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Multa de R$ 7 mil e 250 motos retidas: trabalhadores pagam preço de embate entre Nunes e 99 por mototáxi

‘Enquanto eles estão em guerra pelo poder e para faturar, a gente está na guerra da sobrevivência’, diz entregador

Desde que transporte por moto via app entrou em vigor em SP, prefeitura apreendeu, em média, 31 veículos por dia - Rovena Rosa / Agência Brasil

Por Gabriela Moncau | Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Embates na Justiça, blitz nas ruas e declarações enfáticas na imprensa estão subindo o tom da queda de braço entre o prefeito de São Paulo Ricardo Nunes (MDB) e as empresas 99 e Uber em torno da liberação ou não do transporte por moto via app na maior metrópole do país. No meio disso, motociclistas alegam que são eles, literalmente, os que estão pagando a conta. 

Respaldadas por uma decisão da Justiça que, na última terça (21), negou pedido da prefeitura de multa diária de R$1 milhão contra a 99, as empresas seguem oferecendo mototáxi na plataforma. Por enquanto a opção está restrita a áreas afastadas do centro da cidade. 

Já a gestão Nunes alega que haverá aumento de mortes no trânsito. Com base no sucinto decreto municipal nº 62.144, que em 2023 suspendeu “temporariamente” a modalidade, a prefeitura diz que o serviço é irregular e instituiu comandos da Guarda Civil Metropolitana (GCM) para apreender motos de quem o prestar. O decreto, no entanto, não estipula o período de suspensão de mototáxi na cidade nem a punição pelo seu descumprimento.  

Entre 15 e 23 de janeiro, 249 motocicletas foram apreendidas. Para recuperar o veículo, é preciso pagar uma multa de R$ 7.100,67, além da taxa para a retirada do pátio, em torno de R$ 350.  

“Não acho justo é que a gente pague o preço dessa guerra entre a 99 e a prefeitura. Os dois lados são gigantes, somos a ponta mais fraca”, critica o motociclista Jr. Freitas, um dos fundadores da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (Anea).   

“Quando o trabalhador resolve fazer a modalidade de mototáxi e o prefeito fala que é irregular e que vai apreender as motos, parece que a gente está afrontando o poder público. Não é nada disso, o que fala mais alto é a nossa situação financeira” afirma Freitas, ao argumentar que janeiro é o mês mais fraco de demanda por entregas. 

“Como é que a gente vai por comida na mesa? Aí a gente acaba arriscando. É a necessidade”, diz. “Enquanto eles estão em guerra pelo poder e para faturar, a gente está na guerra da sobrevivência”, sintetiza o entregador. 


Protesto de motociclistas foi até a prefeitura de São Paulo em 21 de janeiro / Doutor Kah

A gestão de Ricardo Nunes justifica as apreensões com a Lei 15.676/2012, que proíbe o “transporte remunerado individual de passageiros sem que o veículo esteja autorizado para este fim”.  

“Tirar o bem material que traz o sustento para a nossa família é uma covardia. Se a modalidade é irregular, por que o prefeito não conseguiu até hoje multar as empresas? Uma coisa a gente tem certeza: o trabalhador está sendo punido e ninguém está fazendo nada”, opina Freitas.  

“A gente tem que lidar com assalto, chuva, sol, o risco da profissão, a exploração das empresas de aplicativo e agora com a prefeitura pressionando o trabalhador também”, resume. 

GCM obrigando a mostrar celular 

De acordo com Jr. Freitas, agentes de trânsito e guardas municipais estão parando motociclistas e, depois de averiguar a documentação, questionam qual serviço o trabalhador está prestando. “E tanto faz o que a gente fala. Eles pedem para ver o celular, isso já é irregular. Podem? Não podem. Mas se a gente nega, é capaz de sofrer até uma agressão”, relata. 

“Tem moto sendo levada se a pessoa está logada no 99, se está levando algum parente na garupa para o serviço”, exemplifica o entregador. “O cara que tem uma moto de R$ 10 mil, ele recebe uma multa de R$ 7 mil mais o custo do pátio e do guincho, vai abandonar a moto, porque realmente não vale nem a pena mais”, pontua.  

Com o aumento das apreensões, a empresa 99 enviou uma notificação aos motociclistas se dispondo a arcar com os custos da liberação dos veículos. “Nesse caso, a pessoa vai retirar. O problema é que agora a Uber entrou no jogo”, ressalta Freitas, lembrando que a empresa começou começou a operar na modalidade na última quarta-feira (22). A Uber, no entanto, não se propôs a cobrir os gastos para reaver motos retidas.

Entenda a disputa judicial 

Quando, em 14 de janeiro, a 99 instituiu o transporte de passageiros por moto em São Paulo, o Comitê Municipal de Uso do Viário (CMUV) da prefeitura notificou a plataforma. Sem força jurídica, o documento não teve efeito.  

Em seguida, a Procuradoria Geral do Município moveu uma ação contra a empresa, que chegou a ser chamada por Nunes de “assassina”, e pediu multa diária de R$ 1 milhão por danos morais e desobediência. A Justiça não acatou o pedido, mas respaldou que a prefeitura fiscalize a atividade. Diante do nicho de mercado aberto e da derrubada da possível multa, a Uber habilitou também o mototáxi. 

Ambas as empresas de app alegam estar respaldadas pela Lei Federal nº13.640/2018, que versa sobre o transporte remunerado privado individual de passageiros na Política Nacional de Mobilidade Urbana. A ação impetrada pela prefeitura, no entanto, deve passar por todas as instâncias judiciais até que haja uma sentença final.  

Em coletiva de imprensa na última quarta-feira (22), Nunes anunciou “uma ação junto à Polícia Civil comunicando o descumprimento da legislação e fazendo uma queixa-crime, um comunicado de descumprimento”.  

“Isso vai ensejar um inquérito policial, porque a gente tem apresentado dado, tem conversado e falado que essa atividade vai aumentar o número de óbitos. Mesmo assim, eles insistem”, declarou o prefeito. 

Em nota, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) repudiou a queixa-crime da prefeitura. “Não existe crime cometido nem desrespeito a qualquer decisão judicial, como veiculado incorretamente pelo Executivo paulistano”, afirmou a entidade que representa as gigantes do delivery e do transporte por app

A Abomitec disse, ainda, que suas empresas “adotam camadas de segurança adicionais às previstas em lei para buscar cada vez mais proteção por meio de ferramentas tecnológicas que atuam antes, durante e depois de cada viagem”. A associação não informou que medidas são essas. 

‘O que faz a gente ficar 14 horas na moto é remuneração baixa’ 

A frota de motociclistas em São Paulo saltou 35% nos últimos 10 anos, de acordo com a prefeitura: de 833 mil em 2014, passou para 1,3 milhão no ano passado. Junto a isso, subiram também os acidentes. Ainda segundo a administração municipal, entre 2023 e 2024, os óbitos de motociclistas aumentaram 20%. Só no ano passado, foram 483 mortes. A Secretaria Municipal de Saúde aponta que cerca de R$ 35 milhões são investidos por ano com cuidados de vítimas de acidente de moto na capital paulista. 

Para Daniel Santini, jornalista e pesquisador de mobilidade urbana, a discussão sobre mototáxi em São Paulo não é simples por se dar em “um contexto social e econômico que não dá para ser ignorado”.   

“Trata-se de uma forma de transporte mais acessível com a vantagem do preço e tem a possibilidade de vagas de trabalho sendo abertas. Mas esses dois pontos positivos não se sustentam, porque há uma falsa democratização da mobilidade urbana e vagas de trabalho completamente precarizadas”, avaliou Santini em entrevista ao Brasil de Fato.

“O prefeito fala que está muito preocupado com a vida das pessoas, mas espera aí. Agora que vocês descobriram que a nossa categoria exerce um serviço perigoso?”, ressalta Jr. Freitas, um dos organizadores de um ato que foi até a prefeitura na última terça (21). 

Na ocasião, uma comissão de motociclistas foi recebida por representantes do Executivo municipal. “Que medida ele [o prefeito] está tomando contra outros aplicativos? Nenhuma”, argumenta Jr. Freitas, ao dizer que a maioria dos entregadores trabalha para o iFood e que, portanto, são os que mais se acidentam. 

De acordo com a própria plataforma de delivery, 55 milhões de brasileiros estão cadastrados e fazem pedidos pelo iFood. O número representa um quarto da população do país.  

“Perguntei ‘por que não vão para cima das outras empresas?’, me responderam ‘porque não carregam passageiro’. Bom, então estão preocupados com a vida só do passageiro e não do trabalhador”, aponta.  

“Não adianta querer dar entrevista como se tivesse preocupado. Estamos indo para o quinto ano de mandato do Nunes e a única coisa que teve para a categoria que mais morre hoje é a faixa azul. Ela ajuda, mas não pode ser a única política pública para a segurança do trabalhador”, afirma Jr. Freitas. “O que faz a gente ficar 14 horas na moto é remuneração baixa”, enfatiza.

De acordo com Santini, “o número de mortes de motoqueiros de São Paulo está explodindo e isso não recebe a atenção devida, porque esses jovens que estão morrendo têm um perfil muito claro. São jovens de periferia, a maioria negros. São vidas que, numa sociedade muito distorcida, valem menos”. 

‘Nós presamos pela nossa vida’ 

“Alguém já perguntou nossas reivindicações? Não. Estamos morrendo? Estamos. Temos uma profissão de risco. Se vierem perguntar se a gente gostaria de mais segurança, claro. Se disponibilizarem kits de segurança gratuitos, queremos? Claro, quero um capacete, me dá um colete também, uma antena corta-pipa. Se derem curso gratuito, a gente faz? Faz. Mas teve esse tipo de atitude? Nunca teve. O que faz a gente correr tanto? A necessidade de pagar as contas. Por quê? Porque as taxas são baixas. A gente está sendo explorado. Alguém pergunta isso para nós? Não”, argumenta Jr. Freitas.  

“Parece que a gente é arruaceiro e só quer ‘libera geral que nóis vamo meter marcha na avenida’. Não é assim. Nós também presamos pela nossa vida”, defende o motociclista. O próximo protesto contra a apreensão de motos está marcado para 3 de fevereiro, às 9h, em frente ao estádio do Pacaembu.  

Vereadores de direita e de esquerda entram no debate 

Ainda que componham a base aliada do prefeito, vereadores bolsonaristas como Lucas Pavanato (PL) e Kenji Palumbo (Podemos) entraram no tema em oposição à atuação da prefeitura. Ambos formulam um Projeto de Lei (PL) para instituir e regular o “transporte remunerado privado individual de passageiros em motocicletas”. 

Nas redes sociais, Pavanato, o vereador mais votado de São Paulo, publica vídeos em que aparece criticando e “supervisionando” apreensões de moto pela GCM.  

Já Amanda Paschoal (Psol) entrou com uma representação pedindo que o Ministério Público do Trabalho (MPT) suspenda as apreensões de motos e investigue se as empresas de app estão respeitando direitos trabalhistas. Luana Alves (Psol) oficiou a prefeitura pedindo a devolução dos veículos.  

O vereador Marcelo Messias (MDB), do mesmo partido de Nunes, apresentou um PL que condiciona a liberação do mototáxi à redução da taxa de mortalidade de motociclistas. Na sua proposta, as mortes teriam que passar de 9,02 para 4,5 a cada 100 mil habitantes.  

Insatisfação com transporte público, demanda por moto 

A polêmica em torno do mototáxi esquenta menos de um mês depois que a prefeitura de São Paulo aumentou a tarifa do ônibus de R$ 4,40 para R$ 5.  

Uma pesquisa Datafolha feita entre 16 e 23 de dezembro de 2024 aponta que 85% dos paulistanos consideram que o serviço de moto por aplicativo é uma alternativa para a falta de opção de transporte público.  

Questionada sobre medidas para tornar o transporte público mais eficaz e acessível, a prefeitura informou, em nota, que “a frota de 12 mil ônibus atende todas as regiões, percorrendo 2,3 milhões de quilômetros por dia” e que, desde 2020, a capacidade de passageiros foi ampliada em 11,4%. 

Edição: Martina Medina

Clique aqui para ler o texto original.

Data original de publicação: 25 de janeiro de 2025

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