Há “empoderamento” nas plataformas digitais?
Por Ana Claudia M.Cardoso, Célia da G. Arribas e Maria Júlia T. Pereira | Outras Palavras
“Problema é estrutural, mas Uber, Ifood e afins apropriam-se da pauta feminista sem garantir dignidade ou segurança às mulheres. Divisão de gênero se mantém: são poucas nos apps de transporte e quase 100% em limpeza e estética.
O mês que marca a luta pelos direitos das mulheres nos lembra que não é possível entender como trabalhadoras/es vivenciam o labor se, além do olhar de classe, não considerarmos os marcadores de gênero, étnico-raciais, geracional, de sexualidade, territorialidade, entre outros. Marcadores que se encontram interseccionalmente1 articulados e que explicitam a coexistência de vulnerabilidades, violências, discriminações e subordinação.
É a partir de uma perspectiva de gênero que propomos esta breve conversa sobre as plataformas digitais de trabalho, considerando, ainda, o contexto de pandemia da Covid-19, marcado pela redução da ocupação de mulheres e aumento de suas taxas de desemprego. Como em toda situação de crise, os impactos não são os mesmos para todas/os, sendo que as populações vulneráveis e com inserções laborais precárias são sempre as mais atingidas, entre elas as mulheres e as mulheres negras. Essa situação de desemprego e de falta de perspectiva é um “prato cheio” para as plataformas de trabalho.
A pandemia também tem levado ao boom do chamado Capitalismo de Plataforma por Nick Srnicek, e Capitalismo de Vigilância por Shoshana Zuboff, quando as plataformas passam a mediar e vigiar todas as nossas relações sociais: de amizade, pesquisa, compra, transação financeira, participação política, trabalho etc. As empresas-plataforma de trabalho, por sua vez, estão presentes tanto em setores já marcados pela precariedade laboral (entrega, transporte individual, turismo, serviço geral e limpeza, beleza, consertos), como naqueles onde a precariedade ainda não predominava (educação, saúde, bancário e de prestação de serviço de advocacia)2.
Considerando que homens e mulheres possuem diferentes trajetórias no mercado de trabalho e diferentes percepções sobre ele — assim como do ambiente doméstico –, as vivências laborais nas plataformas também não são as mesmas. No que se refere ao perfil de trabalhadoras/es, as poucas pesquisas mostram que no setor de entrega, o percentual de mulheres fica um torno de 5%; no de transporte individual, 15% e, no de limpeza e beleza, quase 100%. Tal divisão retrata a tradicional divisão sexual do trabalho entre os diversos setores.
Quanto às empresas-plataforma, muitas se apropriam de pautas de movimentos feministas, como a polêmica noção de empoderamento3, que geralmente associa a imagem da mulher empoderada à sua autonomia financeira e ao seu sucesso profissional, sem considerar as clivagens sociais como barreiras para a autonomia. A Uber criou o programa “Elas na Direção”4 e diz realizar ações de “empoderamento feminino” e crescimento profissional, a fim de garantir “vantagens para mulheres que querem dirigir suas vidas”5 6. Os discursos das empresas enfatizam, ainda, a flexibilidade das jornadas, tão importante para as mulheres.
Conforme a pesquisa de Cook et al. (2020)7, enquanto motoristas homens podem dedicar mais horas ao trabalho, possibilitando maior know-how e maior rendimento, as mulheres seguem tendo que se responsabilizar pelo trabalho de cuidado e da casa, não podendo dedicar muitas horas ao trabalho remunerado e aprender a exercer a ocupação de forma mais lucrativa.
Além disso, as entregadoras via plataforma, por exemplo, estão sujeitas a diversas formas de assédio: de entregadores, dos estabelecimentos e dos clientes. Luiza Helena Rizzo8, entregadora no Rio de Janeiro, relata sérios episódios de assédio e reforça a urgência da criação de canais diretos de denúncia e punição nos/dos aplicativos.
As narrativas cotidianas em grupos de WhatsApp de mulheres condutoras9 também revelam diversos problemas, como os assaltos, assédio, violência e outras dificuldades:
“Na sexta-feira, por duas vezes eu me senti acuada, coagida, não por passageiros, mas por motoristas de táxi. Por duas vezes eu fui xingada e coagida […] estão achando que por ser Uber e mulher, que a gente não vale nada, que a gente não é ninguém, que a gente não sabe de nada […]”
“O pessoal vê que eu sou ‘sapatão’, faz gracinha […] vê que eu sou mulher, faz gracinha”.
“A gente que dirige tem que tomar cuidado com nossos rins, porque temos que beber água. E, às vezes, a gente não bebe água porque dá vontade de fazer xixi. A gente tá na rodagem, com aquela meta para cumprir, e a gente tem que sair correndo para fazer xixi. Eu não sei vocês, mas tem hora que eu entro em cada banheiro que… misericórdia!”.
Assim, se podemos falar em empoderamento, este está totalmente concentrado nas plataformas de trabalho que, além de definirem todas as regras laborais, impõem o falso discurso de que não são empregadoras. No caso das trabalhadoras, além dos mesmos problemas enfrentados pelos homens – como extrema insegurança financeira, ausência de direitos e garantias, falta de transparência nas regras laborais e falsa flexibilidade do tempo de trabalho10 -, vivenciam questões específicas, como a falta de segurança, assédio, violência e desmerecimento.
É inegável que muitas conquistas já foram alcançadas pelas lutas das mulheres e que elas estão ocupando cada vez mais espaços públicos. No caso aqui discutido, vemos que motoristas criam plataformas apenas para as mulheres (motoristas e clientes), buscando solucionar problemas observados no trabalho cotidiano11. Mas, no geral e no caso específico das empresas-plataforma de trabalho, ainda há muitas barreiras no caminho da equidade não só de gênero, mas de todas as suas intersecções, demonstrando a urgência da atuação do Estado como promotor da igualdade de direitos (e não de aniquilador dos mesmos). (…)”
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Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 17/03/2021