Sobrejornada rotineira ignora a precaução e não pode ser tolerada

(FOTO: SETAS)

Por Ruy Fernando G. L. Cavalheiro

O conjunto de alterações na CLT trazido pela chamada “reforma” trabalhista criou a possibilidade de que o trabalhador e o empregador ajustem, por meio de pactuação coletiva ou individual, jornada superior à constitucionalmente fixada, que é de oito horas diárias e 44 semanais.

O parágrafo único do artigo 611-B coroa essas alterações ao consignar que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo”.

Essa afirmação é um avanço legislativo sobre a própria realidade, eis que o desempenho de atividades laborais ao longo de determinado período de tempo é ato indissociável da segurança e da saúde do trabalhador, individual e coletivamente considerado.

A Convenção 155 da OIT estabelece claramente em seu artigo 3º que a expressão “saúde” se refere “aos elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho” e que a política nacional de segurança e saúde do trabalho deve ter como objetivo “prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho”.

É fantasioso imaginar que a reiterada exigência de trabalho além de oito horas diárias não provocará cansaço crônico no trabalhador, aumentando os riscos de acidentes e causando moléstias físicas e mentais. Na verdade, é essa a consequência do trabalho em sobrejornada, como diversos estudos de saúde ocupacional evidenciam. Carreiro, em estudo paradigmático sobre as mortes por excesso de jornada no Japão, aponta que o Ministério do Trabalho daquele país reconhece que, em 2007, um total de 147 trabalhadores morreram por causa da sobrejornada.

Ora, a mera potencialidade desse risco, independentemente de sua concretização, já deveria ser suficiente para se tentar evitar a sua ocorrência. Trata-se da aplicação do princípio da precaução, oriundo do Direito Ambiental, da bioética e da filosofia da ciência, como se vê dos escritos de Mariconda e de Hugh Lacey. Para este, o princípio incorpora valores éticos dos direitos humanos, equidade, responsabilidade ambiental e democracia deliberativa, os quais “informam avaliações da seriedade dos riscos e, portanto, de qual deve ser o nosso nível de confiança de que um dano potencial pode ser adequadamente evitado ou regulado”.

O princípio da precaução foi inserido em diversos documentos internacionais de direitos humanos pactuados pelo Brasil, tais como a Declaração do Rio 92 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, sendo seu Princípio 15.

Conforme a Declaração da Rio 92, “o Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Este Princípio afirma que a ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever este dano”.

O Ministério do Meio Ambiente, em sua página na internet, assim define o princípio da precaução:

O Princípio da Precaução tem quatro componentes básicos que podem ser assim resumidos:

(i) a incerteza passa a ser considerada na avaliação de risco;

(ii) o ônus da prova cabe ao proponente da atividade;

(iii) na avaliação de risco, um número razoável de alternativas ao produto ou processo, devem ser estudadas e comparadas;

(iv) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e ter a participação dos interessados no produto ou processo.

(Ministério do Meio Ambiente, Princípio da Precaução, em <http://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-camada-de-ozonio/item/7512>, acesso em 14/2/2019)

Sendo o meio ambiente do trabalho uma das dimensões do meio ambiente, o artigo 225 da CF é totalmente aplicável na medida em que estabelece, em seu parágrafo 1º, inciso V, o dever de controlar o emprego de técnicas e métodos que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

Deste modo, quer seja pela infração explícita à saúde e segurança do trabalho, quer seja pela potencial, a sobrejornada rotineira não pode ser tolerada e a norma infraconstitucional que a permite e afasta sua correlação com a preservação do meio ambiente do trabalho se mostra distante das previsões constitucionais e internacionais de prevenção de danos à saúde dos trabalhadores.


Bibliografia
CARREIRO, Libia M. Morte por excesso de trabalho (Karoshi). In Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: Vol. 46, n. 76 (jul./dez. 2007).
LACEY, Hugh. O princípio de precaução e a autonomia da ciência InScientiae Studia vol.4 no.3 São Paulo July/Sept. 2006.
MARICONDA, Pablo R. Technological risks, transgenic agriculture and alternativesIn Scientiae Studia vol.12 no.spe São Paulo 2014.

*Ruy Fernando G. L. Cavalheiro é procurador do Trabalho, mestre em Direito, especialista em Filosofia do Direito e em História e Filosofia da Ciência, além de associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

Fonte: Revista Consultor Jurídico
Por
Ruy Fernando G. L. Cavalheiro
Data original de publicação: 25-02-2019

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