Por trás da permanente crise do Trabalho
Por Liana Carleial | Outras Palavras
“A crise do trabalho no mundo capitalista é permanente. O processo de constituição firme e precisa, a olho nu, da relação capital-trabalho exigiu muito tempo para ser percebida. Castel (1995) considerou que, em 1300, já haviam evidências do trabalho jornaleiro muito próximo do que hoje, a partir da reforma trabalhista de 2017, chama-se trabalho intermitente.
Tanto é verdade que, Marx isentou os economistas políticos clássicos, Adam Smith e David Ricardo, por não terem conseguido identificar, em suas reflexões, a origem do excedente econômico, mesmo que tivessem esse firme propósito. Na realidade, Marx argumentou que, só após 1830, quando houve a liberação da ação sindical na Inglaterra, foi possível relatar o que ficou claro sob os olhos de todos, as classes sociais inerentes ao capitalismo: os capitalistas e os trabalhadores.
Esse fato não impediu porém, a esses grandes economistas, de retratarem muito bem a natureza do mercado de trabalho sob o capital, bem como a presença do desemprego como um de seus elementos constituintes. Nada mais ilustrativo do que o capítulo VII de “A Riqueza das Nações” quando Adam Smith afirma, em 1756, “os capitalistas querem pagar o mínimo possível e os trabalhadores querem ganhar o máximo possível”, deixando claro que compreendia a natureza das relações que se iniciavam. Essa questão está, até hoje, na base da relação contraditória entre o capital e o trabalho.
Ao longo desses últimos três séculos, o capitalismo modificou-se, adentrou os diferentes setores produtivos, internacionalizou-se, assumiu e ultrapassou a forma mercantil, a industrial-bancária, instituindo o crédito como a sua moeda específica e, finalmente, cristalizou-se como capital financeiro, que contém em si todas as formas anteriores. Atravessou os oceanos, as culturas e ideologias, lançou mão da tecnologia, alterando estruturas produtivas, organizações da produção e do trabalho. Seduziu os Estados Nacionais transformando-os em plataformas financeiras e agentes de seu próprio interesse, hierarquizou os diferentes países e moldou políticas públicas. De forma exitosa alterou formatos de firmas, padrões de concorrência intercapitalistas e aprofundou de forma espantosa a sua base específica: a exploração da força de trabalho.
A crise, que chamo aqui de permanente, é retroalimentada pela renovada dificuldade de reconhecimento dessa centralidade inelutável: para viver o homem continua precisando, obrigatoriamente, vender a sua força de trabalho. E o trabalho assalariado é a forma que assumiu o trabalho no capitalismo.
Nada é mais forte do que essa evidência cotidianamente comprovada. Mesmo diante de todas as mudanças e transformações vividas pelo capitalismo, o assalariamento é a forma prevalente de inserção nos mercados de trabalho no mundo e os empresários em todos os países não chegam a 5% dos ocupados. O capitalismo se estruturou a partir da constituição da força de trabalho, da instituição da relação salarial movidos pelo movimento da dinâmica e concorrência capitalistas, incluindo os sindicatos.
Filgueiras e Cavalcante (2020) evidenciam que, entre 1991-2014, o assalariamento cresce no mundo, ou seja, em todos os continentes, incluindo a África. De forma mais clara, no mundo, em 2018, 52% dos ocupados eram assalariados, 34,1% eram trabalhadores por conta própria e apenas 3% de empregadores, usando dados do IL0, ou seja, o bureau da ONU, responsável pelas estatísticas do trabalho. No entanto, se analisamos o caso dos países de alta renda, essas participações, em 2018, atingem 87,2% de assalariados, 8,6% de trabalhadores por conta própria e 3,3% de empregadores. O Brasil, segundo a mesma fonte, em 2018, tinha 67,75% de assalariados, 25,16% trabalhadores por conta própria e 4,73% de empregadores entre os ocupados. Na realidade, o Brasil, nessa data, ostentava a resultante dos governos do PT, quando ocorreu um aumento significativo de trabalhadores com carteira assinada, 22 milhões, no período (1).
É claro que neste conjunto de trabalhadores assalariados, há diferenças significativas entre os países, como por exemplo, entre o que é ser um assalariado no Brasil, vis-à-vis, um assalariado num país de alta renda, e essa diferença se faz, principalmente, pela presença de políticas de proteção social, como o aparato do estado de bem-estar social naqueles países (2), bem como por respeito ao padrão salarial conquistado ao longo da trajetória de cada um deles.
No entanto, desde o final dos anos 1970, se discute a crise do trabalho e o seu fim, sob o capital. Há um conjunto importante de autores que dedicou-se a esse tema para surpresa de Castel (1998), que afirmou: “estranha crise, essa do assalariamento”, pois as estatísticas não correspondem, especialmente na França.
A repercussão deste argumento decorre fundamentalmente dos desdobramentos já bastante conhecidos das interpretações de Gorz (1988, 1997) e Méda (1995), assentadas fortemente no “caráter libertador” da tecnologia e na suposta incapacidade do trabalho cumprir seu papel prometido de integração social. Já as interpretações apocalípticas e visionárias de Rifkin (1996) e De Masi (1998) popularizaram e confundiram mais ainda as dificuldades desta fase do capitalismo. Aznar (1995) pretendeu superar a dificuldade de retomada do pleno emprego keynesiano, propondo o pagamento de um segundo cheque que garantiria a sobrevivência dos trabalhadores, próximo ao sentido da renda básica discutida atualmente, quando a remuneração é à vida humana e não ao trabalho (3). Habermas (1987) acreditou no fim das energias utópicas advindas do trabalho e propôs a superação do paradigma da produção pela ação comunicativa que até poderia, finalmente, ser a resposta para a falta de saída sob o capital, representada na prisão de ferro de Weber ou na necessidade de revolução, como propunha Marx. Essa discussão, que perdurou todo o século XX, não impediu a permanência do capitalismo mesmo que, cada vez mais, ao custo da crescente perda de democracia e da crescente pressão sobre a classe trabalhadora na busca de aumento da produtividade, que não se transfere para ela, e sim para os donos do capital numa escala nunca antes vista. No entanto, é impossível negar as dificuldades de recuperar as condições de emprego do pós-segunda guerra mundial diante do avanço do trabalho em tempo parcial, das formas contratuais que permitem o contrato temporário de trabalho, da precarização do trabalho, da permanência do desemprego aberto, retratando a perda de força política dos trabalhadores. De acordo com Mattos (2019), “reconhecer a heterogeneidade, a diversidade, e a dinâmica histórica do sujeito coletivo, classe trabalhadora, sem perder de vista sua existência como unidade relacional, é um desafio…”
Dada a natureza da relação social de produção que baseia o capitalismo, a única forma histórica capaz de contrabalançar, minimizar, limitar eticamente esse tão desproporcional relacionamento, foi a organização sindical dos trabalhadores em sindicatos, centrais sindicais, etc. Mais uma vez, Smith nos alertou das dificuldades existentes nesse aspecto pois, como os patrões têm interesses comuns, encontram-se facilmente e podem organizar conluios contra os trabalhadores, o máximo que esses conseguem, quando entram em disputa com os patrões, é a prisão de seus líderes. Essa, então, é a base sobre a qual se sustenta a expansão capitalista. Impressiona observar que os capitalistas através de seus representantes na política fazem de tudo para tirar uma dessas pernas, os sindicatos, e tentar deixar os trabalhadores apenas à sua mercê, fragilizando a base na qual se sustenta. Foi isso que a reforma trabalhista fez, logo após o golpe de Estado, em 2016, sob a dura coordenação de um senador cearense e empresário Tasso Jeressati. Tal reforma acolheu, “sem mais”, um documento produzido pela CNI que propunha a “modernização” das relações trabalhistas brasileiras e o resultado já conhecemos.
O direito do trabalho, historicamente, veio ao socorro do sujeito de direito – trabalhador – consolidou um contrato de trabalho e regras de relacionamento entre os dois lados, na tentativa de construir um espaço de negociação, assistido juridicamente, para dirimir dúvidas e manter direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores. No entanto, o real concreto engendrou uma possibilidade mais arrojada: retirar as intermediações jurídica e sindical e incentivar a disputa direta entre trabalhadores e patrões, consignada na famosa máxima: o negociado se impõe ao legislado. Digamos, estamos de volta ao século XVI. Além disso, se o capitalismo engendrou a base formada por trabalhadores e sindicatos, como base central do capital, o que estará por vir? É possível um capitalismo sem consumidores, trabalhadores sem organização, sem qualquer segurança jurídica, sem poder adoecer, tirar férias, e até mesmo morrer, como quer o atual ministro da economia do atual desgoverno? Voltar ao século XVI, no mundo do trabalho, interessa a quem?
Nos anos oitenta do século passado, a introdução das técnicas japonesas de produção, os círculos de qualidade e os modelos de competência (4) diziam intentar conferir maior poder ao trabalhador, fazê-lo participativo dos processos de trabalho numa visão de equipe competente e de corresponsabilidade das decisões no processo de trabalho. De fato, porém, o objetivo a ser alcançado era o aumento da produtividade e a redução do seu custo. Nos anos 1990, a entrada da informática em todos os setores de atividade, fez muitas famílias de classe média acreditarem que estavam abrigando, no quartinho da área de serviço, um empresário promissor, o/a filho/a mais velho/a que traria enormes ganhos familiares.
Hoje, o mundo se depara com uma situação inusitada, não vislumbrada por Smith. A divisão técnica do trabalho, por ele vista como capaz de generalizar o capitalismo nos diferentes setores produtivos, foi a base de transformações tecnológicas importantes, como agora com a proximidade da indústria 4.0, do 5G e da Internet das coisas despertam intensas discussões sobre o futuro do trabalho, as ocupações que irão desparecer e aquelas que irão permanecer. É bom não esquecer que a cada avanço tecnológico essa discussão é retomada, porém todas elas tiveram como resultado o aumento da exploração da força de trabalho e mudanças nas legislações protetoras do trabalho e do trabalhador, fragilizando-o. Tudo feito em nome da modernidade, do avanço tecnológico que teoricamente beneficia a todos. O fato concreto é que essa tecnologia que antes separou casa e trabalho, agora os reúne em razão do isolamento social exigido durante a pandemia de covid-19. Será isso mesmo? O presidente do Santander, mesmo na pandemia, já sugeriu que os trabalhadores que fazem home-office devolvam parte do salário, em razão das “economias” decorrentes do não deslocamento casa-trabalho (Bolzani; 2020). E os custos adicionais imposto aos trabalhadores? como por exemplo: compartilhar, com a família, o uso de um único computador, espaços exíguos nas áreas urbanas, contratar uma internet mais potente, pagar por um maior uso da energia elétrica, comprar uma cadeira mais adequada, só para citar alguns. (…)”
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Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 19/10/2020