráter defensivo das pautas de reivindicações como algo realmente negativo – são greves contra o atraso no pagamento dos salários e também, cada vez mais, greves contra a realização de demissões. O número de greves deflagradas anualmente, que teve um crescimento rápido e uma curta estabilização em um patamar de mais ou menos duas mil ocorrências, passa também a encolher. Se o que se desenha no horizonte é realmente isso, temos um desfecho muito ruim, considerando toda a energia empregada em mobilizações há quase dez anos. Significa, no mínimo, que toda a questão da precariedade no exercício do trabalho, que foi tão claramente mencionada nos primeiros anos desse ciclo, volta para o subsolo.
O ano de 2019, antes da pandemia do novo coronavírus, já havia sido um ano particularmente perverso. Um número muito grande de greves encaixava-se em uma categoria informal, aquilo que chamamos de greves por desalento. É uma situação vivida especialmente por trabalhadores de alguma forma terceirizados. Os meses de salário em atraso vão se acumulando até o momento em que os trabalhadores passam a se perguntar a respeito da possibilidade do não pagamento das verbas rescisórias em caso de demissão. A greve é então deflagrada, mas sem a esperança de uma volta à normalidade após a regularização dos atrasos. São tantas as irregularidades que só o que se espera é que, apelando a algum tipo de poder – o sindicato, a Justiça – a possibilidade de um prejuízo dessa dimensão seja afastada. Uma dispensa com salários regularizados e pagamento das verbas rescisórias é tudo o que se espera.