Canal do Tabalhador #1: Ideologia no trabalho e sua adoção unânime

Por Glauber Treml*

Nas empresas de labores mais “privilegiados” (com todas as aspas do mundo), trabalho e vida pessoal operam em simbiose, sobretudo nas áreas de serviços.

Estar dentro destes ambientes e buscar entender os acontecimentos e comportamentos cotidianos não é tarefa fácil, principalmente quando a natureza da formação dos trabalhadores é técnica ou administrativa, ou seja, orientada para o meio empresarial, e com pouco estímulo à análise crítica.

É notória a alta carga ideológica dentro das empresas, sendo esta estimulada por seus mandatários e tragicamente assimilada por uma massa quase unânime de funcionários, os quais aderem, bem como replicam qualquer tipo de discurso, em uma velocidade mais rápida do que a de assimilar o conteúdo, intenção e origem em questão.

A ideologização é apresentada na forma de retóricas, palestras, cursos e literatura de facílima digestão, nas quais prometem resolver problemas, que vão desde questões interpessoais complexas, até a entrega de pilhas de trabalho, não por métodos racionais, mas por subjetividades baseadas em crenças e estado de espírito.

A simplicidade de seu conteúdo e a capacidade com que permeia é tão grande, que as respostas para os problemas são extremamente previsíveis, mesmo para quem trabalha no ambiente, mas que não consome o material panfletário ativamente.

É válido pontuar que tais materiais não são concebidos apenas por pessoas da alta estrutura, mas também por trabalhadores da base, que muitas vezes, aderem a práticas que vão na contramão do que é um trabalho equilibrado.

Não é difícil de encontrar perspectivas onde o cliente é uma espécie de soberano e a entrega de “valor” deve ser perseguida a qualquer custo. O assustador é quando a coisa é levada tão a sério, que o tempo destinado à vida pessoal passa a ser colocado em segundo plano, como se o não cumprimento da cartilha fosse uma espécie de desconforto moral. Na prática: trabalhar até mais tarde para estar de acordo com as “boas práticas”, é aceitável, em detrimento de todo o resto que diz respeito à própria vida.

É preciso explicar por qual motivo as altas hierarquias incentivam e preparam os gestores das camadas intermediárias para essa completa evangelização de funcionários? Trata-se aqui de possibilidades altas de maximização do trabalho por meio do engajamento voluntário e inversão de valores, revestidas com doses de motivação.

Perceba que o estabelecimento de limites e de pausas nunca são possibilidades, mas, sim, a adequação dos comportamentos e emoções diante de situações que, fora do trabalho, poderiam ser tipificadas claramente como pressão psicológica e até assédio moral.

Para entender os danos dessa carga ideológica, é preciso tomar como objeto de análise, os fatos corriqueiros e concretos do ambiente de trabalho, confrontando-os, então, com os pontos de vista simplórios e de via única que essas soluções do mercado apresentam.

Em termos práticos, seguem algumas adversidades que vem sendo comuns no ambiente de trabalho:

• Preocupações excessivas com questões do trabalho
• Situações embaraçosas e vexatórias com relação a clientes e à gestão interna
• Ansiedade
• Dificuldade para relaxar
• Sobrecarga de trabalho e execução de horas extra
• Pouco tempo para lazer
• Burnout

Como o discurso empresarial ideológico propõem tratar assuntos que por vezes ultrapassam o limite do saudável e razoável:

Resiliência como antídoto para lidar com situações humilhantes advindas dos clientes e da alta gestão

Persistência e inspirações de pessoas de “sucesso”, quando se cogita repouso físico e/ou mental

Moldar o “mindset” para dar respostas mais “adequadas” (diga-se subordinadas) as adversidades

Apontar fracasso e falta de ambição para os que não aderem aos “comportamentos desejáveis”

No caso dos questionadores de plantão, há duas tratativas comuns: tachá-los de “reclamões” ou ameaçar os seus empregos. A pluralidade e aceitação de opiniões contrárias, tão promovidas pelas empresas, são válidas estritamente para questões menores e de pouca importância. Se posicionar publicamente contra essas formas de ideologia, é motivo para que as empresas aleguem divergência com os seus “princípios e valores”, equivalente à justificativa de praxe para quem, no fundo, não tolera a opinião divergente.

Retornando aos exemplos apresentados anteriormente, nota-se que algumas das relações de trabalho apresentadas envolvem a própria saúde (ansiedade e burnout), mas também, o bem estar (lazer e descanso). A relação fornecedor e cliente, por exemplo, é sempre posta de forma inquestionável, como se os parâmetros do que é tolerável sofressem uma transformação, dependendo dos atores em questão.

A intensificação do enraizamento desta ideia é conveniente, sobretudo para as camadas superiores, que a defendem na fala, porém não a praticam, afinal, costumam terceirizar para os funcionários, o trabalho duro de lidar com os relacionamentos promíscuos dos que financiam os seus negócios.

A máxima do “cliente tem sempre razão” é um dos frutos desta subordinação a qualquer custo e falta de reação. Assunto este que renderia um artigo à parte sobre os limites dessa relação, assim como o que é, afinal, a razão.

Por fim, será que, ao passar da linha da razoabilidade, é possível lidar com as situações na esfera da resiliência, positividade e “amor” ao trabalho? Essas são as ferramentas para lidar com assuntos tão complexos como: saúde mental, relações desproporcionais e questões internas?

Aos que estão no meio de qualquer tipo de turbilhão no ambiente de trabalho, sugiro que reparem a forma como estão encarando as adversidades. Será que o problema não está em enfrentar as situações do modo em como estamos sendo condicionados? Será, ainda, que não é necessário impor limites claros, deixar a passividade de lado ou dar uma pausa?

Aquele “probleminha do trabalho” ou conflito que enfrentamos no dia a dia, quase nunca está relacionado nele em si mesmo, mas na dificuldade em olhar o fato pelo fato, e por fim, dar a tratativa correta, ou melhor, ideologicamente incorreta.

*Email para contato: glaubertreml@gmail.com