Trabalho e adoecimento psíquico em tempos de pandemia- Uma breve análise Brasil e Espanha
Por Valdete Souto Severo e Isabela Pimentel de Barros| LABUTA – Laboratório UERJ de Trabalho e Previdência
“(…) Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil (…)”
(O Bêbado e o equilibrista, 1979, João Bosco e Aldir Blanc)
- Considerações iniciais
“Os dados são estarrecedores: passamos os 100.000 mortos por COVID-19, mais de 3 milhões de pessoas contaminadas, um número absurdo de registros de morte por Síndrome Respiratória Aguda Grave, isso sem contar os inúmeros mortos que, por falta de atendimento ou testagem, faleceram sem contar nas estatísticas. Ou aqueles que faleceram por outras doenças, em razão da falta de atendimento médico adequado.
Ainda assim, o Presidente da República nega-se a usar máscara ou reconhecer a gravidade da pandemia. Não há Ministro da Saúde. O Parlamento aprova leis que retiram ainda mais direitos trabalhistas. As populações indígenas estão sendo dizimadas pela ausência de acesso a atendimento médico ou controle da disseminação do vírus. Nossas reservas naturais estão sendo saqueadas. Empresas públicas estão sendo privatizadas.
Ao mesmo tempo, atingimos um nível recorde de desocupação e de desigualdade. Choram Marias e Clarisses… E o que fazemos enquanto isso? O que o governo, que deveria estar tomando medidas para proteger a população ou, ao menos, amenizar os efeitos da Pandemia do Covid-19, faz?
É neste contexto que este breve artigo se insere, tendo por objetivo analisar as medidas adotadas pelo Brasil e pela Espanha para o enfrentamento da Pandemia do Covid-19 a fim de discutirmos a oportunidade e eficiência das mesmas como medidas de estabilização social e cuidado com a saúde e a vida de quem depende do trabalho para sobreviver.
Ambos os países passaram recentemente por amplas e precarizantes reformas trabalhistas: a Espanha em 2012 e o Brasil, em 2017. As reformas, de uma maneira sintética, tiveram como objetivo declarado combater as crises econômicas pelas quais os respectivos países passavam a fim de enfrentar o desemprego massivo e, para tanto, flexibilizaram as relações de trabalho. As alterações foram significativas. A fim de sermos objetivas e respeitando os limites deste artigo, citaremos as principais modificações feitas pelas reformas trabalhistas brasileira e espanhola.
No Brasil, as Leis 13.429 e 13.467, ambas de 2017 ampliaram as possibilidades de terceirização[1], criando contratos precários, facilitando a dispensa e a majoração da jornada, retirando o caráter remuneratório de algumas verbas, fragilizando as possibilidades de atuação dos sindicatos, entre outras inúmeras alterações [2]. Além disso, possibilitou o acordo individual para realização de jornada regular de 12 horas, sem intervalo e com possibilidade de extensão desse tempo de trabalho, bem como passou a obrigar a mulher gestante ou lactante a levar atestado médico para a empresa, a fim de que seja afastada do ambiente insalubre de trabalho, colocando-a em situação de extrema fragilidade, sendo estes exemplos nítidos de alteração prejudicial a saúde do trabalhador.
Na Espanha, a Lei do Estatuto dos Trabalhadores (Ley del estatuto de los trabajadores– LET), em 2012, passou por uma ampla reforma. Comparada por muitos com a “reforma” realizada no Brasil em 2017, teve início através do RDL 03/2012 e se consolidou com a edição da Lei n. 03/2012 de 06 de julho de 2012.
De forma sintética e, de forma alguma pretendendo esgotar o tema, a exposição de motivos da “reforma” espanhola afirma que as alterações legislativas anteriores não haviam dado certo e que o desemprego havia aumentado ainda mais, alcançando cerca de 22,85%, sendo certo que entre os menores de 25 (vinte e cinco) anos, essa taxa se aproximava a 50%. Logo, tinha-se a obrigação de garantir e satisfazer os interesses daqueles que buscavam um emprego e, por isso, a “reforma” tratava de garantir a flexibilidade dos empresários na gestão dos recursos humanos da empresa como segurança dos trabalhadores no emprego e adequados níveis de proteção social. Visava, ainda, atingir o equilíbrio entre a regulação da contratação indefinida e a temporária, favorecendo medidas vinculadas à redução da dualidade do mercado trabalhista espanhol. Pregava-se, então, a flexissegurança. As principais modificações realizadas foram: a alteração do artigo que regulamenta o teletrabalho[3]; a redução da indenização para as chamadas demissões improcedentes[4]; a ampliação das chamadas causas objetivas para a dispensa. Além destas, passa a ser permitida a realização de horas extras nos contratos de trabalho por tempo parcial; há a regulamentação da possibilidade de suspensão dos contratos por causas econômicas, técnicas, de organização, de produção ou por força maior. Em termos de direito coletivo, as alterações, tal como ocorreu no Brasil em 2017, foram relevantes: o requisito da autorização administrativa para as demissões coletivas foi eliminado e restou estabelecido o fim da ultratividade.
Em que pese a reforma não tenha servido para diminuir a dualidade do mercado de trabalho e criar empregos de qualidade, ao chegar a Pandemia do Covid-19, a Espanha já não estava mais no cenário de crise econômica que vinha passando desde 2008. No final do ano de 2019, a taxa de desemprego na Espanha estava, aproximadamente, em 14% e, embora ainda alta, lembramos que, no auge da crise econômica, a mesma ultrapassou 20%. O PIB da Espanha vinha crescendo ininterruptamente por seis anos e, em que pese o país tivesse uma taxa menor de desemprego, o emprego estava baseado, em boa parte, em contratos precários. O país ainda se situa entre um dos mais desiguais da Europa, registrando, em 2019, um índice de Gini de 0,34, não obstante consideravelmente melhor que o do Brasil. O rendimento médio por pessoa atingiu 11.680 euros, com um aumento de 2,3% em relação ao ano anterior. A população em risco de pobreza ou exclusão social (taxa AROPE) ficou em 25,3% ante 26,1% no ano anterior. O indicador income quintile ratio[5] indicava que, em 2018, os 20% mais ricos contavam com uma renda seis vezes maior que os 20% mais pobres. Aproximadamente 21,5% da população estavam em Risco de Pobreza em 2018 e, em que pese o PIB tivesse aumentado desde 2014 em 3.840 euros (17,5%), a taxa de pobreza foi reduzida somente em 0,7%, demonstrando que o crescimento econômico, por si só, não traz a redução da pobreza. Além disso, a taxa de pobreza entre as pessoas com trabalho se mantém em torno de 14% desde 2014, ratificando que não é qualquer trabalho que protege da pobreza.
Já o Brasil, em meio a crise econômica que só se agravava, ao chegar a Pandemia, assistia ao aumento, nos últimos dois anos, da taxa de desemprego, chegando ao assustador patamar de 13,7 milhões de pessoas desocupadas e um total de 27,9 milhões de pessoa subutilizadas, eufemismo para caracterizar o conjunto de pessoas que estão desocupadas, trabalham menos de 40 horas semanais ou “estão disponíveis para trabalhar, mas não conseguem procurar emprego por motivos diversos”. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 1,5% nos três primeiros meses deste ano. Além do aprofundamento da desigualdade, mais de 1/3 da população não tem acesso à internet, 31,1 milhões de pessoas não têm acesso à água encanada; 74,2 milhões de pessoas (37% da população) vivem em áreas sem coleta de esgoto e 5,8 milhões de famílias não têm banheiro em casa. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2019 mostra que o rendimento do 1% de pessoas que ganha mais em nosso país equivale a 33,7 vezes o da metade da população que ganha menos. Enquanto o rendimento médio mensal de quem ganha mais com o trabalho é de R$ 28.659,00, o de quem ganha menos é de R$ 850,00. E o fato de se tratar de “rendimento médio” dá conta da quantidade de pessoas que sobrevivem no Brasil com menos de R$ 800,00 por mês, algo naturalizado de tal forma que se comemorou recentemente, como uma “conquista social”, a majoração do valor de auxílio emergencial inicialmente proposto pelo governo para as trabalhadoras e trabalhadores autônomos, de R$ 200,00 para R$ 600,00[6].
Vejamos, então, como estes países reagiram à chegada da Pandemia.
2) Medidas de enfrentamento a Pandemia do Covid-19
Assim como no Brasil, a Espanha declarou estado de emergência[7] através da edição do Real Decreto 463/2020 em 14 de março, impondo inúmeras medidas restritivas de circulação e impactando o mundo do trabalho. O Real Decreto Lei 8/2020, de 17 de março, dispôs sobre a necessidade de priorizar mecanismos alternativos que garantissem a continuidade da atividade comercial e das relações de trabalho, particularmente através de trabalho remoto. O governo espanhol lançou um programa de financiamento, ativando doações e créditos para pequenas e médias empresas. Foi disposto, ainda, o direito de comprovar os deveres de cuidar de dependentes devido a circunstâncias excepcionais relacionadas à prevenção da extensão da COVID-19, para obter adaptação ou redução do horário de trabalho, com a consequente redução proporcional do salário. Foi prevista, ainda, a possibilidade de suspensão contratual e de redução da jornada, quando a necessidade de utilizar tais mecanismos tiver causa direta com as consequências da COVID-19, sendo considerada decorrente de situação de força maior.
O Real Decreto lei 09/2020, de 27 de março, esclarece, no entanto, que a força maior, as causas econômicas, de organização, de produção e técnicas nas quais se amparam as possibilidades de suspensão e redução de jornada dos contratos não serão consideradas como causas de extinção do contrato, impedindo, na prática, as demissões “procedentes” nesse período vez que tais causas seriam consideradas como motivos “justos” para a ocorrência de dispensas, razão da importância dessa previsão legal. O referido decreto prevê, ainda, a possibilidade de suspensão dos prazos dos contratos temporários.
O Real Decreto Lei 10/2020, de 29 de março, por sua vez, estabeleceu uma espécie de licença remunerada para os empregados que não trabalhem em serviços considerados como essenciais e não tenham a possibilidade de trabalhar remotamente. Segundo o decreto, os trabalhadores continuarão recebendo seus salários e complementos salariais e, posteriormente, após o fim do estado de emergência, deverão compensar as horas não trabalhadas, o que será estipulado através de acordo a ser realizado entre a empresa e o representante dos trabalhadores. O Real Decreto Lei 11/2020, de 31 de março, estabeleceu alguns subsídios para os autônomos como, por exemplo, a postergação das suas cotas previdenciárias, o recebimento do equivalente à prestação de seguro desemprego para o autônomo que tenha perdido, no mínimo, 75% de seu faturamento e desde que esteja em dia com as contribuições previdenciárias[8] e a postergação do pagamento de hipoteca e de alugueres para estabelecimentos comerciais.
Alguns dados divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística merecem ser citados para reflexão: 66,1% dos negócios continuaram abertos e, aproximadamente, 2/3 deles reduziram as suas vendas; quase 70% das empresas tiveram que reorganizar ou reduzir a jornada; cerca de 40% das empresas adotaram o chamado Expediente de Regulación Temporal de Empleo (ERTE)[9]; 48,8% das empresas utilizaram o teletrabalho para manter o nível de atividade, sendo que 1/3 dos estabelecimentos que o adotaram declaram que irão mantê-lo no futuro, enquanto 40,8% das empresas declararam não ter feito nenhuma modificação na sua forma de trabalhar.
Quando analisamos os dados relativos ao desemprego, percebemos que as medidas, tal como no Brasil, foram insuficientes. Dados demonstram uma taxa de desemprego ascendente que, no segundo trimestre de 2020, estava em 15,33%, além de um decréscimo de 22,59% em relação as horas trabalhadas. Os chamados inativos, que assim se classificam por estarem parados dada a impossibilidade de procurar emprego, aumentaram em 843.000 pessoas.
O RDL 19/2020, de 26 de maio, em seu artigo 9º reconhece como acidente de trabalho as doenças sofridas pelos trabalhadores que prestam serviços nos centros de saúde ou sociais, em consequência do contágio do vírus SARS-CoV2 durante o estado de emergência.
Por fim, cabe adicionar o Real Decreto Lei 20/2020, de 29 de maio, que, reconhecendo a enorme desigualdade do país, criou a renda mínima vital a fim de auxiliar os vulneráveis economicamente, bem como reduzir a pobreza e a desigualdade no país, e que deverá atingir 850.000 famílias. Há previsão de um pagamento mensal máximo entre 462 e 1.015 euros, dependendo do tipo de família.
No Brasil, o governo federal editou as Medidas Provisórias 927 e 936. A primeira perdeu vigência, mas a segunda já foi aprovada nas duas casas do Congresso Nacional e convertida em lei (Lei 14.020). Essa lei autoriza redução de salário e jornada, por acordo individual, oferecendo em troca um valor indenizatório, mesmo que seja irrisório, de complementação emergencial de renda. Sob o argumento de que com isso o governo evitaria o desemprego, a lei autoriza a perda de até 70% do salário, por meio de acordo individual, ou suspensão completa do pagamento, enquanto durar a pandemia, de modo que o vínculo se mantenha, mas a renda não. Mesmo assim, o Brasil atingiu nos últimos meses o recorde em número de pessoas desempregadas e de pessoas que simplesmente pararam de procurar emprego. Pela primeira vez desde que esse índice é considerado, o Brasil tem mais pessoas economicamente ativas (PEA) desempregadas do que contratadas. São 88 milhões de adultos sem emprego e 86 milhões empregados. A taxa oficial de desemprego subiu para 12,9% no trimestre encerrado em maio de 2020, atingindo 12,7 milhões de pessoas. Foi registrado um fechamento de 7,8 milhões de postos de trabalho em relação ao trimestre anterior.
Até o dia 29 de junho, o Ministério da Justiça havia registrado acordos de redução de salário envolvendo 11.698.243 de trabalhadoras e trabalhadores. Pessoas que estão certamente contingenciando gastos básicos com alimentação e vestimenta, quando não contraindo empréstimos bancários para dar conta das despesas ordinárias. O endividamento das famílias brasileiras já estava, em 2019, no patamar de 66%. Não há como desconhecer, porém, que mesmo para quem tem a possibilidade de se isolar, permanecer em casa traz, como consequência imediata, aumento de gastos ordinários com alimentação, água, luz. Para quem tem a possibilidade de realizar o teletrabalho, pode também implicar mais gastos com internet. Nesse contexto, torna-se ainda mais ilógico promover redução de salário, pouco importando que isso ocorra através de acordo individual ou norma coletiva.
Percebe-se que a Espanha, apesar de haver promovido desmanche de direitos sociais nos últimos anos, adotou uma postura política de certo comprometimento com a contenção dos efeitos da COVID-19. Além de proibir despedidas, ampliou o acesso a benefícios de seguro-desemprego, reduzindo ou renunciando totalmente aos requisitos de contribuição mínima e estendendo o benefício aos contratos de experiência, bem como aos trabalhadores que deixaram o emprego por uma nova oferta de trabalho que acabou atingida pela crise. Além disso, não se pode negar que as condições de vida da Espanha, embora ainda estejam longe de atingir o ideal, são bem superiores às do Brasil. Para se ter uma ideia, em 2019, a OMS apontou que o gasto por habitante com a saúde, na Espanha, em 2014, era de U$ 2.966,00. Já no Brasil, era de U$ 1.318,00. Em 2019, 80,9% dos lares com membros entre 16 e 74 anos, tinham, ao menos, um computador e mais de 90% dos lares tinham acesso a algum meio de internet.
3) Algumas breves considerações sobre a saúde do trabalhador
Além de todos os desmanches sociais e mortes, um dado sobre o qual pouco se tem falado nos chama a atenção: a saúde psíquica do trabalhador durante a Pandemia. A insegurança da permanência no emprego ou a decorrente de um trabalho temporário, intermitente ou terceirizado, a subremuneração, e bem assim a dificuldade em encontrar um emprego, somam-se à imposição de teletrabalho, redução de salário ou suspensão de contrato autorizadas em razão da pandemia, e criam um ambiente psiquicamente adoecedor, o que tem sido objeto de alerta por várias organizações, mas pouco comentado nos principais meios de comunicação de nosso país.
O Brasil já figura como o segundo país com mais pessoas infectadas e fatalmente vitimadas pela doença. Desde que aqui chegou, em fevereiro de 2020, a COVID-19 já vitimou, pelos números oficiais, mais de 100.000 pessoas. O Ministério da Saúde tem publicado Boletins Epidemiológicos sobre a pandemia. O primeiro deles, de fevereiro desde ano, dava conta de uma pessoa infectada. O Boletim n. 6, de 03 de abril, já apontava 359 pessoas mortas por COVID-19 e 286 mortas por síndrome respiratória aguda grave (SAR-G). Dois meses depois, o Boletim 18, de 13 de junho, informava a morte de 42.720 pessoas por COVID-19 e 64.247 por SAR-G. Esse Boletim 18 chama a atenção por conter também informação sobre sinais de depressão na população brasileira. 41,70% das pessoas entrevistadas revelaram sinais de depressão. A informação não aparece nos boletins seguintes. O último, Boletim 24, de 25 de julho, já aponta 86.449 pessoas mortas por COVID-19 no Brasil e 126.108 mortas por SAR-G.
De acordo com o Boletim de Saúde Mental da FIOCRUZ, os transtornos psíquicos imediatos mais frequentes, em razão da pandemia e do isolamento social, são os episódios depressivos e as reações de estresse agudo de tipo transitório. Há, também, referência ao potencial aumento do risco de surgimento destes transtornos, em razão de outros fatores de vulnerabilidade, ligados, inclusive, às condições de trabalho. O Boletim da FIOCRUZ aponta como principais efeitos tardios mais recorrentes o luto patológico, a depressão, os transtornos de adaptação, as manifestações de estresse pós-traumático, o abuso do álcool ou outras substâncias que causam dependência, além de transtornos psicossomáticos. Aponta, também, a recorrência de sintomas como o de tristeza, medo generalizado e ansiedade expressos corporalmente, em função do prolongamento do sofrimento que decorre da situação de pandemia.
A preocupação com a saúde mental e com o agravamento dos fatores psicossociais de adoecimento em razão do trabalho, durante a pandemia mundial, permeia também as declarações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já em maio deste ano, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, referiu que: “O isolamento social, o medo de contágio e a perda de membros da família são agravados pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, de emprego”, revelando o que aqui demonstramos. Há estreita ligação entre os efeitos que são inerentes à pandemia e o aprofundamento desses efeitos nocivos na saúde psíquica de quem vive do trabalho em países que, como o Brasil e a Espanha, promoveram recentemente amplo desmanche da regulação protetiva estatal do trabalho. Em documento publicado em 13 de maio, a OMS declarou que 70% da população que está na linha de frente do combate à pandemia, em trabalhos ligados à área da saúde, são mulheres. Observa que a pressão e o estresse que decorrem da exposição dos corpos, da percepção da morte e da impossibilidade de reação mais efetiva a uma doença ainda desconhecida exige que os líderes mundiais tenham atenção especial à saúde mental de quem trabalha, pois já está sendo apontado o aumento da ansiedade, dos afastamentos por estresse e depressão, entre os profissionais ligados à saúde.
A Organização Pan-Americana da Saúde lançou documento apontando a relação entre vulnerabilidade social e adoecimento psicossocial durante a pandemia e aponta os principais grupos sociais atingidos: crianças, idosos, mulheres, populações indígenas, grupos minoritários, pessoas portadoras de deficiência, pessoas que já possuem problemas de ordem psicossocial. Aponta, também, a maior vulnerabilidade de quem vive na miséria, nas periferias das grandes cidades e os residentes ilegais. Cita os principais relatos de pessoas sobreviventes que passaram por situação de epidemia ou de eventos traumáticos que provocaram a morte de um número grande de pessoas: “pesar e aflição pela perda de familiares e amigos, que em certos casos coexistem com perdas materiais”; “perda da fé em Deus, perda do sentido da vida”; “temores de assumir novos papéis impostos pelo desaparecimento de um familiar”; “medos recorrentes de que possa ocorrer algo novamente ou que a morte vai ceifar outros familiares ou membros da comunidade”; medo da morte; “sentimentos de solidão e abandono”; “medo de esquecer ou ser esquecido”; raiva, culpa por ter sobrevivido, vergonha.
A OECD – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, da qual tanto Brasil quanto Espanha participam, já aponta que o impacto econômico da COVID-19 é dez vezes maior que o observado nos primeiros meses da crise financeira global de 2008. Mesmo países que possuem uma rede de proteção social mais ajustada e se preocuparam em manter vínculos de emprego, restringindo despedidas e fazendo transferência de renda, estão sofrendo impactos econômicos, sociais e, consequentemente psíquicos. De acordo com projeções da OECD, o desemprego deve aumentar para 9,4% em média até o final de 2020. Se houver uma segunda onda da pandemia no final de 2020, a taxa de desemprego aumentará ainda mais, podendo chegar a 12,6%. As projeções para a Espanha são ainda piores.
Uma pesquisa realizada por uma empresa espanhola especializada em gestão de prevenção de riscos psicossociais, ao entrevistar 1.024 trabalhadores entre abril e junho deste ano, constatou que 41,99% dos trabalhadores apresentou sintomas de ansiedade e 27,3% sente que sua saúde piorou. Os relatos dos trabalhadores passam por várias queixas, entre elas, dor de cabeça, distúrbio de sono, dor no estômago e problema de memória, o que significa que quase metade dos trabalhadores entrevistados apresenta sintoma de depressão ou ansiedade. Além disso, a OECD aponta que 56% dos trabalhadores espanhóis estão em risco de contágio por COVID-19.
A pandemia, com tudo que dela decorre em termos de isolamento social e interrupção de atividades laborais, agrava um quadro social já adoecido. Inúmeras organizações, inclusive, estão emitindo alertas, seja no Brasil, seja na Espanha, para que as empresas tenham atenção com os fatores psicossociais dos trabalhadores posto que, além do impacto inimaginável que tais doenças podem causar na saúde, nas relações familiares e sociais do trabalhador, podem também causar a perda das competências no trabalho construídas ao longo do tempo, gerando a perda da produtividade para a empresa e o pagamento dos dias por afastamento. Somam-se a isso o custo previdenciário e o relacionado a saúde pública e privada para a sociedade como um todo.
4) Algumas conclusões
Em 1984, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconheceu que era necessário considerar que as exposições profissionais aliadas ao modo de vida e as condições gerais do meio ambiente profissional ou pessoal geram ou, ao menos, favorecem o desenvolvimento de doenças profissionais tais como enfermidades locomotoras, respiratórias e até transtornos de comportamento.
Esqueceu-se a OIT, porém, de que, em uma sociedade em que o trabalho é condição para a sobrevivência material, a maioria das pessoas não tem condições de escolher o trabalho que realiza, sua intensidade ou o número de horas do dia em que precisará estar à disposição de quem se apropria da sua força de trabalho, sendo o desemprego uma realidade estrutural. Portanto, quem depende do trabalho para sobreviver, temerá sempre a perda do emprego.
Soma-se a isso a explosão de novas tecnologias e novas formas de apropriação do trabalho, através de plataformas digitais, por exemplo, que também são fatores que potencializam o adoecimento psíquico que decorre da atividade laboral.
Claro está que o adoecimento, seja ele psíquico ou não, acarreta em um incalculável custo social, que decorre da necessidade de tratamento, atendimento médico, utilização de remédios, que oneram o sistema de previdência social. Portanto, a lógica de precarizar ainda mais as condições de trabalho se traduz como econômica e socialmente destituída de fundamento. Trata-se de, na verdade, de uma aposta na piora das condições sociais de vida também porque uma sociedade de pessoas adoecidas é objetivamente limitada em suas potencialidades. É, objetivamente, uma sociedade pior. Dessa forma, os custos da precarização do trabalho ultrapassam a esfera econômica do(a) trabalhador(a) e do empresário, atingindo toda a sociedade.
A medida necessária, diante da constatação de que há um efeito social deletério que decorre diretamente da fragilização e supressão das normas de proteção social, é a reversão da lógica liberal que impregna as opções políticas adotadas nesses dois países nos últimos anos. Concretamente, é preciso rever legislações que suprimem direitos, fragilizam os vínculos e pioram a remuneração de quem vive do trabalho. Sem um trabalho decente, que dê condições materiais da vida digna, aí compreendidas as possibilidades de comer, vestir, morar e viver com conforto e com tempo livre, não há sociedade que se desenvolva, sequer da perspectiva econômica.
A Pandemia do Covid e as medidas insuficientes adotadas por alguns governos tornaram o cenário ainda mais grave.
Queremos chamar a atenção do leitor para o preço que estamos pagando. O estímulo a autonomia adotado pelo governo brasileiro nos últimos anos mostra, hoje, o seu custo. Ademais do desemprego recorde no país, há uma desigualdade que aumenta assustadoramente em razão das opções legislativas tomadas. A banalização da saúde e segurança do trabalhador tem degradado o meio ambiente de trabalho a ponto de levar a inúmeras mortes por ano. Ultrapassamos os 100 mil mortos em razão direta da Pandemia vivida, sem contar as pessoas que morreram sem entrar nas estatísticas oficiais, as que morreram acometidas por outras doenças e não tiveram atendimento e as que ainda morrerão em razão das doenças psíquicas, que somente tendem a piorar em razão do agravamento dos fatores de riscos psicossociais.
Há, portanto, um ensinamento que precisa ser aprendido com urgência nesses tempos estranhos. Viver bem em sociedade inclui a saúde psíquica. E a saúde psíquica, em uma sociedade de trocas, depende diretamente de vínculos seguros, salários decentes e ambientes saudáveis de trabalho.
[1]Sobre todos os aspectos negativos da terceirização, ver: J. L. Souto Maior, V. Severo. (Org.), Resistência III: O Direito do Trabalho diz não à Terceirização, Expressão Popular, São Paulo, 2019.
[2]Para aprofundamento do tema: J. L. Souto Maior, V. Souto Severo. Manual da Reforma Trabalhista: Pontos e Contrapontos, Editora Sensus, São Paulo, 2017.
[3]O artigo 13 da LET sofreu algumas alterações. Se antes referia-se ao trabalho em domicílio passa a referir-se ao trabalho à distância, definindo o mesmo como aquele em que a prestação da atividade de trabalho seja realizada predominantemente na casa do trabalhador ou no local escolhido livremente por ele, como alternativa ao seu desenvolvimento presencial no local de trabalho da empresa. Não há referência a quem caberá o pagamento dos custos decorrentes do trabalho à distância como internet e computador. Ao revés, o artigo dispõe que o trabalhador à distância terá os mesmos direitos do trabalhador que preste seus serviços no centro.
[4]Chamamos a atenção que, diferente do que ocorre no Brasil, a Espanha, tendo aderido a Convenção 158 da OIT, não permite a demissão sem justa causa para os contratos indeterminados, salvo nas possibilidades previstas no artigo 52 da LET. Caso o trabalhador entenda que a sua demissão se deu injustificadamente, poderá ingressar no judiciário e pedir que a sua demissão seja reconhecida como improcedente. O empresário também poderá reconhecê-la. Se reconhecida pelo Poder Judiciário, o empregador poderá reintegrá-lo ao trabalho ou pagar uma indenização.
[5]O indicador income quintile ratio é muito utilizado pela Comissão Europeia para medir a diferença de renda disponível entre os 20% da população mais rica e a 20% que tem menores recebimentos.
[6]Elevação que só ocorreu em razão da aprovação de uma lei dispondo nesse sentido, pois o governo não aceitou, em momento algum, majorar espontaneamente a importância por ele proposta, de duzentos reais. Enquanto isso, a cesta básica, com 13 produtos, em janeiro de 2020 custava R$ 502,98, mais de 13% a mais do que a doze meses atrás. Disponível no site.https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/dicas-de-economia/noticia/2020/03/cesta-basica-fica-1389-mais-cara-em-12-meses-ck7e0j4jr01ie01pqqxxllbwt.html, acessado em julho, 2020.
[7]Chamamos a atenção que a Espanha utiliza a expressão “estado de alarma”, que entendemos ser semelhante ao estado de emergência. Segundo o disposto no artigo 4º da Lei Orgânica 4/1981, o Governo, conforme o artigo 116.2 da Constituição Espanhola, poderá declarar o “estado de alarma” quando ocorra alguma alteração grave da normalidade, sendo um exemplo desta a crise sanitária, tal como epidemia e situação de contaminação grave.
[8]Ressalta-se que, diferente do Brasil, os autônomos possuem um regime próprio de previdência social na Espanha. O valor a que faz jus receber equivale a 70% da sua contribuição caso tenha o mínimo de 12 (doze) contribuições mensais. Caso não tenha, será o equivalente a 70% da base mínima, o que significa dizer que receberá 661 euros.
[9]O ERTE é um expediente que torna possível o envio do trabalhador ao desemprego temporariamente. Durante a duração do estado, o governo facilitou a tramitação dos ERTE’s para que o trabalhador pudesse ter acesso a renda por desemprego, mas deixou claro que só permitiria a expedição dos ERTE’s relacionados ao estado de emergência e ao coronavírus.
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Fonte: LABUTA – Laboratório UERJ de Trabalho e Previdência
Data original da publicação: 13/08/2020