Deslegitimado pela lei, abandonado pela base?

Repercussões da reforma trabalhista sobre o movimento sindical

Por Andréia Galvão | Phenomenal World
Data original de publicação: 16/01/2025

A reforma trabalhista de 2017 no Brasil se insere em um movimento de rebaixamento de direitos trabalhistas verificado em escala internacional nas duas primeiras décadas do século XXI e, especialmente, após a crise financeira de 2008.1 Esse movimento representou um retorno à agenda dos anos 1990, quando a ascensão de governos neoliberais colocou na ordem do dia políticas de flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho sob o pretexto de que seriam imprescindíveis para combater o desemprego e a informalidade. Apesar da ineficácia das medidas então adotadas, elas vêm sendo, há mais de quatro décadas, reiteradamente apresentadas como forma de estimular o crescimento econômico e de solucionar os problemas do mercado de trabalho em diferentes países.

Há uma série de pesquisas que mostram o equívoco dessas teses e os impactos negativos de políticas que reduzem o papel da regulação pública e das instituições encarregadas de proteger os trabalhadores e as trabalhadoras.2 As reformas aprofundaram a precarização do trabalho devido à proliferação de contratos instáveis e que garantem menos direitos, geraram insegurança para quem trabalha e aumentaram as desigualdades sociais afetando, consequentemente, a organização e a representação sindical. O caso brasileiro não fugiu a essa regra. Cinco anos após a implementação da reforma, as taxas de sindicalização no país se reduziram para 8,4%, o que equivale a 8,4 milhões de pessoas sindicalizados em 2023, em um universo de 100,7 milhões de ocupados. É o menor percentual da série iniciada em 2012, quando a taxa de sindicalização era quase o dobro (16,1%).3

Vários fatores, simultâneos e interrelacionados, atuam para produzir esse resultado, que não pode ser atribuído exclusivamente à reforma trabalhista. São fatores de ordem econômica, política e ideológica, que contribuem para deslegitimar e desacreditar os sindicatos, levando à indiferença, quando não ao afastamento, dos trabalhadores em relação às organizações constituídas para representá-los. Mas ainda que a reforma não seja um fenômeno isolado, nem se limite às medidas adotadas em 2017, ela constitui um marco e uma dimensão fundamental desse processo. A taxa de sindicalização caiu de 16% para 14,4% entre 2012 e 2017 e para 11% em 2019, o que indica o impacto decisivo da reforma nessa trajetória de queda.4 O número dos sindicalizados diminui em todos os setores de atividade econômica, inclusive no setor público, onde a sindicalização é tradicionalmente mais elevada, passando de 28,1% para 18,3% entre 2012 e 2023. A situação é mais dramática entre os trabalhadores precários, pois a fragilidade das ocupações, embora não impeça a sindicalização, a torna mais difícil: os empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada registram uma taxa de sindicalização de 3,7%, os conta própria de 5,0% e os empregados em serviços domésticos de 2,0% em 2023.5

A redução na taxa de sindicalização é mais expressiva entre os jovens: em 2022, a sindicalização da população situada na faixa etária entre 15 e 29 anos encontrava-se em 5,0%.6 Muitos jovens ingressam no mercado de trabalho em ocupações precárias e não conseguem se inserir em vínculos mais estáveis e protegidos com o passar dos anos. Isso os torna suscetíveis à ideologia do empreendedorismo e refratários à organização coletiva, impondo desafios de monta ao movimento sindical.

A reforma trabalhista contribuiu para esse cenário de diversas maneiras. Em primeiro lugar, porque os contratos precários inibem a organização do trabalhador, dados os baixos salários, a maior rotatividade no emprego e a baixa cobertura de direitos a eles associados. Em segundo lugar, porque a multiplicação de formas contratuais dificulta a percepção de um sentido de pertencimento comum e, portanto, a criação de uma identidade coletiva. Em terceiro lugar porque, embora o foco da reforma de 2017 sejam os direitos trabalhistas, ela tem uma dimensão claramente anti-sindical, com várias medidas que visam contornar o papel dos sindicatos.

De volta aos anos 1990?

As mudanças aprovadas no governo Temer em 2017 retomaram, em grande medida, projetos formulados nos anos 1990 e argumentos disseminados desde então para promover a perspectiva de flexibilização de direitos. A lei 13.467 (que instituiu a reforma) foi antecedida pela lei 13.429, que autorizou a ampliação das possibilidades de terceirização, complementando o pacote de mudanças adotadas em 2017. Ambas fundamentam-se na premissa de que a CLT é ultrapassada e arcaica, caracterizada por um excesso de leis que “engessam” a liberdade patronal, restringem a livre iniciativa e desincentivam a contratação.

Partindo de dados concretos, relacionados às transformações do capitalismo, às mudanças na estrutura produtiva e às inovações tecnológicas -intensificadas com a uberização e o desenvolvimento da inteligência artificial -constroem-se mistificações, a exemplo da necessidade imperiosa de “modernizar” as relações de trabalho, expressão frequente entre empregadores, políticos e articulistas da grande imprensa em suas manifestações favoráveis à reforma. O discurso da modernização é uma forma de justificar a diferenciação de direitos e a adaptação das normas trabalhistas às condições econômicas dos distintos setores de atividade. Ele se associa à tese da segurança jurídica, invocada como um mantra para atacar uma legislação trabalhista supostamente promotora de injustiças, e para denunciar o “ativismo” dos tribunais que, conforme a visão dos empregadores, desrespeitariam a lei e a intenção dos legisladores ao proferir suas decisões. O pressuposto de que o entendimento direto entre as partes interessadas possibilitaria às empresas “empreender com segurança”, “atendendo as vontades e as realidades das pessoas”7 nada mais é do que uma forma de legitimar a substituição da lei pelo contrato -um contrato a ser celebrado, se possível, de modo individual e não coletivo -desresponsabilizando as empresas pelo conjunto da força de trabalho que emprega e o Estado pelo bem-estar dos cidadãos.

Todos esses argumentos foram sustentados pelo ministro Ives Gandra Martins Filho, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) por ocasião das mudanças introduzidas em 2017. Segundo ele, a reforma asseguraria “prestígio à negociação coletiva” e “quebra[ria] a rigidez da legislação”. Além disso, a máxima de que “é preciso flexibilizar direitos sociais para haver emprego” foi novamente entoada, sob a justificativa de que “nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direitos”. Sem Estado e sem direitos, o que resta ao indivíduo é a capacidade de empreender e competir, conforme a lógica da concorrência e as regras do mercado.

Dimensões da precarização

A reforma de 2017 atacou as instituições públicas de regulação do trabalho, para evitar ou minimizar sua intervenção nas relações de trabalho. Assim, as normas relativas à saúde e à segurança do trabalhador foram afrouxadas, a fiscalização das empresas reduzida e o acesso à Justiça do Trabalho dificultado. Ela também legalizou práticas outrora consideradas ilegais, reconhecendo novas modalidades de contratação precárias. Algumas dessas modalidades possibilitam a formalização do trabalho, mas expõem o trabalhador à insegurança e à vulnerabilidade. Esse é o caso do contrato intermitente, por meio do qual o empregador é autorizado a utilizar o tempo de trabalho de acordo com suas necessidades, sem que seja obrigado a garantir a seus empregados uma jornada definida e de lhes assegurar uma remuneração correspondente ao salário mínimo vigente. Por outro lado, algumas dessas formas de contratação fragilizam o vínculo de emprego. A possibilidade de contratar prestadores de serviços, como autônomos permanentes estimula a burla, pois permite a substituição de assalariados por falsos autônomos e transfere para o trabalhador, convertido em empreendedor de si mesmo, o ônus de assegurar sua proteção social.8

Os contratos precários promovem a despadronização da jornada e da remuneração, uma vez que buscam eliminar os tempos mortos, considerados “não produtivos” na medida em que não contribuem para a valorização de capital. Ampliam-se as incertezas na vida de quem trabalha quanto às horas de trabalho, de repouso e ao rendimento a ser auferido ao final do tempo disponibilizado à empresa, já que a remuneração pode variar conforme a demanda por trabalho e o modo de se contabilizar a jornada. Assim, estar à disposição da empresa deixa de ser considerado tempo de trabalho, pois o relógio de ponto só começa a girar se as horas trabalhadas geram lucro ao empregador. Trata-se, portanto, de uma forma de aumentar a produtividade em detrimento das garantias e da proteção ao trabalhador.

O rebaixamento da remuneração, de um lado, e a substituição de assalariados por autônomos, MEIs ou PJ, de outro, reduzem as contribuições previdenciárias, impactando as receitas da seguridade social. Nesse sentido, esses contratos afetam tanto os indivíduos contratados quanto a coletividade, já que o Estado perde recursos destinados ao financiamento de políticas públicas, o que fortalece o discurso em prol da austeridade. Desencadeia-se, assim, um processo contínuo de reformas no campo trabalhista e previdenciário, e de corte de gastos, especialmente no campo da saúde e da educação, restringindo os direitos sociais de gerações futuras. Além dos contratos precários diminuírem a arrecadação, os trabalhadores com vínculos precários têm dificuldades para contribuir de forma contínua e, sem acumular o tempo de contribuição necessário, não conseguem exercer seu direito à aposentadoria.

A reforma também autorizou a inversão da hierarquia dos instrumentos normativos, permitindo que a norma menos favorável aos trabalhadores se imponha sobre as demais. Ao invés de fortalecer os sindicatos, essa medida possibilita a redução de direitos garantidos em lei com a anuência sindical. Isto porque a derrogação da lei pela negociação, que estava no horizonte dos “reformadores” desde a década de 1990, foi, finalmente, autorizada. Assim, a prevalência do negociado sobre o legislado não passa de artifício para ocultar o verdadeiro objetivo da reforma: reduzir os custos do trabalho, uma vez que até 2017 os acordos e convenções prevaleciam sobre a lei, desde que fossem mais favoráveis do que os patamares estabelecidos pela legislação. A descentralização da negociação passa a ser atrativa para os empregadores, já que os acordos não mais precisam necessariamente melhorar as condições de trabalho. Nesse sentido, o argumento do estímulo à negociação coletiva dissimula o alvo a ser alcançado com a negociação: a renúncia de direitos.

Obstáculos à ação sindical

A reforma esvazia as prerrogativas sindicais ao possibilitar a homologação da rescisão contratual sem a intermediação sindical. Ora, o acompanhamento dos sindicatos é fundamental para que o trabalhador não seja lesado e não abra mão de direitos no momento da demissão. O mesmo ocorre ao facultar, aos trabalhadores cujos salários são duas vezes superiores ao teto da previdência, a possibilidade de negociarem individualmente alguns direitos, supondo que são capazes de negociar em pé de igualdade com seus empregadores. A individualização da negociação promove a diferenciação entre os trabalhadores conforme seu poder de barganha e torna os sindicatos dispensáveis aos olhos do trabalhador. O deslocamento do lócus da definição das regras que regem a relação de emprego para o mercado, para âmbitos inferiores de negociação, como o interior da própria empresa ou até mesmo para indivíduos, reduz o poder dos sindicatos. Além disso, a possibilidade de se criar comissões destinadas a representar os trabalhadores no local de trabalho e a negociar em seu nome não apenas introduz uma concorrência com os sindicatos como amplia o poder do empregador de determinar unilateralmente as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho.

Ainda que algumas dessas formas de contratação, como o contrato intermitente, tenham pouca incidência no mercado de trabalho, o que demonstra a falácia de seu potencial de geração de empregos, elas trazem desafios significativos à organização sindical. A diversificação contratual -que ocorre inclusive no setor público, anteriormente protegido por um regime próprio de contratação-e a liberalização da terceirização de qualquer tipo de atividade minam as bases de representação, pois fragmentam e pulverizam os coletivos de trabalhadores. Ser assalariado, autônomo ou terceirizado altera as condições objetivas em que se trabalha e afeta as condições subjetivas dos sujeitos, incidindo sobre a forma pela qual eles se vêem (ou não se vêem) enquanto trabalhadores e trabalhadoras, as relações que estabelecem com seus colegas e sua disposição a aderir aos sindicatos. Enquanto os assalariados formais têm direitos assegurados, os autônomos em uma relação de emprego disfarçada trabalham sem direitos e sem proteção sindical e os tercerizados, via de regra, recebem salários mais baixos e menos benefícios que os assegurados pela empresa tomadora de serviços. Além disso, a terceirização fragmenta coletivos de trabalho em categorias profissionais distintas, o que, segundo a legislação sindical brasileira, faz com que sejam representados por sindicatos diferentes. Estes, via de regra, são mais frágeis do que aqueles que representam os não terceirizados e negociam convenções coletivas menos protetivas.

O teletrabalho e outras formas de trabalho remoto -modalidades pouco praticadas nos primeiros anos pós-reforma, mas que se expandiram durante a pandemia da Covid 19 devido às exigências de isolamento social - acrescentam uma dificuldade adicional à capacidade dos sindicatos de organizar trabalhadores submetidos a diferentes formas de contratação: a dispersão territorial. O trabalho por plataforma também contribui para isso, bem como para o distanciamento dos trabalhadores em relação ao sindicato, uma vez que não estão reunidos em um mesmo local de trabalho, o que repercute sobre as formas de sociabilidade e a construção de redes de solidariedade, impondo obstáculos à organização e à ação coletiva.

Outro aspecto a ser destacado é que a ideologia neoliberal sobre a qual a reforma está alicerçada difunde-se entre os trabalhadores, fomentando ilusões quanto ao poder das capacidades e liberdades individuais, alimentando expectativas de autossuficiência e o sonho de ter seu próprio negócio. Ao apregoar as vantagens do trabalho autônomo, a ideologia do empreendedorismo distancia o trabalhador da organização coletiva e da luta por direitos. Isso fragiliza o sindicalismo de duas formas: pelo estímulo ao individualismo e à competitividade, e pelo enfraquecimento da solidariedade, afinal, trata-se de assumir os riscos inerentes à livre iniciativa para conquistar uma posição no mercado. O empreendedorismo vem sendo usado para justificar a precariedade e o rebaixamento de direitos, e isso produz um efeito desmobilizador. Além disso, o culto à meritocracia torna os sindicatos, bem como qualquer forma de associação, supostamente desnecessários, já que tudo passa a depender do esforço e da competência dos indivíduos. Também é importante mencionar as campanhas de difamação dos sindicatos, as práticas antissindicais promovidas pelas empresas, bem como o próprio ambiente político-ideológico que se conformou a partir do crescimento do conservadorismo e da extrema direita, sobretudo durante o mandato de Jair Bolsonaro (2019-2022), marcado por posicionamentos contrários ao movimento sindical e a movimentos sociais progressistas.

Mas nenhuma hegemonia é absoluta. Há rachaduras, fissuras, por meio das quais se constroem organizações e se realizam ações em defesa de direitos, embora não sem conflitos e contradições. Ao mesmo tempo em que sofrem o impacto da ideologia neoliberal, os trabalhadores vivenciam cotidianamente situações de exploração e precarização, o que lhes mostra a necessidade de se organizar para se manter no mercado de trabalho e reduzir sua vulnerabilidade. Ocorre que essa organização não se dá necessariamente sob a forma sindical. Os trabalhadores mais fortemente expostos ao trabalho precário, como os informais e falsos autônomos, vêm constituindo organizações alternativas aos sindicatos, como associações, cooperativas e coletivos. De um lado, há uma crença bastante difundida no Brasil de que os informais e autônomos não “têm direito” de se sindicalizar. De outro, verifica-se um movimento de deslegitimação e de rejeição da forma sindicato pois, dadas as suas condições de trabalho, os trabalhadores precarizados,      via de regra, não se sentem representados pelo sindicato. As próprias características da estrutura sindical brasileira contribuem para essa percepção, pois as regras que regem a organização sindical no Brasil facilitaram a existência de entidades cartoriais e burocratizadas,      ao assegurar o monopólio da representação na base e fontes seguras de financiamento, dos quais o mais importante era o chamado “imposto sindical”. Conforme visão bastante disseminada, os sindicatos seriam ineficientes, só estariam interessados em cobrar taxas dos filiados e em preservar sua estrutura burocrática, sem defender os interesses desses setores. 

Mas quais seriam esses interesses e a quem devem ser apresentados? Não há consenso a esse respeito. Enquanto a experiência de uma parcela dos informais e falsos autônomos lhes permite desmistificar o discurso da autonomia e da liberdade de empreender, reivindicando seu reconhecimento como trabalhadores junto ao Estado e ao patronato, outros mantêm-se presos a essa perspectiva, constituindo associações não para defender direitos trabalhistas, mas para melhorar sua situação “no mercado”, em um modelo semelhante ao de um clube de vantagens e benefícios para produtores e consumidores: no caso de parcela dos entregadores e motoristas de aplicativos, por exemplo, trata-se de obter descontos na compra de motos e automóveis, no preço da gasolina, além de seguros de automóvel, motocicleta, de vida e para as mercadorias transportadas. Para outras categorias, como as cuidadoras de idosos e crianças, destacam-se iniciativas voltadas para promover a valorização profissional, a prestação de serviços ou até mesmo a intermediação da força de trabalho.9 Ou seja, há uma diversidade muito grande de situações e perspectivas a serem consideradas, que compreendem tanto os valores da solidariedade quanto os benefícios individuais como razões para a organização coletiva. Do mesmo modo que há sindicatos mais ou menos representativos, mais ou menos atuantes e com perfis político-ideológicos distintos, há diferentes tipos de associação, sendo que algumas inclusive não descartam a possibilidade de vir a se transformar em sindicatos para melhor exercer a tarefa de organizar, representar e mobilizar os trabalhadores.  

As mudanças na estrutura ocupacional e a ampliação de modalidades de contratação autorizadas pela reforma trabalhista, associadas à concorrência advinda de outras formas de organização, contribuem para reduzir a taxa de sindicalização, o que ilustra parte das dificuldades enfrentadas pelos sindicatos. Outros obstáculos se expressam na redução dos acordos e convenções coletivas. A despeito da retórica de que a reforma representaria um estímulo à negociação coletiva, diversas pesquisas realizadas a partir do Mediador, sistema de registro dos instrumentos coletivos mantido pela Secretaria de Relações de Trabalho do governo federal, demonstram que o número de instrumentos normativos negociados diminuiu após a reforma, perfazendo uma queda de 19% no caso dos acordos e de 10% no caso das convenções coletivas, entre 2012 e 2022.10

Além das dificuldades para fechar acordos, seus resultados tendem a ser piores. O processo de negociação é marcado por uma maior pressão patronal para instituir cláusulas que rebaixam as condições de trabalho, nos termos das mudanças introduzidas na legislação após a reforma. Observa-se a intensificação da negociação de temas de interesse patronal, com a retirada de cláusulas de interesse dos trabalhadores e a introdução de cláusulas desfavoráveis a eles. Ganham proeminência os temas relativos às formas de contratação, especialmente a terceirização, e à jornada de trabalho, com destaque para a introdução da jornada 12×36, a redução do intervalo intrajornada e facilidades para a implantação de banco de horas, inclusive por acordo individual, possibilidade assegurada pela reforma.11

Por outro lado, muitos acordos e convenções coletivas passaram a prever taxas, a serem cobradas de todos os trabalhadores beneficiados pelo processo de negociação, como uma espécie de contrapartida pelo trabalho realizado pelos sindicatos. A chamada taxa negocial tornou-se uma estratégia para tentar compensar a perda de receita, pois a reforma condicionou a cobrança do imposto sindical- uma das três contribuições previstas na legislação brasileira- à anuência prévia por parte do trabalhador. Essa medida seguiu as diretrizes de decisões do judiciário que, desde 1998, no âmbito do TST, e a partir de 2003, no STF, restringiu a cobrança das duas outras contribuições compulsórias (a confederativa e a assistencial) aos trabalhadores filiados, por entender que sua obrigatoriedade fere a liberdade de sindicalização. A decisão do STF foi revista em 2023, pois com o fim da obrigatoriedade do imposto a partir da reforma, os sindicatos perderam praticamente todas as fontes de financiamento anteriormente garantidas, só lhes restando a mensalidade paga voluntariamente por um número cada vez mais reduzido de sindicalizados.12A partir dessa revisão, os sindicatos podem cobrar contribuições de todos os trabalhadores, mesmo dos não filiados, desde que aprovadas em assembleias de base.

A redução de recursos afetou a capacidade do sindicalismo promover ações junto a sua base e apoiar movimentos sociais na defesa de direitos de cidadania. Os sindicatos passaram a reduzir suas despesas, demitindo funcionários, vendendo patrimônio, cortando serviços e gastos com comunicação, ao mesmo tempo em que adotaram iniciativas visando aumentar sua receita, a exemplo de campanhas de sindicalização. Contudo, a filiação de novos trabalhadores esbarra em vários obstáculos, como a proliferação de diferentes tipos de contrato e as questões de ordem subjetiva anteriormente apontadas, que levam à indiferença ou à uma visão negativa sobre os sindicatos.13

Como enfrentar a reforma e os desafios que se apresentam ao movimento sindical?

Desde 2017, a reforma tem suscitado críticas por parte do movimento sindical. Embora uma parcela não desprezível dos dirigentes sindicais tenha assumido o discurso da modernização das relações de trabalho e se iludido com a ideia de que a prevalência do negociado sobre o legislado pudesse fortalecer os sindicatos, a revogação da reforma foi uma proposta assumida por ampla maioria.14

A proposta de revogação consta na Agenda Prioritária da Classe Trabalhadora: democracia, soberania e desenvolvimento com justiça social, documento assinado por sete centrais sindicais15 e apresentado aos candidatos às eleições de 2018. O documento em questão defende a revogação dos aspectos negativos da reforma, o que sugere duas possibilidades: a existência de aspectos positivos na mesma ou a ausência de consenso entre as centrais com relação ao que deve ser revogado.

A posição favorável à revogação dos “marcos regressivos” da reforma foi retomada em plena pandemia, durante a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), organizada pelo Fórum das Centrais Sindicais para debater Emprego, Direitos, Democracia e Vida.16 A bandeira da revogação ressurgiu com força na campanha presidencial de 2022. Depois de ter acenado com a possibilidade de incluir a revogação em seu programa de governo, Lula recuou, passando a falar em rever pontos da reforma, para contemplar os setores do movimento sindical que defendiam essa posição.17 Depois de assumir o governo, Lula criou um grupo de trabalho tripartite para debater um novo marco regulatório para as relações de trabalho, mas a discussão não avançou. A revogação continua a ser um projeto distante, pois nenhuma medida prática foi adotada nesse sentido.

Enquanto isso, além da queda na sindicalização, os sindicatos continuam enfrentando dificuldades para mobilizar sua base. Isso é mais evidente quando se trata de direitos e pautas políticas mais amplas, já que a participação em manifestações tem sido muito pequena, o que revela um baixo engajamento em torno de demandas que extrapolam a esfera econômico-corporativa e uma tendência à despolitização. O fiasco do 1º de maio de 2024 foi expressão disso. A marcha a Brasília em defesa da pauta da classe trabalhadora, realizada no mesmo mês, também não empolgou, tendo reunido principalmente dirigentes e militantes sindicais. Mas a própria capacidade de mobilizar em torno de pautas diretamente relacionadas à categoria foi afetada. As greves, que haviam aumentado significativamente entre 2011 e 2016, passando de 555 a 2.114 ao ano, se reduziram drasticamente a partir de então, chegando a 649 em 2020, no auge da pandemia. Esse resultado está relacionado a uma série de fatores, como as mudanças estruturais no mercado de trabalho, agravadas pela crise econômica e pela própria crise sanitária, mas o aumento da informalidade e de vínculos de emprego disfarçados, potencializados após a reforma trabalhista, não pode ser desconsiderado nesse processo, uma vez que deixa os trabalhadores em uma condição mais frágil e vulnerável para aderir à luta reivindicativa. É claro que isso não os impede de fazer greve, como demonstra o “breque dos apps” realizado pelos entregadores em 2020, mas impõe desafios à sua organização. Apesar da recuperação dos indicadores de greve no pós-pandemia, eles ainda estão abaixo dos registrados entre 2013 e 2018: foram 1.132 greves em 2023.18 As greves mantêm a tendência de prevalência de pautas defensivas, em prol da manutenção das condições de trabalho vigentes na categoria ou contra o descumprimento de direitos. A intensificação da precarização do trabalho repercute no conteúdo das reivindicações apresentadas, bem como na duração das greves, que tendem a ser mais curtas, a maioria se encerrando no mesmo dia de sua deflagração.

Outra questão a ser considerada diz respeito aos diferentes sentidos das mobilizações realizadas. As disputas em torno da regulação do trabalho por aplicativos nos permitem ilustrar as diferentes posições assumidas por sindicatos e associações constituídas para representar esses trabalhadores, divididas entre a defesa da CLT, do trabalho autônomo e de uma terceira via, que garanta algum nível de direitos. Depois de ter instituído um grupo de trabalho tripartite para elaborar propostas destinadas a regulamentar o transporte de bens, de pessoas e “outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”, o governo apresentou um Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024) restrito ao transporte de passageiros em veículos de quatro rodas e bastante controverso. Um contingente expressivo de trabalhadores tem recusado a regulamentação proposta, considerando que o modelo de “autonomia com direitos” defendido pelo governo representa um atentado à sua liberdade de empreender. Motoristas e entregadores, temerosos de que as regras propostas sejam estendidas a eles, promoveram manifestações em diversas capitais do país contra o projeto. Chama a atenção, nessas manifestações, não apenas as críticas àquilo que é considerado uma intervenção indevida do governo como também um rechaço aos sindicatos e centrais sindicais,19 que se apresentam como representantes desses trabalhadores na mesa de negociação, apesar da base não ser sindicalizada.

É nesse sentido que afirmamos que o movimento sindical foi fragilizado pela legislação, mas também, de uma certa maneira, abandonado pelos trabalhadores que se propõe a organizar. Sucessivos movimentos de flexibilização e precarização do trabalho, cujo ápice foi a reforma trabalhista de 2017, enfraqueceram os sindicatos, que têm mostrado dificuldades para se reaproximar das bases, especialmente nos segmentos mais precarizados. Mas, apesar das dificuldades, os sindicatos não estão fadados ao desaparecimento. A julgar por uma pesquisa recente, parece haver espaço para a sindicalização crescer, pois 19% dos trabalhadores entrevistados “nunca participaram, mas gostariam de participar de algum sindicato”,20 o que revela um potencial de recuperação nos indicadores atuais. Além disso, a campanha contra a escala de trabalho 6 X 1, lançada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT)21 pode ser uma oportunidade para o movimento sindical incorporar uma demanda que interessa aos setores precários, melhorando sua imagem junto a esses trabalhadores. Não se pode esquecer que a redução da jornada é uma bandeira histórica do movimento sindical e que a luta pela redução da jornada para 40 horas semanais sem redução salarial esteve presente na pauta das centrais desde o primeiro governo Lula. Não ter o protagonismo na condução da campanha deflagrada pelo VAT impedirá o sindicalismo de se somar a esse movimento?

Este artigo retoma e atualiza argumentos desenvolvidos em outros textos, especialmente: Galvão, Andréia; Krein, José Dari. A contrarreforma trabalhista e a fragilização das instituições públicas do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. v.53, p.89-106, 2018. Galvão, Andréia.Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos In: José Dari Krein et al., (Org.) Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 199-223.

Notas de rodapé

  1. Para a análise de alguns países da Europa e América Latina, cf. Biavaschi, Magda et al. O impacto de algumas reformas trabalhistas na regulação e nas instituições públicas em diálogo comparado. In: José Dari Krein et al. Dimensões críticas da reforma trabalhista. Campinas: CESIT, 2018.
  2. Para o caso brasileiro, conferir, entre outros, os artigos compilados em: Krein, José Dari et al. (Org.) O trabalho pós Reforma-Trabalhista (2017). Campinas: Cesit, 2021, 2 volumes.
  3. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-Contínua, do IBGE. Cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/40445-em-2023-numero-de-sindicalizados-cai-para-8-4-milhoes-o-menor-desde-2012.
  4. A queda se mantém mesmo após a recuperação do nível de emprego e o aumento da população ocupada verificado, sobretudo, após 2021, quando os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre o mercado de trabalho começaram a se reverter. Em 2022, a taxa de sindicalização cai abaixo de dois dígitos, alcançando 9,2%, e se reduz ainda mais em 2023, como mencionado acima (8,4%).
  5. Ver em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/40445-em-2023-numero-de-sindicalizados-cai-para-8-4-milhoes-o-menor-desde-2012.
  6. Silva, Sandro Pereira; Campos, André Gambier. Filiação sindical de trabalhadores no Brasil (2012-2022): indicadores, contexto institucional e fatores determinantes (Publicação Expressa). Brasília: Ipea (Texto para Discussão, n.  2957), jan. 2024, p. 27.
  7. Marinho, Rogério. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer ao projeto de lei nº 6.787, de 2016, abril de 2017. Substitutivo ao projeto de lei nº 6.787, de 2016, abril de 2017, p. 19.
  8. Em 2005, a legislação instituiu a possibilidade de se criar empresas constituídas por uma única pessoa, denominada “Pessoa Jurídica” (PJ), para a prestação de serviços intelectuais. O processo de “pejotização”, como é chamado, se alastrou para diferentes setores, substituindo a relação de emprego por uma relação de natureza civil ou comercial. Em 2008, uma nova legislação criou a figura do Microempreendedor Individual (MEI), assegurando uma contribuição previdenciária reduzida para os autônomos com até um empregado e que possuem um determinado limite de faturamento anual. A reforma trabalhista autoriza PJs e MEIs a prestar serviço de maneira contínua para uma única empresa, sem que isso seja caracterizado como vínculo empregatício.
  9. Galvão, Andréia; Lemos, Patrícia; Trópia, Patrícia. Estratégias sindicais de organização de trabalhadores/as afetados pela  precarização no Brasil In: Sandro Pereira Silva et al. (Org.) Regulação trabalhista e ação coletiva de trabalhadores no Brasil no século XXI, Brasília: Associação dos Funcionários do Ipea, 2024, p. 172-195.
  10. Silva e Campos, op. Cit, p. 16.
  11. Colombi, Ana Paula; Teixeira, Marilane e Pelatieri, Patrícia. Impactos da reforma trabalhista sobre a negociação coletiva: uma comparação entre os instrumentos Coletivos de 2016 e 2019. Krein, José Dari et al. (Org.) O trabalho pós Reforma-Trabalhista (2017). Campinas: Cesit, 2021, vol. 2, p. 525-564.
  12. Os dados disponíveis indicam uma redução de 98% na arrecadação do imposto sindical entre 2017 e 2022. Cf. https://www.poder360.com.br/economia/contribuicao-sindical-despenca-98-em-5-anos/. Acesso em: 04 de outubro de 2023.
  13. Em 2018 o Índice de Confiança Social dos sindicatos chegou ao nível mais baixo em 15 anos, 35 pontos, numa escala de 0 a 100. Em 2023, subiu para 48, mas é a terceira instituição pior avaliada, entre as 20 pesquisadas pelo Instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria (IPEC). Cf. https://www.ipecinteligencia.com.br/Repository/Files/2223/230196_ICS_INDICE_CONFIANCA_SOCIAL_2023.pdf.
  14. Pesquisa realizada pela Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (REMIR) junto a dirigentes sindicais de diferentes setores registrou uma tendência majoritária (95%) de respondentes contrários e somente 2,5% favoráveis à reforma, sendo que 92% defendiam a sua completa revogação. A mesma pesquisa revelou que 9% dos dirigentes sindicais entrevistados era favorável à prevalência do negociado sobre o legislado e 14% favorável, a depender do tema em discussão. Cf. Galvão, op. Cit.
  15. CSB, CTB, CUT, Força Sindical, Intersindical, Nova Central e UGT. Disponível em https://www.dieese.org.br/documentossindicais/2018/agendaPrioritariaClasseTrabalhadora/index.html?page=1.pdf.
  16. Assinam o documento: CSB, CTB, CUT, Força Sindical, Intersindical Central, Intersindical Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora, Nova Central, Pública e UGT. Disponível em https://www.dieese.org.br/documentossindicais/2022/CONCLAT-pautas-centrais-sindicais-07-abril.html.
  17. Já o movimento Revoga Já, constituído por iniciativa do Sindicato dos Advogados de São Paulo, adotou como lema “Nenhum Trabalhador Sem Direitos”.
  18. Todos os dados são do Sistema de Acompanhamento de Greves do Dieese.
  19. Ver, por exemplo, https://www.otempo.com.br/cidades/sindicato-nao-motoristas-de-aplicativo-protestam-contra-regulamentacao-em-bh-1.3346675
  20. Centro de Análise da Sociedade Brasileira, Pesquisa As Classes Trabalhadoras, 2024, p. 9.
  21. Trata-se de uma escala de trabalho de seis dias semanais seguidos por um dia de folga. Considerando a jornada legal de trabalho de 44 horas semanais, isso representa uma jornada diária de 7 horas e 20 minutos, desconsiderando-se eventuais horas extras. O movimento lançou um abaixo assinado, endossado por quase 3 milhões de pessoas, e deu origem a uma proposta de emenda à Constituição que sinaliza também para a redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais. Cf. https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR135067

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