Entrevista com Ludmila Abílio: “O trabalho intermitente formaliza o trabalhador uberizado”
Por Esquerda Diário
Ludmila Abílio é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP, pelo Programa Eixos Temáticos USP – ProETUSP. Também é pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT), Professora colaboradora do Programa de Pós graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade de Campinas e autora do livro “Sem maquiagem: O trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos”. Nesta entrevista, concedida a Vitória Camargo, mestranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e editora do Ideias de Esquerda, abordamos as temáticas da uberização do trabalho, gênero, Reforma Trabalhista e mais.
1- Em artigo, você define que “a uberização nomeia uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho, tendo como elementos centrais: o trabalho sob demanda e processos de informalização”. Além disso, agrega o elemento do “autogerenciamento subordinado”. Pode explicar essa definição?
Primeiramente, pensar a uberização como uma nova forma de controle, subordinação e gerenciamento do trabalho significa pensar a uberização como algo complexo, que envolve uma série de elementos em transformação e que é resultado de processos que estão em curso há décadas no mundo do trabalho. Então, é uma primeira tentativa de não tornar a uberização sinônimo de “trabalho por plataformas”, já que, assim como pensamos o fordismo e o toyotismo, por exemplo, como sentidos amplos que vão descrever modos de vida, valores, práticas culturais, etc, tudo isso também está em jogo na definição de uberização. Mas também, pensar a uberização é pensar essa transformação em ato das relações de trabalho, daí a noção de “zação”, essa ideia de algo em movimento e em transformação. Assim, falar em gerenciamento e controle do trabalho adquire sentido sociológico muito forte, porque diz das formas como os trabalhadores estão sendo subordinados, explorados, controlados, e como as relações de trabalho estão se organizando.
Já o “trabalho sob demanda” contém essa ideia de que são trabalhadores tão disponíveis ao trabalho, que, se é verdade que os “trabalhadores sob demanda” sempre existiram, agora estão sendo organizados de maneira centralizada e racionalizada, com meios técnico-políticos que garantem o uso super racional e eficiente dessa força de trabalho, de contingentes de centenas de milhares de trabalhadores. Passam a ser “formalmente” – termo complicado, pois tudo está se “informalizando”, mas no sentido de ter legitimidade e estar se reproduzindo no tempo e no espaço – subordinados como “trabalhadores sob demanda”, e sabemos dos riscos que estamos correndo em ver isso de fato ser legalizado. Isso está em disputa o tempo todo. Se isso se legaliza dessa forma, realmente se abre a porteira para a uberização em diversos setores, para além das plataformas digitais. Então, ser um “trabalhador sob demanda” é ser um trabalhador que perde todas as garantias, tanto sobre a duração da sua jornada de trabalho, quanto sobre a distribuição do trabalho ao longo de sua jornada, além da remuneração de seu tempo de trabalho. Passa-se a viver sem garantia alguma sobre sua própria reprodução social. Essa é a chave do “trabalho sob demanda”. Por sua vez, as empresas passam a ter uma utilização ótima, bastante eficiente, dessa força de trabalho, que só será utilizada, como disse Tábata Amaral em seu projeto de lei de “trabalho sob demanda”, no tempo “efetivo” de produção. Trata-se de uma eliminação dos poros do trabalho.
Sobre os processos de informalização, seria uma discussão longa, mas, para resumir, diz respeito a essa perda de formas estáveis sobre uma série de elementos que compõem o processo de trabalho. Não é apenas a transformação dos trabalhadores em trabalhadores informais, mas se trata de uma perda de formas reconhecíveis, estáveis e formalizadas, mesmo que não seja no sentido “legal” da palavra, mas no sentido social, das regras que regem o mundo do trabalho. Então, vê-se os trabalhadores submetidos às regras que já não estão claras e estão em movimento o tempo todo, que envolve até mesmo o valor do trabalho, a forma de distribuição, quanto do tempo será necessário para garantir o mínimo para sua sobrevivência. São elementos que estão em curso há décadas e implicam nessa perda de distinções, de formas reconhecíveis. Isso se “informaliza”, quanto ao que é tempo de trabalho e o que não é, o que são custos de trabalho e o que não são, o que é local de trabalho e o que não é, o que são riscos do trabalho, quem assume. Esse borramento de fronteiras é extremamente produtivo e está atravessando o mundo do trabalho como um todo. Para o lado dos trabalhadores, é essa nebulosidade, mas isso não opera dessa forma para o lado das empresas, para o lado de quem detém esse poder de subordinar, gerenciar e controlar. Essas distinções entre custos e tempo de trabalho, para o lado das empresas, estão inclusive cada vez mais claras e “mapeáveis” por meio do gerenciamento algorítmico do trabalho.
Por fim, esse elemento do autogerenciamento subordinado está inteiramente relacionado a essas outras duas definições. Refere-se a essa transferência da gestão do tempo e do gerenciamento de uma série de elementos do cotidiano do trabalho. São decisões e formas de lidar com o trabalho que são transferidas para o trabalhador, mas isso não significa a perda de controle por parte da empresa. Significa o contrário disso. Essas décadas de mudanças no mundo do trabalho, que envolvem o toyotismo em um sentido complexo, referem-se a essa constatação de que somos excelentes gerentes de nós mesmos de forma produtiva. Nosso engajamento com o trabalho tem resultados muito produtivos para o lado das empresas, em um contexto de ameaça de desemprego, de concorrência e de precarização do trabalho, claro. Implica que nós temos que nos engajar permanentemente para nos garantirmos nesse “jogo”, que é cada vez mais complexo e inseguro. Autogerenciamento, então, é isso: uma tentativa de deslocamento da definição de “empreendedorismo” para essa definição que coloca que o que está em jogo é “se gerenciar” sob regras as quais você não domina e sobre as quais não tem poder de negociação. Mas se preza por esse gerenciamento, por essa gestão do próprio tempo. Isso move muito as relações de trabalho.
2- A classe trabalhadora das economias da periferia do capitalismo possui historicamente um contingente superior de trabalhadores informais, precários, rotativos, etc, que você utiliza a categoria da “viração” para compreender. Ainda assim, nos últimos anos, formas de exploração do trabalho como a terceirização do trabalho e a uberização ampliaram esse contingente. Como você explica esse processo? Qual relação existe entre a terceirização e a uberização?
O que está em jogo é não apenas a ampliação de trabalhadores informais, precários, etc, mas como a informalidade, a precariedade, vão se transformando. Isso nos traz desafios grandes, pois são permanências que se atualizam, aprofundam-se, é difícil defini-las, conceituá-las. Então falamos em precarização do trabalho, flexibilização, olhando para um mundo estrutural e historicamente desigual, injusto, precário, flexível. Mas de fato enfrentamos transformações que não cabem na dualidade “novo ou velho”. Nesse sentido, a viração tem um sentido forte, descreve modos de vida que se constituem nesse contexto de alta exploração e ausência de garantias sólidas e estáveis. A viração vai tecendo a vida das pessoas e a reprodução social do mundo do trabalho brasileiro.
Entretanto, podemos pensar que há algo de novo na uberização, o que chamei de “subsunção real da viração”, no sentido de que esses modos de vida que são estruturantes e estruturados no mundo do trabalho brasileiro estão sendo subsumidos de forma centralizada e racionalizada. Pensar em uberização é também pensar numa subordinação do viver periférico que está oligopolizada, bem organizada, que conta com meios técnico-políticos para essa gestão.
Em relação à segunda parte da sua questão, a uberização é também um tipo de terceirização, mas uma terceirização que opera em novos moldes. Gosto muito da definição de David Harvey sobre a “organização na dispersão”. As terceirizações já eram parte disso, a riqueza e os lucros são centralizados, mas cadeias produtivas se expandem globalmente pelos territórios, de forma organizada. Externalizam-se custos e riscos e parte do gerenciamento, ao mesmo tempo em que se centraliza o controle e a apropriação sobre o que é produzido. Mas a uberização vai se inserir num tipo novo de externalização organizada e subordinada, algo muito contemporâneo e que nos traz muitos desafios. Trata-se do que podemos chamar de crowdsourcing, a externalização para multidões de trabalhadores disponíveis e engajados, que corre junto com o controle centralizado de que falávamos acima. O crowdsourcing envolve uma série de elementos, como as indistinções contemporâneas entre o que é e não é trabalho, o que é e não é tempo de trabalho, o que são custos do trabalho, etc. O crowdsourcing precede os processos de digitalização do trabalho. Podemos recuperar o exemplo das revendedoras da Natura, um milhão de mulheres (atualmente em torno de 2 milhões) em uma única empresa, lá estão todos esses elementos em ato. A perda de formas – que não quer dizer perda de controle, pelo contrário, é um controle modulável – é elemento central dessa história toda.
3- Em seu livro, Sem maquiagem, você aborda o caso das revendedoras da Natura, o que permite refletirmos diversas relações entre gênero e classe. Como você vê essa relação, levando em conta a precarização do trabalho e da vida?
Com as revendedoras da Natura, conseguimos pensar em vários aspectos das transformações no trabalho. O primeiro deles é que se trata de uma atividade tão irrelevante politicamente, isto é, que, apesar de o sistema de vendas chegar a abarcar mais de 100 milhões de pessoas pelo mundo, esse fenômeno não tem relevância social. A hipótese mais provável, que é quase uma certeza, é por estar relacionado a um trabalho tipicamente feminino. Olhar para esse trabalho nos ajuda a pensar como características associadas historicamente às mulheres estão hoje no cerne das transformações no trabalho. Então, esses elementos que vão caracterizar a flexibilização e posteriormente se aprofundar com a uberização estão historicamente associados ao trabalho tipicamente feminino: as indistintições entre o que é e o que não é tempo de trabalho, local de trabalho, a polivalência precária, o desempenho de várias atividades em uma mesma ocupação, ou no trabalho doméstico. Aí precisamos olhar tanto para o trabalho reprodutivo quanto para o produtivo para pensar as questões relacionadas às mulheres. Depois ainda temos que pensar que as mulheres negras serão as que concentrarão todos esses elementos ao longo de sua trajetória, muito mais fortemente. Esses elementos hoje estão se generalizando pelas relações de trabalho e ganham visibilidade por isso, porque não estão mais restritos aos negros e negras, nem aos países da periferia. Assim, é uma tendência que vai atravessando o mundo do trabalho.
Uma questão interessante que envolve as revendedoras é que a expansão desse trabalho se deu justamente no governo Lula, quando você vê um crescimento de 200 mil mulheres por ano, o que traz alguns dilemas para pensarmos. A adesão a um trabalho precário, nem reconhecido como trabalho, estava também relacionado às melhorias que estavam sendo promovidas na vida dos trabalhadores e trabalhadoras. O fato de um público, que foi chamado de “nova classe média”, “classe C”, expandir-se, ter um aumento do seu poder aquisitivo, ter maior acesso ao crédito, ter um aumento real do seu salário mínimo, redução da taxa do desemprego e da informalidade, também se traduziu na adesão de mais mulheres que passavam a ingressar como revendedoras e também novas consumidoras do mercado de higiene e beleza. Esse é um dos mercados com crescimento mais expressivo, que vai ser encabeçado pelas mulheres durante aquele período.
4- De que maneira a Reforma Trabalhista, trazendo consigo a categoria do “trabalho intermitente” para o emprego formal, significa também um impulso à uberização?
De fato, o “trabalho intermitente” é muito emblemático do que foi feito na Reforma Trabalhista, que é um processo de informalização da categoria de trabalho formal. Então, a Reforma informaliza, mudando de fato a essência do que é e do que constitui historicamente o emprego formal. É uma mudança muito profunda na regulação do trabalho. Isso está atravessando cada artigo, cada detalhe, cada minúcia da Reforma Trabalhista. O trabalho intermitente é uma formalização de um trabalhador uberizado. O que é ser um trabalhador intermitente? Figura nas estatísticas como um empregado formal, mas sem garantia alguma sobre a sua sobrevivência, sobre a sua reprodução social. Inclusive, o trabalho intermitente vai legalizar que um empregado formal ganhe menos do que um salário mínimo por mês, que é algo histórico também. É uma mudança nos patamares mínimos. Passa a se viver como um “trabalhador sob demanda”, que não tem mais garantias sobre a sua jornada, sobre a remuneração por dia de trabalho e que vive disponível para o trabalho, esperando ser recrutado. Então, de fato é uma formalização da uberização.
5- Por fim, você trata em alguns textos da “oligopolização das empresas de delivery”. Pode explicar esse processo? Quais são os impactos disso para os trabalhadores uberizados?
A oligopolização das empresas é algo que precisamos compreender melhor e nos aprofundarmos. Nós olhamos muito para o trabalho e pouco para as empresas, até porque é muito mais difícil conseguirmos adentrar essas empresas e entendermos suas formas de funcionamento. É um campo, uma entrada, muito mais difícil de conseguirmos ter. Mas precisamos entender melhor esses processos, que se relacionam à financeirização, com essa imbricação da financeirização nas novas formas de constituição e ação das próprias empresas, com os objetivos que movem essas empresas no mundo das finanças. De todo modo, na prática, vemos que, em poucos anos, essas empresas reconfiguraram completamente o setor de entregas. Havia empresas terceirizadas que povoavam o cenário urbano, de maior e menor porte, ou seja, desde empresas de “fundo de quintal” que contratavam formal e às vezes informalmente uma dezena de motoboys até empresas de grande porte, que contratavam centenas de motoboys e concorriam em licitações para serviços públicos. Não é que essas empresas desapareceram completamente. Mas, de fato, as empresas que atuam por meio das plataformas conseguiram centralizar o controle e a subordinação de grande parte desses entregadores. Como é muito difícil de obtermos os dados e tudo isso está sempre em movimento, ao mesmo tempo em que as empresas conseguem ter grande privacidade sobre seus dados, não conseguimos visualizar esse movimento no tempo e como ele vai se transformando. Há toda uma tentativa de produção de dados em torno disso, mas que nós estamos ainda aprendendo caminhos para alcançar um retrato próximo da realidade. Enfim, é muito importante essa questão, porque pensar em uberização é pensar em oligopolização. Há, por um lado, a dispersão do trabalho, uma dispersão informalizada, que envolve um altíssimo contingente de trabalhadores. Por outro lado, há uma centralização do controle do trabalho e, consequentemente, a concentração de ganhos. Temos que sempre olhar para ambos os lados, se não não compreendemos esse processo em ato.
Esta entrevista foi realizada majoritariamente a partir da transcrição de áudios.
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Fonte: Esquerda Diário
Data original da publicação 16/04/2023