Sociologia e História do Trabalho: uma homenagem a Maria Célia Paoli
Por Leonardo Mello e Silva | Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho
“Maria Célia Paoli nos deixou há pouco mais de um ano. Professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da USP, Maria Célia foi uma figura importante em vários sentidos: 1) como professora e formadora de gerações de pesquisadores em Ciências Sociais; 2) como intelectual pública, entre outras razões, por sua presença na equipe da Secretaria Municipal de Cultura da gestão de Luiza Erundina na cidade de São Paulo; 3) como fundadora e organizadora do Cenedic – Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, na USP, e 4) como incansável acadêmica preocupada em abrir – mas não de caso pensado – um campo de reflexão plural e criativo sobre as classes populares e o mundo do trabalho no Brasil.
Para esse último intento, mobilizou referências múltiplas na historiografia, na literatura, na filosofia política, mas também por entre as diversas “especialidades” da sociologia. Um caleidoscópico campo de interesses, espalhados por suas publicações e por suas reflexões, partilhadas e cultivadas por todos aqueles que tinham o privilégio de privar de sua proximidade pessoal, espécie de “círculo interno” composto por alunos, colegas, intelectuais, militantes e amigos. Como arendtiana de alma que era, Maria Célia certamente não estranharia tal caracterização, nem tal termo, no fundo a consequência mais fiel do preceito célebre daquela filósofa de que a riqueza do espaço privado depende de um espaço público pujante e diverso. Por todas essas razões, estamos diante de uma interlocutora – uma “pessoa extraordinária”, parafraseando seu mestre e orientador, Eric Hobsbawm – que fala por meio de sua obra e de sua memória.
O arco de suas reflexões é vasto, cobrindo diferentes tópicos. O primeiro deles é o enquadramento das lutas sociais na passagem para um Brasil moderno. Sua tese de doutorado, “Labour Law and the State in Brazil 1930-1950”, é um diálogo crítico com a literatura sobre a formação da classe trabalhadora na sociologia brasileira, seja a uspiana, seja a isebiana-pecebista. O vasto emprego de depoimentos de trabalhadores, para o período investigado, confirma, em termos metodológicos, a inclinação para – se fosse o caso de encaixar o tipo de sociologia praticada por Maria Célia em algum ajuste disciplinar – uma sociologia histórica; adicionalmente, denuncia a preferência axiológica pelo ponto de vista dos “de baixo”. Temos aqui a presença da sugestão marcante contida na obra do historiador Edward Palmer Thompson, de quem Maria Célia era leitora apaixonada.
Não por acaso, sua participação nas bancas de pós-graduação e como referência bibliográfica obrigatória nos trabalhos acadêmicos de uma coorte de historiadores sociais da Unicamp, conhecidos por sua reavaliação crítica do populismo, é digna de nota. Teses e dissertações saídas entre a primeira metade dos anos 1990 e a primeira metade dos anos 2000 – sobretudo aquelas orientadas por Michael Hall – confirmam aquela influência. Nomes hoje reconhecidos no campo da história social do trabalho – Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa e Paulo Fontes, membros autonomeados de uma imaginária e irônica Central Única de Historiadores (CUH) – discutiram ativamente com seu esforço de reinterpretação sociológica sobre o significado dos direitos sociais, da Justiça do Trabalho, do Estado Corporativo, e da experiência de classe. Maria Célia surgia como uma espécie de “mãe de todos” no que concerne à recepção de Thompson, contemporânea que era da apropriação criativa do historiador inglês da classe operária por estudiosos brasileiros de sua geração, muitos deles seus amigos e parceiros intelectuais, como Michael Hall, Paulo Sérgio Pinheiro, Marco Aurélio Garcia, Elizabeth Lobo, Eder Sader, Vera da Silva Telles, José Ricardo Ramalho e José Sérgio Leite Lopes, entre outros.
A cidade (veja-se o belo artigo escrito em parceria com Adriano Duarte sobre o bairro da Mooca) e a cultura, outros tópicos do interesse intelectual de Maria Célia, eram lidos principalmente a partir do motivo principal de sua obra, os mundos do trabalho. Os exemplos de lutas sociais remetem em boa medida às condições de vida do operariado urbano, as quais ensejavam reivindicações por justiça que, hoje, seriam lidas pela ótica da “luta por reconhecimento” (mas não era essa a noção empregada na época).
Uma luta eminentemente moderna em seu conteúdo – luta por justiça -, e por uma confirmação da igualdade de condições – cidadania – que estava na base do discurso formal das elites. O papel do operariado na República foi justamente o de tematizar praticamente os motivos da cidadania. As lutas saídas daquelas reivindicações falam em quebra-quebra, saques, depredações, assaltos a presídios, apedrejamentos ou empastelamento de jornais, mas também de greves e revoltas que querem comunicar algo: não apenas a persistência de uma enorme carência material, mas sobretudo a existência de um déficit de reciprocidade no suposto “contrato social” que abarca igualmente as condições econômicas de vida e de sobrevivência. (…)
Fonte: Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho
Data original da publicação: 15/06/2020