Trabalho precário na indústria de games
Ergin Bulut é professor de Comunicação na Koç University, da Turquia com pesquisas nas áreas de economia política da comunicação, produção cultural e games. É autor do livro A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry, uma etnografia sobre o trabalho na área de games.
Por DigiLabour
“Bulut pesquisou por três anos um estúdio de games de tamanho médio no Centro-Oeste dos Estados Unidos com o objetivo de compreender como o “amor pelo trabalho” aparecia na indústria. O estúdio produzia jogos AAA (ou Triplo-A), que são os de maiores orçamentos e espera-se de alta qualidade. Em 2013, quando Bulut concluiu a etnografia, a empresa era de capital aberto e, mais tarde, declarou falência.
O livro A Precarious Game mostra como apenas poucos trabalhadores podem aproveitar um “emprego dos sonhos”, que é, na maioria das vezes, precário na indústria de games. Para Bulut, a paixão pelo trabalho dos homens brancos da indústria depende de desigualdades materiais que envolvem trabalho sacrificial de suas famílias, trabalho não reconhecido de testadores e marcadores de raça e gênero no trabalho no Sul Global.”
Confira alguns trechos da entrevista
DIGILABOUR: O que é ludopolítica?
ERGIN BULUT: Ludopolítica é um termo que cunhei com inspiração no trabalho de Achille Mbembe e seu termo “necropolítica”. A noção de “necropolítica” em Mbembe é uma crítica construtiva da “biopolítica” de Michel Foucault. O que Mbembe faz é examinar a colônia e as formas de morte, dissecando como a soberania funciona nesses espaços políticos extraordinários por meio da destruição. Obviamente, conectar o espaço colonial à indústria de games parece algo extremo. No entanto, eu queria enfatizar a materialidade e a brutalidade invisível em relação à maneira como o poder opera na indústria de videogames. Por um lado, as práticas de trabalho da indústria de games parecem ser muito efêmeras e imateriais. O trabalho não parece trabalho. É algo divertido. É amor. Por outro lado, as desigualdades que cercam a indústria e sua força de trabalho podem ser bastante destrutivas e excludentes. Então, eu uso o termo ludopolítica para mapear e criticar a política de “quem pode jogar e quem precisa trabalhar” na indústria de games. Eu particularmente uso esse termo para evidenciar a centralidade da desigualdade e da reprodução social como uma lente crítica para compreender a política do trabalho na indústria de games. Quando evidenciamos a desigualdade e a reprodução social como uma estrutura, nós somos capazes de analisar o trabalho fora dos limites formais do local de trabalho e conectá-lo aos espaços urbanos e domésticos.
DIGILABOUR: Quais são as desigualdades que estruturam a indústria de games?
BULUT: Há vários níveis de desigualdades no setor. Lembro que uma grande empresa de capital aberto possuía o estúdio que eu estava pesquisando. Nesse sentido, se você estivesse trabalhando neste estúdio, isso significaria que a empresa de games de capital aberto possuía seu produto – o próprio game como propriedade intelectual – por meio dos acordos de não divulgação que você assina. Agora, assinar um contrato é algo tipicamente imaginado como uma troca livre, mas isso é um mito. Assinar esse acordo basicamente tira seu trabalho de você por meios não violentos. Quando você trabalha para uma empresa de capital aberto, não tem nada a dizer sobre como eles organizam suas operações atuais e futuras, o que, de fato, tem uma grande influência no processo de trabalho e no futuro dos trabalhadores. Em outras palavras, embora você possa ser criativo no que faz, alguém organiza seu trabalho em termos organizacionais, espaciais e temporais. O estúdio de games que eu estava pesquisando era um estúdio de grande sucesso. Fizeram jogos lucrativos. E, no entanto, as más decisões financeiras tomadas pelo proprietário criaram condições adversas de trabalho para os desenvolvedores de games que pesquisei. Em suas próprias palavras, eles foram quase punidos por seu sucesso. Embora os trabalhadores e pesquisadores de comunicação geralmente imaginem que sucesso significa segurança, isso estava longe de acontecer. Meu livro demonstra como o trabalho inovador é intrinsecamente precário. Outro nível de desigualdade surge dentro do próprio estúdio. Por um lado, há a equipe principal de desenvolvimento dos games: artistas, designers e programadores. A maioria deles trabalha em tempo integral e com os melhores salários. Eles têm um maior impacto criativo na direção de um game. Podem desfrutar livremente da política de trabalho flexível implementada no estúdio. Têm espaços de trabalho maiores. Vão a conferências, feiras e, às vezes, desfrutam de viagens internacionais. No entanto, também há os testadores, que sentem que são cidadãos de segunda classe. É esse o caso, porque a maioria deles trabalha por projeto. Em seguida, eles são demitidos ou “liberados”, nas palavras do departamento de recursos humanos, assim que o projeto termina. Eles também gostam da política flexível em relação ao trabalho, mas não tanto quanto a equipe criativa principal. Uma fonte de desigualdade central em relação aos testadores é que não é necessário um diploma universitário para se tornar um testador. Tudo que você precisa é ter paixão por games. Obviamente, esse é um movimento retórico para desvalorizar seu trabalho por causa da paixão por games. E jogar videogames é uma das principais habilidades necessárias. Eu, por exemplo, não tenho mais essa habilidade. Um terceiro nível de desigualdade que eu chamo a atenção no meu livro é sobre a diversão derivada do trabalho criativo e na área de tecnologia. Os desenvolvedores de games adoram o que fazem. São apaixonados pelo trabalho e gostam de ultrapassar as fronteiras da tecnologia. Mas o que eles chamam de “divertido” ou “engraçado” no conteúdo de seus games pode prejudicar mulheres e pessoas não brancas, principalmente porque a indústria de games é composta majoritariamente por homens brancos. Não era incomum o libertarianismo nos desenvolvedores de games que pesquisei. Para teorizar como eles compreendem a diversão em relação à inovação tecnológica e como desconsideram as críticas a conteúdos problemáticos de games, eu propus o termo religiosidade lúdica. A religiosidade lúdica revela como os desenvolvedores de games enquadram o conteúdo problemático do game por meio da “diversão”. Ao fazer isso, eles são capazes de descartar o conteúdo ideológico do que criam. Por exemplo, eles afirmam que não têm como alvo um grupo específico, mas ofendem igualmente a todos. Obviamente, a masculinidade branca está no cerne da religiosidade lúdica como um sistema de crenças, que está relacionada não apenas ao conteúdo dos games, mas também profundamente conectada aos sistemas tecnológicos com os quais os desenvolvedores de games gostam de mexer para fins de diversão. Há momentos em que eles tomam conhecimento de códigos problemáticos de raça e gênero nos games, mas esses momentos são raros, infelizmente. Um quarto nível de desigualdade encontra-se fora do estúdio, especificamente nas casas dos desenvolvedores de games. O espaço doméstico surge como um local de crise de vez em quando. Estamos familiarizados com essas crises domésticas desde o infame caso EA Spouse, que apareceu repetidas vezes em outros estúdios de games. Então, entrevistei as cônjuges dos desenvolvedores de videogames e perguntei o que acontece quando seus parceiros estão trabalhando. Quem cuida da família e do espaço doméstico quando os desenvolvedores de games perseguem seus empregos dos sonhos e trabalham inúmeras horas? Como um pesquisador homem, tenho que reconhecer que isso não estava nos meus planos iniciais quando comecei esta pesquisa e sou grato a várias pesquisadoras como Silvia Federici, Vicki Mayer, Kylie Jarrett e Tithi Bhattacharya. Quando eu estava entrevistando um artista técnico no estúdio, ele me contou como a sua esposa considerava o estúdio de games uma casa de fraternidade. Isso me forçou a ampliar minha pesquisa para além do estúdio, e acredito que essa é uma das alegrias da pesquisa etnográfica, pois você acaba em lugares nos quais nunca havia pensado antes. Decidi entrevistar os cônjuges dos desenvolvedores de games. Dada a demografia dominante, isso significava que eu conversaria com mulheres. Assim, minhas conversas revelaram como as chamadas indústrias criativas estão longe de erradicar as desigualdades de longa data em relação ao trabalho doméstico. Ao mesmo tempo, as mulheres que entrevistei apresentaram críticas profundamente embasadas em relação às práticas de trabalho e do discurso sobre o amor na indústria. Na verdade, elas foram muito mais expressivas sobre os problemas que surgem do trabalho apaixonado do que seus companheiros.
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Fonte: DigiLabour
Data original de publicação: 10/05/2020