Retrato do racismo estrutural no Trabalho
Dados mostram: a informalidade e a terceirização afligem muito mais a população negra. Políticas de igualdade racial no trabalho são importantes, mas é hora de pensar uma profunda reestruturação das relações de produção e distribuição de riqueza no país
Por Erik Chiconelli Gomes
O racismo estrutural continua sendo um elemento central na configuração das relações de trabalho no Brasil, perpetuando desigualdades e injustiças sociais que remontam ao período escravocrata. Este ensaio busca analisar, sob uma perspectiva histórica e socioeconômica, como o racismo se mantém como um fator determinante na organização do trabalho e na distribuição de renda no país, mesmo após mais de um século da abolição formal da escravidão.
E.P. Thompson enfatiza a importância de compreender as experiências e lutas das classes trabalhadoras como agentes ativos na formação de sua própria história1. Nesse sentido, buscamos examinar não apenas as estruturas econômicas e legais que perpetuam o racismo, mas também as formas de resistência e organização da população negra trabalhadora.
O Brasil, como destaca Emília Viotti da Costa, carrega em sua formação social as marcas profundas de quase quatro séculos de escravidão2. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre, longe de representar uma ruptura com as estruturas raciais de dominação, foi marcada por políticas que visavam a exclusão e marginalização da população negra recém-liberta.
A Lei de Terras de 1850, por exemplo, ao estabelecer a compra como único meio de acesso à propriedade fundiária, criou obstáculos praticamente intransponíveis para que ex-escravizados pudessem se tornar proprietários de terras3. Simultaneamente, o Estado brasileiro financiou a vinda massiva de imigrantes europeus, preterindo a mão de obra nacional, majoritariamente negra.
Essa política de branqueamento, como argumenta Petrônio Domingues, não apenas impactou as oportunidades de trabalho da população negra, mas também reforçou ideologias racistas que associavam a negritude à inferioridade e à incapacidade4. O resultado foi a consolidação de um mercado de trabalho profundamente segmentado por raça, no qual os postos mais precarizados e de menor remuneração foram sistematicamente destinados à população negra.
A legislação trabalhista, implementada a partir da década de 1930, não foi capaz de reverter esse quadro de desigualdade racial. Pelo contrário, como aponta Lélia Gonzalez, a exclusão de categorias como trabalhadores rurais e domésticos da proteção da CLT de 1943 teve um impacto desproporcionalmente negativo sobre a população negra, que constituía a maioria desses segmentos5.
Os dados econômicos contemporâneos revelam a persistência dessas disparidades raciais no mundo do trabalho. Segundo o IBGE, em 2021, a renda média de trabalhadores brancos era 75,7% superior à de trabalhadores pretos e 70,8% maior que a de pardos6. Essa desigualdade se manifesta também nos níveis de desemprego: no quarto trimestre de 2020, negros representavam 72,9% dos desocupados no país7.
Além disso, novos dados do IPEA mostram que, em 2019, a taxa de informalidade entre trabalhadores negros era de 47,4%, contra 34,5% entre brancos8. Essa maior presença na informalidade não apenas resulta em menores rendimentos, mas também em menor acesso a direitos trabalhistas e previdenciários.
A interseccionalidade entre raça e gênero aprofunda ainda mais essas desigualdades. As mulheres negras, como destaca Lélia Gonzalez, ocupam a base da pirâmide social brasileira, enfrentando múltiplas formas de opressão e discriminação9. Dados do DIEESE mostram que, em 2021, as mulheres negras recebiam, em média, apenas 44,4% do rendimento dos homens brancos10.
O fenômeno da terceirização, intensificado nas últimas décadas, tem contribuído para agravar esse quadro. Como argumenta Ricardo Antunes, a terceirização tem sido um mecanismo de precarização do trabalho que atinge de forma mais intensa a população negra, especialmente as mulheres11. No setor de limpeza e conservação, por exemplo, estima-se que 90% das trabalhadoras terceirizadas sejam mulheres negras12.
A persistência de formas contemporâneas de trabalho análogo à escravidão é outro indicador alarmante da intersecção entre racismo e exploração do trabalho no Brasil. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego revelam que, em 2022, 84% das pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão eram negras13. Esse dado evidencia como as estruturas de dominação racial do período escravocrata continuam a moldar as relações de trabalho no país.
Sidney Chalhoub argumenta que essa continuidade entre o passado escravista e o presente de desigualdades raciais no mundo do trabalho não é acidental, mas resultado de escolhas políticas e econômicas que visam manter uma estrutura de dominação racial14. Nesse sentido, o racismo não é apenas um resquício do passado, mas um elemento estruturante da própria organização do trabalho no capitalismo brasileiro.
Heleieth Saffioti, em sua análise sobre a intersecção entre classe, raça e gênero, destaca como essas diferentes formas de opressão se articulam para manter um sistema de dominação que beneficia as elites econômicas15. No contexto brasileiro, isso se traduz em uma superexploração do trabalho da população negra, especialmente das mulheres negras, que sustenta privilégios raciais e de classe.
Diante desse cenário, é fundamental reconhecer, como propõe Sueli Carneiro, que a luta antirracista no Brasil não pode ser dissociada da luta por justiça econômica e social16. Isso implica não apenas em políticas de promoção da igualdade racial no mercado de trabalho, mas também em uma profunda reestruturação das relações de produção e distribuição de riqueza no país.
O Direito do Trabalho, nesse contexto, tem um papel crucial a desempenhar. Como argumenta Maurício Godinho Delgado, é necessário que a doutrina e a jurisprudência trabalhistas incorporem uma perspectiva antirracista, reconhecendo e combatendo as formas sutis e explícitas de discriminação racial nas relações de trabalho17.
Isso passa, necessariamente, por uma revisão crítica dos próprios fundamentos do Direito do Trabalho brasileiro, como propõe Gabriela Neves Delgado. É preciso questionar em que medida as categorias e princípios tradicionais do direito laboral têm sido capazes de promover uma efetiva igualdade racial ou, ao contrário, têm contribuído para a manutenção de hierarquias raciais no mundo do trabalho18.
Por fim, é crucial reconhecer, como nos ensina a tradição historiográfica de E.P. Thompson, que as transformações sociais não são resultado apenas de mudanças nas estruturas econômicas ou legais, mas também da agência e da luta dos próprios trabalhadores e trabalhadoras19. Nesse sentido, o protagonismo do movimento negro e das organizações de trabalhadores negros é fundamental para a construção de um futuro de igualdade racial e justiça social no Brasil.
Referências
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1 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
2 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
3 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
4 DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac, 2004.
5 GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
6 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2021.
7 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
8 IPEA. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA, 2020.
9 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino, n. 1, 2011.
10 DIEESE. A inserção da mulher negra no mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2022.
11 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
12 SINDLIMPEZA. Perfil dos trabalhadores terceirizados. Santos: Sindlimpeza, 2021.
13 Ministério do Trabalho e Emprego. Relatório de fiscalização para erradicação do trabalho escravo. Brasília: MTE, 2022.
14 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
15 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
16 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
17 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2019.
18 DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2015.
19 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Fonte: Outras Palavras
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Publicado 17/10/2024 às 15:10 – Atualizado 17/10/2024 às 15:11