Trabalho não remunerado dificulta aposentadoria digna para mulheres
Por Schirlei Alves e Diego Nunes da Rocha, Gênero e Número
O trabalho não remunerado com afazeres domésticos e cuidado de pessoas ao longo da vida tem impacto na renda e na dignidade das mulheres brasileiras quando elas chegam à velhice. Principais responsáveis por essas tarefas, elas são maioria entre brasileiros que se aposentam por idade e entre quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Levantamento feito pela Gênero e Número com base nos dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) mostra que duas em cada três pessoas que se aposentaram por idade são mulheres, enquanto duas em cada três que recebem aposentadoria por tempo de contribuição são homens. Entre idosos que recebem BPC, três em cada cinco são mulheres. Os dados correspondem a novembro de 2023.
Para ter acesso ao BPC não é necessário ter contribuído para a previdência, mas é preciso ter 65 anos ou mais e renda familiar de até ¼ do salário mínimo por pessoa. Pessoas com deficiência também podem acessar o benefício, que equivale a um salário mínimo – hoje na casa dos R$1,4 mil.
A economista Marilane Teixeira explica que a dificuldade em cumprir os 15 anos de contribuição para a previdência está diretamente ligada ao trabalho não remunerado. De acordo com a pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, as mulheres interrompem mais o emprego formal para cuidar dos filhos ou de outras pessoas na família do que os homens.
“É muito recorrente que as mulheres, principalmente das famílias mais pobres, na presença de crianças, pessoas idosas ou enfermos, tenham que abandonar o trabalho [remunerado]. Às vezes, elas têm que optar por um trabalho informal precário que possibilite estar presente nos dois espaços, casa e trabalho.”
O INSS não disponibiliza informações de raça/cor de seus beneficiários, mas a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua 2022) aponta que mulheres negras representam duas em cada três pessoas que não têm trabalho remunerado porque precisam de dedicar a afazeres domésticos ou tarefas de cuidado – 66% do total. Enquanto isso, homens brancos constituem 2% da população nessa situação.
Os dados se referem à força de trabalho potencial, que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pela Pnad Contínua, é formada por pessoas de 14 anos ou mais que não exercem trabalhos remunerados, mas têm potencial de ingressar na força de trabalho. Dentro desse contingente há dois grupos: os que buscam trabalho, mas não estão disponíveis e os que não procuram trabalho, mas gostariam.
A reportagem analisou dados correspondentes ao grupo dos que gostariam de trabalhar, mas não procuram emprego porque realizam afazeres domésticos ou cuidam de pessoas. Neste universo, 93% são mulheres.
Reforma da Previdência piorou situação – Com a Reforma da Previdência, aprovada em 2019, todas as pessoas que não entram na regra de transição terão que se aposentar por idade mínima e tempo mínimo de contribuição. Não há mais a possibilidade de se aposentar apenas pelo tempo de contribuição, como ocorria anteriormente.
Homens que passaram a contribuir após a aprovação da reforma precisam fazê-lo por 20 anos e atingir a idade mínima de 65. Já as mulheres precisam contribuir por 15 anos e ter, no mínimo, 62 anos para se aposentar. A idade mínima para mulheres deve aumentar gradativamente até chegar aos 65 anos.
Para quem está sujeito às regras de transição, o cálculo depende do tempo de contribuição, da idade e de outras questões, como carreira pública ou privada.
Teixeira lembra que pessoas que ficam um longo período fora do mercado e sem acesso à escolaridade tendem a se integrar a trabalhos mais vulneráveis e informais, o que reduz a possibilidade de contribuir com a previdência.
“Com certeza, a nova regra vai continuar penalizando mais as mulheres, porque elas vão somar menos tempo de contribuição”, alerta Teixeira.
Idosas mais pobres – O termo “feminização da pobreza” foi proposto na década de 1970 pela socióloga norte-americana Diane Pearce para tratar do aumento do número de famílias chefiadas por mulheres entre os pobres. O conceito joga luz sobre um problema que tende a crescer conforme a população envelhece, segundo a economista Brena Paula Magno Fernandez, que coordena o Núcleo de Estudos em Economia Feminista da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O fenômeno é pesquisado no Brasil desde os anos 2000.
“O número de mulheres pobres tem aumentado ao longo dos anos e a pobreza na velhice é duplamente terrível. Se a pessoa não tiver uma rede de apoio, vai acabar na mendicância, pois não consegue mais fazer os bicos que fazia antes por causa das doenças e da fragilidade física”.
O Censo 2022, divulgado pelo IBGE, revelou que a pirâmide etária do Brasil mudou de formato. A base, representada pelas crianças, está diminuindo, e o topo, representado pelos idosos, está aumentando. O número de idosos cresceu 57% em 12 anos, desde o Censo 2010. A redução no número de filhos por família e o aumento da expectativa de vida ajudam a explicar o fenômeno.
Política do cuidado – As especialistas ouvidas pela reportagem acreditam que a solução do problema passa pela elaboração, por parte do governo, de políticas do cuidado. Hildete Pereira de Melo, professora de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que creches e escolas devem oferecer atividades em tempo integral para que as mulheres pobres possam participar do mercado de trabalho com menos restrições.
“Mas não é tempo integral de seis horas. É um tempo integral em que a criança possa ficar 10 horas lá, porque ninguém sai em uma cidade como o Rio de Janeiro ou São Paulo e chega em casa em menos de uma hora”.
Fernandez acrescenta que a rede de apoio público deve contemplar também restaurantes comunitários de baixo custo, para reduzir o trabalho com o preparo de alimentos, e um local adequado para receber os idosos que, assim como as crianças, são cuidados majoritariamente por mulheres. Já Teixeira reforça que a rede de apoio precisa alcançar não só as mulheres urbanas, mas as que vivem no campo também.
Em 2005, Pereira de Melo liderou uma pesquisa que procurou mensurar o valor das tarefas domésticas e de cuidado, realizadas majoritariamente por mulheres. O estudo, que continua sendo atualizado com o apoio dos pesquisadores Cláudio Considera e Isabela Duarte, propõe uma metodologia para estimar o trabalho não remunerado e sua incorporação às Contas Nacionais.
Segundo um estudo conduzido pelos pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), se fosse possível monetizar o trabalho não pago, o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceria R$ 213 bilhões, o que equivale, segundo Pereira de Melo, ao PIB do estado do Rio de Janeiro. A referência para o cálculo é o ano de 2016 e tem como base o salário de trabalhadoras domésticas.
Ainda assim, Fernandez aponta que projetos de lei para incluir no sistema previdenciário quem se dedica ao trabalho não remunerado com a casa e o cuidado de pessoas emperram nas casas legislativas ou são vetados quando a discussão chega no recurso financeiro.
É o caso do projeto de lei 326/2015, do deputado Valmir Assunção (PT/BA), que propõe a inclusão de trabalhadores sem renda própria, que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico, no sistema previdenciário. A última movimentação do projeto na Câmara dos Deputados foi em 2021, quando foi recebido pela Comissão de Finanças e Tributação.
“Se uma pessoa que nunca contribuiu para a previdência se aposentar, alguém precisará arcar com esse ônus. De onde virão esses recursos? Muito embora reconheçam que o intuito da lei seja legítimo, o principal argumento usado pelos parlamentares para vetar projetos desse tipo é exigir que se especifique de onde virão os recursos para custeá-lo. Se alguém for ganhar de um lado, outro alguém precisará perder de outro. É uma briga de cachorro grande”, diz.
O PL 326/2015 não aponta um caminho para a fonte dos recursos que sustentaria a proposta.
Plano nacional de cuidados – Um grupo de trabalho interministerial, instituído por decreto em março do ano passado, está elaborando a proposta de uma Política Nacional de Cuidados e Plano Nacional de Cuidados. O GTI-Cuidados, como é chamado, envolve 16 ministérios federais, a Secretaria-Geral da Presidência da República e três entidades convidadas: IBGE, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O resultado seria apresentado ainda no primeiro semestre de 2024, mas foi adiado por mais 180 dias. Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, a proposta é “garantir o direito ao cuidado das pessoas que dele necessitam”, como as crianças, os idosos e as pessoas com deficiência”, promover um “trabalho decente aos trabalhadores remunerados do cuidado”, e “reconhecer e redistribuir o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado”.
Em resposta à consulta da reportagem, o Ministério não explicou como a política funcionará na prática, mas afirmou que a responsabilidade deverá ser dividida entre Estado, família, sociedade e mercado/empresa.
Fonte: Estadão
Clique aqui e acesse o texto original.
Data original de publicação: 24 de janeiro de 2024