“A pandemia renovou o senso de descartabilidade dos trabalhadores” – Entrevista com Carolina Freitas
Por Patrícia Fachin | IHU Unisinos
“As principais vítimas da Covid-19 no Brasil, segundo dados da Pnad, trabalham como garis, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas e cozinheiros. “São justamente essas que figuram entre as categorias de trabalho que, ao mesmo tempo, mais empregam no Brasil e também são as mais mal remuneradas”, diz Carolina Freitas em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, concedida por e-mail.
Autora da dissertação “Mulheres e periferias como fronteiras: o tempo-espaço das moradoras do Conjunto Habitacional José Bonifácio”, premiada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – Anpur, Carolina investiga as relações entre exploração do trabalho, financeirização, empreendimentos imobiliários e a perpetuação das desigualdades sociais no país.
Segundo ela, inúmeros serviços fazem com que “um imenso conjunto do proletariado brasileiro” continue “submetido à tarefa de garantir a reprodução diferencial das famílias proprietárias”. Ela analisa, especificamente, como isso tem ocorrido nas últimas décadas a partir da construção de novos empreendimentos imobiliários que visam à lucratividade e geram uma série de “serviços de ‘facilities & properties‘”, que empregam mão de obra mal paga. “Os artefatos, materiais e técnicas arquitetônicas utilizados nos produtos imobiliários que são arrendados por marcas de tipologias e assinaturas arquitetônicas (formadas como capital fictício) exigem um enorme contingente de trabalhadores nesses condomínios residenciais e corporativos de alto padrão. Trabalhadores da manutenção do ar-condicionado, da segurança privada, da faxina, da limpeza de vidros, da jardinagem, da recepção, da lavanderia, são numerosas as atividades hoje arranjadas no setor de serviços de ‘facilities & properties‘, como nomina o mercado”.
Carolina Freitas é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestra e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – No artigo “Trabalho doméstico e cativeiro imobiliário”, você cita a atualização da Pnad acerca das categorias profissionais que registraram mais óbitos por Covid-19 no Brasil: garis, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas e cozinheiros. O que esses dados revelam sobre o Brasil?
Carolina Freitas – A maior prevalência dos óbitos por Covid-19 nas categorias profissionais e responsáveis pelo trabalho de reprodução social – garis, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas, ou seja, toda a atividade e trabalho coletivo de reprodução social que repõem todos os dias e também através das gerações as condições para que a economia e a produção dos bens e serviços e as relações de produção em geral possam se perpetuar porque dão conta de toda a infraestrutura dessas condições gerais da economia –, sem dúvida tem a sua centralidade revelada na crise sanitária mundial em que a logística do cuidado social global está colocada em xeque. Paradoxalmente, neste momento em que se joga luz sobre essas atividades que são continuamente invisibilizadas, historicamente ocultadas e não têm valor nos termos da economia política, a condição de essencialidade não aparece como um valor positivo, mas, ao contrário, como um valor da decretação da morte e da descartabilidade desses trabalhadores e dessas trabalhadoras.
Então, o vírus aparece como uma espécie de paródia trágica da formação brasileira, porque chega ao país por meio das pessoas das classes médias e altas, da elite brasileira, que estava infectada porque viajava para outros continentes. Em contrapartida, as primeiras vítimas fatais são uma empregada doméstica no Rio de Janeiro e um porteiro em São Paulo. Assim, há todo um padrão de consumo que é resultante de um tipo de acumulação e de concentração de renda que balizou o Brasil e naturalizou que os ricos reproduzam suas vidas dispondo de um contingente de trabalhadores que vão cuidar e manter seus artefatos de consumo: vão cuidar de suas casas luxuosas, vão abrir as portas dos seus carros, dos seus prédios, dos seus elevadores, vão cuidar da sua comida, do seu tempo livre, das suas crianças, dos seus parentes, dos seus idosos. Enfim, um imenso conjunto do proletariado brasileiro está justamente submetido à tarefa de garantir a reprodução diferencial das famílias proprietárias nas suas casas, nos seus clubes, nas suas escolas, nos seus hospitais, nas suas garagens, nos seus condomínios, nos seus salões, nos seus supermercados, nas suas academias e por aí vai. São justamente essas categorias que a Pnad revela que mais morrem por Covid-19, as quais figuram entre as categorias de trabalho que, ao mesmo tempo, mais empregam no Brasil e também são as mais mal remuneradas.
Chico de Oliveira, quando descreve o aspecto histórico dos serviços pessoais na Crítica à razão dualista, diz muito precisamente que, longe desses serviços serem uma excrescência, um resto, um depósito do exército industrial de reserva, na verdade, esses trabalhadores são muito adequados ao processo de acumulação e concentração do capital. Quando não existe uma infraestrutura, sobretudo nas cidades – já que o Brasil é um país urbano –, para a industrialização e socialização desses serviços, então a infraestrutura passa a ser esse trabalhador coletivo que, embora não produza necessariamente lucro direto, é a condição para a reprodução das relações sociais de produção e, evidentemente, das relações abismais de classe que vão arregimentar as particularidades históricas do Brasil, sobretudo de gênero e de raça, no interior da classe trabalhadora.
IHU On-Line – No artigo, você menciona este aspecto de que o trabalho doméstico assalariado é o que “garante a acumulação financeirizada contemporânea, atuando como contratendência infraestrutural da depreciação da propriedade privada imobiliária”. Pode explicar essa ideia? Como isso ocorre?
Carolina Freitas – Há um debate extenso sobre o significado desse processo de mudanças que reforçam o domínio econômico das finanças na acumulação capitalista atual. É possível dizer, rapidamente, que este domínio subordina o trabalho e, por redundância, a vida, a representação do dinheiro, a concentração e centralização de títulos que representam valores produzidos socialmente. Como uma miragem, títulos financeiros se avolumam ficticiamente e, ao mesmo tempo, respondem pela ultraconcentração e centralização de capitais ao redor do globo. O crescente domínio do capital financeiro significa a dissociação mais radical entre a representação do dinheiro e os valores dos bens e serviços que reproduzem a vida e a sociedade.
Domínio das finanças
O domínio das finanças reconfigurou as empresas, os estados, o trabalho (a sua organização e gestão), o consumo das famílias. E o imobiliário entra aí. O capital excedente transformado em capital fictício encontra no espaço imobiliário uma solução para seguir sendo rentabilizado. É a solução, o ou “ajuste espacial”, nos termos de David Harvey, que o capital dá à sua própria crise de reprodução, em razão da lei tendencial da queda da taxa de lucro, uma dinâmica própria e interna à reprodução do capital; a produção do lastro imobiliário opera como contratendência. Esta é uma primeira afirmação relevante à sua pergunta. A própria produção imobiliária é uma contratendência à crise capitalista.
Capital imobiliário financeiro nas metrópoles
Esta produção imobiliária é um complexo no qual se cria uma materialidade – as construções – que obtém altas taxas de mais-valia pelo trabalho superexplorado nos canteiros e, ao mesmo tempo, forma preços de monopólio sobre pedaços do planeta terra e, com isso, o direito de auferir renda. Na totalidade das transformações urbanas das últimas décadas, há, por um lado, a produção de centralidades do capital imobiliário financeiro nas metrópoles, com a produção fetichizada de novos protótipos arquitetônicos a serem consumidos e a relação complexa, que reside justamente neste espaço construído, entre tipos de rendas – fundiária, financeira, tecnológica, de marca.
O espaço é produzido, como explica o marxismo que se atinou às questões urbanas há décadas, enquanto experiência concreta e imediata. E aí entra novamente a particularidade do imobiliário. A construção civil é um ramo produtivo destacado pela extração de mais-valia absoluta e por ter uma composição orgânica baixa, ou seja, emprega tecnologia, mas esta é mais gerencial do que propriamente de maquinário que substitua o trabalho vivo na produção. Há um amplo e histórico debate a respeito.
Na formação social brasileira, o enorme êxodo diaspórico do Nordeste ao longo de décadas para conformar a metropolização no Sudeste respondeu a essa demanda de mão de obra nos canteiros, no caso dos homens, e do emprego doméstico no imobiliário urbano, no caso das mulheres. Este trabalho concreto imediato vinculado ao espaço, seja na sua produção, seja na sua reposição, segue sendo realizado e superexplorado por meio de mecanismos diferenciais da força de trabalho vendida no mercado como mercadoria, que segue subordinando trabalhadoras e trabalhadores negros e de origem nordestina.
São estes mesmos que criam o mais-valor imobiliário por meio da construção, ou atendem à necessidade de reprodução da materialidade do espaço construído de tal modo que ela não perca valor e não seja depreciada, tanto pelo desgaste do tempo, quanto pela sua “obsolescência de rentabilidade”, quando o capital migra e vai buscar novos espaços para se tornarem centralidades de investimentos. É a combinação produzida entre o moderno e o arcaico neste setor. Ao mesmo tempo que os canteiros se transformaram, como estudos apontam, fica subjacente à noção de “urbanização de serviços” um processo pelo qual o trabalho fica vinculado, em níveis variados, aos custos de manutenção e reprodução desta urbanização. Muito do trabalho tradicionalmente improdutivo vinculado à manutenção, limpeza e gestão predial, por exemplo, passa a ser empresariado e a produzir, ele mesmo, valor, no arranjo de reestruturação da metrópole e de reorganização do setor imobiliário. O tradicional trabalho doméstico assalariado também é uma fronteira desse “empresariamento” e se profissionaliza na toada dessas transformações.
IHU On-Line – De que modo a arquitetura e os modos de viver e de habitar nas cidades brasileiras ainda hoje reforçam a manutenção de um sistema de trabalho excludente, com uma massa de trabalhadores que recebem baixos salários?
Carolina Freitas – Vivemos uma transição histórica, na qual o espaço imobiliário deixa de ser apenas condição ou meio das relações econômicas, mas passa a ser, ele mesmo, um produto e um ramo de mercado que, no Brasil, assume historicamente uma presença importante, absorvendo capital excedente da indústria e reestruturando as metrópoles brasileiras, sobretudo na transição do país industrial periférico para o país urbanizado de acumulação subordinada ao capitalismo financeirizado global.
Este produto imobiliário arquitetônico, de tipo residencial ou corporativo, será produzido e replicado em diversos lugares, em metrópoles no mundo inteiro. Em substituição à fixidez particular das sedes corporativas nas cidades industriais, hoje os capitais procuram fluidez e despojamento dos custos de capital fixo. Portanto, sedes empresariais precisam de padrões arquitetônicos que se replicam ao redor do mundo (das torres de vidro na Marginal Pinheiros em São Paulo a Dubai), e as cidades globais concorrem entre si para recepcionar infraestruturalmente esses capitais.
O que interessa aqui é que esse fluxo de capital, cujo lastro real de valor pode estar fixado em São Paulo, mesmo que sua propriedade seja de um fundo de investimento norte-americano, este capital, que pode transitar por qualquer parte do mundo, arreda sua valorização na fixidez da construção imobiliária e, com ela, impera a demanda de manutenção deste valor de uso, correspondente ao valor, como comentei na pergunta anterior.
Serviços de “facilities & properties”
Os artefatos, materiais e técnicas arquitetônicas utilizados nos produtos imobiliários que são arrendados por marcas de tipologias e assinaturas arquitetônicas (formadas como capital fictício) exigem um enorme contingente de trabalhadores nesses condomínios residenciais e corporativos de alto padrão. Trabalhadores da manutenção do ar-condicionado, da segurança privada, da faxina, da limpeza de vidros, da jardinagem, da recepção, da lavanderia, são numerosas as atividades hoje arranjadas no setor de serviços de “facilities & properties”, como nomina o mercado. É a mercantilização do trabalho vista sobretudo por meio da terceirização destas atividades-meio, de manutenção espacial das edificações, de seus sistemas e materiais e que representam os custos de manutenção, sejam eles recursos despendidos de patrimônio familiar ou de capital fixo empresarial.
Em outro aspecto, toda a infraestrutura de produção e circulação das mercadorias é o próprio capital fixo socializado que chamamos de “espaço urbano” e por isso também este espaço opera como meio constitutivo do processo de produção e de valorização. A categoria de entregadores de aplicativo, por exemplo, que cresce vultosamente em número, absorvendo economicamente trabalhadores desempregados, é um tipo de relação imediata de exploração que também está completamente subordinada à renda imobiliária e tecnológica.
Há formas de exploração para as mesmas funções tradicionais que têm origem na nossa história econômica escravista. As mucamas do período colonial se tornaram trabalhadoras domésticas, como bem discorre Lélia Gonzalez em Racismo e Sexismo na cultura brasileira. Há um forte e evidente predomínio deste assalariamento nos serviços de reprodução social familiar ainda hoje, e há, ainda, como dito, esta incorporação do trabalho de reprodução do espaço nas cadeias de valor. Os empreendimentos imobiliários, me parece, contribuíram para essas novas tendências nas quais o emprego tradicionalmente improdutivo se torna produtor de valor, através da exploração oriunda de um processo de industrialização de serviços urbanos e imobiliários. (…)”
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Fonte: IHU Online
Data original da publicação: 20/05/2021