“O lugar de pesquisadora no Direito do Trabalho não é reconhecido como feminino”

Imagem: PxHere

Flávia Souza Máximo Pereira é advogada, doutora em Direito do Trabalho e atua como professora adjunta de Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário na Universidade Federal do Ouro Preto (Ufop). Em sua trajetória, a pesquisadora de 32 anos vivenciou, de forma direta ou indireta, grande parte das situações que dificultam a pesquisa e o existir das mulheres no ambiente acadêmico. Em entrevista por escrito para o DMT, ela discorre sobre várias dessas questões, além de reforçar aspectos que, em sua leitura, são importantes para superar os obstáculos – ainda muito presentes – que dificultam uma presença maior das mulheres em espaços que pensam o trabalho, tanto nas salas de aula quanto nos ambientes do Direito.”

Por Igor Natusch | Democracia e Mundo do Trabalho

“A luta das mulheres é permanente. Não existe espaço na sociedade em que a existência feminina não enfrente barreiras – e o mundo do trabalho, em suas diferentes dimensões, manifesta muitas dessas situações de forma especialmente dura. Mulheres recebem salários menores, precisam revezar tarefas laborais e domésticas de forma muito mais acentuada – e enfrentam obstáculos também nos ambientes ligados ao Direito e à academia, historicamente dominados por homens e onde a presença feminina é diminuída das mais diferentes formas.

No decorrer do mês de março, o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT irá publicar uma série de entrevistas com mulheres que fazem a diferença na hora de pensar o trabalho no Brasil. Atuando nas universidades, nos ambientes de pesquisa, nas salas de tribunal e nas disputas sindicais, essas mulheres fazem a luta feminista na prática, todos os dias – e nada mais adequado do que escutar a sua voz, no mês que marca a luta internacional de todas as mulheres por um mundo mais digno, inclusivo e igualitário.”

Confira abaixo alguns trechos da entrevista

DMT – De que modo ser mulher influenciou sua trajetória profissional? Teve impacto nas suas escolhas, foi barreira em alguns momentos, incentivo em outras…?

Flávia Souza Máximo Pereira – A subjetividade feminina é uma potência diante de uma cultura patriarcal limitante. A opressão do gênero feminino é violenta, mas também impulsiona insurgências. E foi neste lugar paradoxal que me encontrei como profissional do Direito, especificamente no Direito do Trabalho. A necessidade de construir uma hermenêutica de resistência, baseada em uma epistemologia feminista decolonial no Direito do Trabalho, é o que me move hoje como pesquisadora.  Contudo, o lugar de pesquisadora no Direito do Trabalho não é reconhecido como feminino, pois há estratégias para a manutenção da masculinidade-branca como o locus da intelectualidade, o que se manifesta desde a bibliografia dos cursos de Direito até a ocupação de posições de poder nas carreiras jurídicas e nos sindicatos. A desqualificação da minha pesquisa enquanto mulher jovem é recorrente, seja por interrupções e questionamentos constantes em palestras e salas de aulas ou mediante a acusação de assertividade como arrogância, que são violências perpetradas pela linguagem já bem conhecidas pelo feminismo. Contudo, devo ressaltar que minha trajetória profissional como mulher é ainda extremamente privilegiada: sou professora de Direito em uma universidade federal com 32 anos, porque sou fruto de uma história de privilégios de classe e raça.

DMT – E quanto à situação da mulher no mundo do trabalho brasileiro? Quais são, na sua leitura, as questões que mais diretamente atingem as trabalhadoras? O que precisa ser feito, e o quanto tem sido feito (ou não) para combater esses problemas?

Flávia Pereira – A situação da mulher no mundo do trabalho brasileiro é um reflexo da colonialidade de gênero, ou seja, a opressão das mulheres brasileiras no trabalho é resultante de processos combinados de racialização e exploração capitalista-patriarcal, que se mantêm mesmo com o fim da colonização. A escala de remuneração no trabalho no Brasil mantém-se inalterada: homens brancos no topo e mulheres negras na base. As mulheres também estão mais sujeitas ao trabalho informal do que os homens, e mesmo nos trabalhos formais mais precários – a exemplo do trabalho intermitente e por aplicativos – a divisão sexual do trabalho permanece. No campo educacional, as mulheres encontram-se, em geral, em melhor posição que os homens, mas esta vantagem não se reflete na remuneração do mercado de trabalho, o que comprova que o crescimento da desigualdade social e de gênero no Brasil  não se resume à educação, mas envolve relações de poder.

Como pesquisadora da área do Direito do Trabalho, acredito que um passo essencial é a decolonialidade de gênero das leis e da doutrina pátria juslaboral em relação ao trabalho feminino, que consiste em um longo processo epistêmico de desprendimento da normatividade capitalista colonial-racial-patriarcal. As normas juslaborais pátrias brasileiras – criadas e aplicadas por homens brancos – não consideram a mulher, especialmente a mulher negra, como sujeita epistêmica do Direito do Trabalho. Dessa bases epistemológicas juslaborais coloniais de gênero decorrem uma série de desigualdades que são positivadas como normas protetivas da mulher, mas que podem gerar discriminação: o papel romantizado da maternagem que legitima juridicamente uma licença-maternidade desproporcional em relação à licença-paternidade; a incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade; a suposta  fragilidade dos corpos femininos (brancos) que produz limites de carregamento de peso por gênero e não pelo biotipo do trabalhador, excluindo mulheres de alguns ambientes laborais, são alguns exemplos que ilustram a colonialidade de gênero no Direito do Trabalho brasileiro.

De forma complementar, também acredito na potência das greves interseccionais feministas que relacionam violência sexual com greves de abstenção do trabalho (produtivo e reprodutivo), ressaltando o protagonismo feminista que desaloja o linguajar sindical hegemonicamente masculino herdado da modernidade, a exemplo do movimento internacional militante do dia 8 de março. Tais movimentos buscam uma intersecção necessária entre classe, gênero e raça e um urgente acerto de contas com o feminismo empresarial-branco, para substituí-lo por um feminismo anticapitalista, anticolonial e antirracista.

Clique aqui e confira a entrevista

Fonte: Democracia e Mundo do Trabalho
Data original de publicação: 10/03/2020

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